RELIGIÃO E SENSO COMUM
Jung insistia na ideia da impossibilidade de penetrarmos na essência dos
fenômenos e que deveríamos renunciar às tentativas de fazer deles um problema
intelectual. É certo que a referência trata dos fenômenos psíquicos, mas
qualquer ramo da ciência não estaria intimamente associado à “ocorrência
fenomênica”? Pois, como a Física prosseguiria? E a própria Psicanálise?
Superestimar a razão, Jung comparava, seria algo em comum com o poder do
Estado absoluto: sob o seu domínio o indivíduo pereceria. Ora, aceitar com
resignação e temor o incognoscível não é muito mais perigoso?
O entendimento de Jung sobre tudo o que o homem, na sua epopeia
apreendeu e concluiu, é um fenômeno psíquico in totum. Assim, dentro dessa medida, permanecemos trancados,
aflitos, num mundo unicamente psíquico. Certo é que resistimos ao que não
conhecemos, pois vivemos encarcerados ao nosso mundo perceptivo. Tudo
representa ameaça quando colocamos os pés fora do restrito espaço da nossa
percepção e reagimos ao intruso que apresente fundamentos mais fortes que os
nossos.
Se rejeitarmos a ideia de fazer de um fenômeno um problema intelectual,
voltamos ao passado distante; restabelecemos os mitos e as fábulas como norte
da civilização. Ao repisar, então: a religião começa quando a ciência termina?
Puro sofisma: isso estabelece uma ciência estanque. Na verdade, a religião
começa aonde a ciência ainda não chegou. Quando chega, a falsa certeza
religiosa vai circum-navegar em outros mares – a história da civilização
demonstrou há muito a superioridade do argumento científico.
Questionamentos se tornam moeda corrente até nos grandes mestres. Ao mesmo
tempo em que Jung, oposto de Freud, mescla os fenômenos psíquicos, entremeados
de opiniões transcendentais, aos dados do purismo científico, também não pode
fugir de verdades incontestes: “Quase todos concordam que a hipótese do homem
ter sido criado em toda a sua glória no sexto dia da criação, sem degrau
anterior, é muito simplista e arcaica para nos satisfazer. Entretanto, em
relação à psique, as concepções
arcaicas continuam em vigor: a psique
não teria antecedentes arquetípicos; seria uma tabula rasa, uma criação inteiramente nova, que tem origem na
ocasião do nascimento”.
Jung insiste na ideia de cultivarmos segredos e mantermos a intuição de
algo incognoscível. Com a existência interior dividida, entretanto, muito
devido ao caso amoroso com sua paciente, a futura psicanalista Sabina
Spielrein, desabafou: “Permanecemos de mãos vazias, espantados, perplexos, e
nem mesmo percebemos que nenhum mito nos ajuda, agora que temos tanta
necessidade dele”. Em toda a sua obra, sentimos os altos e baixos de alguém que
nunca se livrou dos envolvimentos com o além. Quase um século depois do dito de
Jung, ouvi de Ivan Wasth Rodrigues[1]
o aforismo: “Nenhum tipo de divindade nos socorre e a religião foi feita para
quem precisa dela”...
Este livro é uma tentativa de mostrar ao leitor o resultado das crenças
nas nossas vidas, ao focalizar a construção das Escrituras como veículo de
perpetuação das crendices canonizadas. Quero mostrar como as crenças são
construídas pelo cérebro e amparadas pelos desvios cognitivos dos quais somos
reféns com frequência absurda. Indico como reaprender a pensar e, também, a
analisar mergulhos equivocados nas crendices que nos rodeiam. Exponho a
invenção do monoteísmo com propósitos teocráticos. Revelo como os livros sagrados foram construídos, sem
escrúpulos, pelo judaísmo, cristianismo, islamismo e religiões orientais.
Sobretudo a Bíblia, modelo maior de sustentação da “religião do Livro”.
Chegamos a um desgaste terrível da ideia de Deus e isso foi gerado pelo
cinismo da indústria da fé, que se espalha apesar da evolução intelectual do
homem. É o cinismo aceito e admitido pelos que não usam o poder da reflexão,
que são conhecidos pelos termos infelizes de “massa de manobra e idiotas
úteis”.
Quanto a mim, no passado, arrisquei a vida na esteira perigosa do
sectarismo, o desfecho letal de todas as religiões, que primeiro atraem e
depois escravizam. O perigo maior não é quando a presa está na boca do peixe,
mas quando ela passa para o estômago, de onde não sai mais. Desperdicei boa
parte da vida de maneira obstinada, na busca de soluções salvacionistas que me
garantissem um lugar na eternidade e promovessem as respostas de que
necessitava. Tal qual milhões de pessoas fazem, sem novidade.
A vaidade espreita os incautos e, em determinado estágio do novo caminho
escolhido, fui cercado pela sensação de santidade. Isto porque, dentro dos
parâmetros religiosos, eu teria passado do estado de ímpio ao de “separado para
servir”... Bem, disseram-me isto. Achei-me feliz, até perceber, anos depois,
que fora vítima de um pentecostalismo de péssima carpintaria teológica.
Sugou-me um sistema cruel, o tenebroso viés salvífico, que com palavras
de esperança alega resgatar nossas almas, mas lambe os beiços com a matéria
viva. Depois, cobra-nos a presença física para surrupiar o que houver nos
bolsos e, o pior, escravizar as mentes fracas. Equivocados, morremos para o mundo.
Parado num congestionamento de trânsito, certo dia, avistei uma casa à
beira da estrada, que tinha no vidro de uma das janelas um cartaz colado –
chocante demais para a minha estrutura espiritual da época. Li o seguinte:
“Quando uma pessoa sofre de um delírio, isso se chama insanidade. Quando muitas
pessoas sofrem de um delírio, isso se chama religião”... Fiquei perturbado e
analisei, por anos a fio, o que a realidade me mostrava. Não o que me diziam,
mas o que via – a vida como é –, não como deveria ser. Pensei, assim, sobre o
que significa ter uma palavra na boca e outra no coração. Exercício religioso.
Hoje, bem distante do homem atolado na crendice, apático e despolitizado
que era, encontrei libertação interior na simples busca pelo conhecimento. Esse
processo leva tempo. Requer boa carga de humildade e abertura para se alcançar
espírito livre, entretanto, reaprende-se a pensar.
Achei que devia algo a mim mesmo: ser honesto com a posição religiosa –
a partir do conhecimento científico –, não com as historinhas de Deus que me
contavam. Como não recebia atenção ao procurar as pessoas, pois elas raramente
queriam falar de Deus (por absoluto despreparo intelectual), adotei um
empirismo trivial como defesa. Olhava em todas as direções para detalhes,
palavras, filosofices, gestos ensaiados e atitudes tendenciosas dos mamíferos
humanos religiosos. Vi um cenário diferente, analisei com método. Deparei-me
com clichês assombrosos, mas era hora de escapar do senso comum com urgência.
Então, busquei coragem e me curvei ao conhecimento científico. Valeu a pena!
Cheguei honestamente à conclusão de que, apesar dos defeitos horríveis
que a seleção natural nos legou, que expõe nossa origem inferior, tais defeitos
ficam ainda mais doentios e aleijados, ocultos pelo verniz religioso. A partir
daí, não consegui mais conciliar a fé com o conhecimento e abandonei a crença
no deus dos sectários.
A razão primacial que me motivou a escrever esta obra foi mostrar ao
leitor que o dever moral e a bondade, se fazem parte do nosso interior, jamais
representam qualquer tipo de fé, tampouco são devidos às religiões em geral.
Foram ensinamentos dos nossos pais ou uma atitude moral que tomamos diante da
vida.
ATENÇÃO: todos os direitos reservados.
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