quarta-feira, 20 de maio de 2015

RELIGIÃO E SENSO COMUM

Jung insistia na ideia da impossibilidade de penetrarmos na essência dos fenômenos e que deveríamos renunciar às tentativas de fazer deles um problema intelectual. É certo que a referência trata dos fenômenos psíquicos, mas qualquer ramo da ciência não estaria intimamente associado à “ocorrência fenomênica”? Pois, como a Física prosseguiria? E a própria Psicanálise?

Superestimar a razão, Jung comparava, seria algo em comum com o poder do Estado absoluto: sob o seu domínio o indivíduo pereceria. Ora, aceitar com resignação e temor o incognoscível não é muito mais perigoso?

O entendimento de Jung sobre tudo o que o homem, na sua epopeia apreendeu e concluiu, é um fenômeno psíquico in totum. Assim, dentro dessa medida, permanecemos trancados, aflitos, num mundo unicamente psíquico. Certo é que resistimos ao que não conhecemos, pois vivemos encarcerados ao nosso mundo perceptivo. Tudo representa ameaça quando colocamos os pés fora do restrito espaço da nossa percepção e reagimos ao intruso que apresente fundamentos mais fortes que os nossos.

Se rejeitarmos a ideia de fazer de um fenômeno um problema intelectual, voltamos ao passado distante; restabelecemos os mitos e as fábulas como norte da civilização. Ao repisar, então: a religião começa quando a ciência termina? Puro sofisma: isso estabelece uma ciência estanque. Na verdade, a religião começa aonde a ciência ainda não chegou. Quando chega, a falsa certeza religiosa vai circum-navegar em outros mares – a história da civilização demonstrou há muito a superioridade do argumento científico.

Questionamentos se tornam moeda corrente até nos grandes mestres. Ao mesmo tempo em que Jung, oposto de Freud, mescla os fenômenos psíquicos, entremeados de opiniões transcendentais, aos dados do purismo científico, também não pode fugir de verdades incontestes: “Quase todos concordam que a hipótese do homem ter sido criado em toda a sua glória no sexto dia da criação, sem degrau anterior, é muito simplista e arcaica para nos satisfazer. Entretanto, em relação à psique, as concepções arcaicas continuam em vigor: a psique não teria antecedentes arquetípicos; seria uma tabula rasa, uma criação inteiramente nova, que tem origem na ocasião do nascimento”.

Jung insiste na ideia de cultivarmos segredos e mantermos a intuição de algo incognoscível. Com a existência interior dividida, entretanto, muito devido ao caso amoroso com sua paciente, a futura psicanalista Sabina Spielrein, desabafou: “Permanecemos de mãos vazias, espantados, perplexos, e nem mesmo percebemos que nenhum mito nos ajuda, agora que temos tanta necessidade dele”. Em toda a sua obra, sentimos os altos e baixos de alguém que nunca se livrou dos envolvimentos com o além. Quase um século depois do dito de Jung, ouvi de Ivan Wasth Rodrigues[1] o aforismo: “Nenhum tipo de divindade nos socorre e a religião foi feita para quem precisa dela”...

Este livro é uma tentativa de mostrar ao leitor o resultado das crenças nas nossas vidas, ao focalizar a construção das Escrituras como veículo de perpetuação das crendices canonizadas. Quero mostrar como as crenças são construídas pelo cérebro e amparadas pelos desvios cognitivos dos quais somos reféns com frequência absurda. Indico como reaprender a pensar e, também, a analisar mergulhos equivocados nas crendices que nos rodeiam. Exponho a invenção do monoteísmo com propósitos teocráticos. Revelo como os livros sagrados foram construídos, sem escrúpulos, pelo judaísmo, cristianismo, islamismo e religiões orientais. Sobretudo a Bíblia, modelo maior de sustentação da “religião do Livro”.

Chegamos a um desgaste terrível da ideia de Deus e isso foi gerado pelo cinismo da indústria da fé, que se espalha apesar da evolução intelectual do homem. É o cinismo aceito e admitido pelos que não usam o poder da reflexão, que são conhecidos pelos termos infelizes de “massa de manobra e idiotas úteis”.

Quanto a mim, no passado, arrisquei a vida na esteira perigosa do sectarismo, o desfecho letal de todas as religiões, que primeiro atraem e depois escravizam. O perigo maior não é quando a presa está na boca do peixe, mas quando ela passa para o estômago, de onde não sai mais. Desperdicei boa parte da vida de maneira obstinada, na busca de soluções salvacionistas que me garantissem um lugar na eternidade e promovessem as respostas de que necessitava. Tal qual milhões de pessoas fazem, sem novidade.

A vaidade espreita os incautos e, em determinado estágio do novo caminho escolhido, fui cercado pela sensação de santidade. Isto porque, dentro dos parâmetros religiosos, eu teria passado do estado de ímpio ao de “separado para servir”... Bem, disseram-me isto. Achei-me feliz, até perceber, anos depois, que fora vítima de um pentecostalismo de péssima carpintaria teológica.

Sugou-me um sistema cruel, o tenebroso viés salvífico, que com palavras de esperança alega resgatar nossas almas, mas lambe os beiços com a matéria viva. Depois, cobra-nos a presença física para surrupiar o que houver nos bolsos e, o pior, escravizar as mentes fracas. Equivocados, morremos para o mundo.

Parado num congestionamento de trânsito, certo dia, avistei uma casa à beira da estrada, que tinha no vidro de uma das janelas um cartaz colado – chocante demais para a minha estrutura espiritual da época. Li o seguinte: “Quando uma pessoa sofre de um delírio, isso se chama insanidade. Quando muitas pessoas sofrem de um delírio, isso se chama religião”... Fiquei perturbado e analisei, por anos a fio, o que a realidade me mostrava. Não o que me diziam, mas o que via – a vida como é –, não como deveria ser. Pensei, assim, sobre o que significa ter uma palavra na boca e outra no coração. Exercício religioso.

Hoje, bem distante do homem atolado na crendice, apático e despolitizado que era, encontrei libertação interior na simples busca pelo conhecimento. Esse processo leva tempo. Requer boa carga de humildade e abertura para se alcançar espírito livre, entretanto, reaprende-se a pensar.

Achei que devia algo a mim mesmo: ser honesto com a posição religiosa – a partir do conhecimento científico –, não com as historinhas de Deus que me contavam. Como não recebia atenção ao procurar as pessoas, pois elas raramente queriam falar de Deus (por absoluto despreparo intelectual), adotei um empirismo trivial como defesa. Olhava em todas as direções para detalhes, palavras, filosofices, gestos ensaiados e atitudes tendenciosas dos mamíferos humanos religiosos. Vi um cenário diferente, analisei com método. Deparei-me com clichês assombrosos, mas era hora de escapar do senso comum com urgência. Então, busquei coragem e me curvei ao conhecimento científico. Valeu a pena!

Cheguei honestamente à conclusão de que, apesar dos defeitos horríveis que a seleção natural nos legou, que expõe nossa origem inferior, tais defeitos ficam ainda mais doentios e aleijados, ocultos pelo verniz religioso. A partir daí, não consegui mais conciliar a fé com o conhecimento e abandonei a crença no deus dos sectários.

A razão primacial que me motivou a escrever esta obra foi mostrar ao leitor que o dever moral e a bondade, se fazem parte do nosso interior, jamais representam qualquer tipo de fé, tampouco são devidos às religiões em geral. Foram ensinamentos dos nossos pais ou uma atitude moral que tomamos diante da vida.



[1] O mais famoso ilustrador histórico brasileiro e meu mestre de desenho (1927-2007).

ATENÇÃO: todos os direitos reservados.

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