quinta-feira, 28 de maio de 2015

DA CONSTRUÇÃO DO LIVRO E SEUS CÂNONES FATAIS II

Os pesquisadores afirmam unânimes, desde o século dezenove, que o Evangelho de Marcos foi o primeiro a ser escrito, em torno de 65 ou 70 d.C.; Mateus e Lucas, por volta de 80 a 85 d.C. e João entre 90 e 95 d.C. O Evangelho de Marcos foi escrito, mais ou menos, quinze a vinte anos depois das cartas de Paulo e trinta e sete anos depois da morte de Cristo. Mas, quanto ao de João? Aproximadamente, setenta e dois anos depois da morte de Jesus... Céus! O que teria acontecido depois de tanto tempo de relatos verbais de todo tipo, conflitos insidiosos mantendo um grande jogo de interesses, distorções descaradas dos fatos originais, até que os evangelhos fossem grafados no papel, tudo em nome da construção da religião que salvaria os homens? No mínimo, o que vemos no cenário político internacional de hoje com as mesmas nuances da Antiguidade, ou seja, a mentira. Só que nesse passado distante construíram as falácias que nos serviram de herança.

É preciso, para continuar, entender o seguinte: o cristianismo não era visto doutrinariamente como hoje. A compreensão era bem outra, totalmente diversa do nosso entendimento presente. Ainda não existia uma Bíblia em forma de livro. Eram epístolas múltiplas, centenas circulando, dezenas de evangelhos de vários autores, apocalipses diversos, enfim, todo tipo de literatura aceita em nome de Jesus e dos apóstolos! A canonização das Escrituras não acontecera no início do cristianismo, portanto, tudo que surgia era “verdadeiro” e tido como sagrado. As doutrinas variavam de uma província para outra e a falta de entendimento era total. Cada um com sua história e devidas variações.

Vale a pena uma análise da situação cristã dos séculos I e II, quando as novidades apareciam. Sem pé nem cabeça, na base do achismo, “do que me contaram, do que meus pais viram, do que minha avó ouviu, do que José relatou a Silas, que contou a João e depois à Marianinha, que disse a Matusalém”...

É preciso pensar nessa tradição, sim. É possível mesmo que esses textos nunca tenham sido escritos por apóstolos ou companheiros próximos! Qual a prova em contrário? A fé? As testemunhas oculares? Será que relataram na íntegra o que viram? Ou será que viram de fato? Ou que existiram mesmo? Como confiar na existência de alguém que seja apenas baseado no relato de uma testemunha ocular? Se fosse tão fácil assim, não haveria dificuldades para um juiz chegar a uma decisão num tribunal, baseado num crime relatado por uma testemunha ocular. Inquirida outra testemunha ocular, ela apresenta uma versão diferente diante do mesmo juiz, tornando mais complexa a apuração do fato.

Se já é difícil para um magistrado apurar a verdade poucos dias depois de um fato acontecido, como apurar a verdade baseada em relatos da Antiguidade, narrativas com lapso de dezenas ou centenas de anos dos fatos supostamente ocorridos? Pela fé? Ora, o homem do século XXI não tem mais na cabeça a mesma geringonça neural daquele do século dezessete! Repito que é de suma importância a reflexão sobre isso, pois apenas por essa via poderemos entender como o cristianismo foi construído.

Os Evangelhos foram escritos anonimamente. Mateus, Marcos, Lucas ou João não foram os seus autores. Isso aconteceu para que os Evangelhos existissem! Era necessário obter credibilidade da massa de ignorantes da época e, então, ganhar a força da tradição, pois ninguém alteraria mais nada. Moeda corrente. E assim foi.

Aqueles homens como pescadores, operários braçais, tecelões de redes, pedreiros, agricultores, camponeses e afins, porventura teriam condições de escrever em aramaico, ou em grego? Como, se eram quase todos analfabetos?

Quanta ingenuidade daqueles que acreditam nessas lendas antigas. Muito tempo depois das possíveis andanças de Jesus pela Galileia, que, segundo indicações, não teve escolaridade e apenas sabia ler (não há provas de que soubesse escrever), sem deixar nada registrado do próprio punho. Na realidade, os Evangelhos foram elaborados e escritos em grego. Aproximadamente, de trinta a noventa e cinco anos depois da sua morte.

Se, de fato, os apóstolos existiram e faziam discursos, pregando as doutrinas de Cristo, faziam-no de forma absolutamente intuitiva com os meios do senso comum, do jeito que o mundo da época se comunicava. Precariamente, pois nem dez por cento do povo de todo o império romano sabia ler e escrever. Mais ainda, falavam mesmo em aramaico e não em hebraico. Em grego, nem pensar.

Como no final do século I alguém poderia saber, em meio a dezenas de evangelhos que rolavam no império, quais seriam os evangelhos genuinamente apostólicos? Como os cristãos poderiam identificar os ensinamentos de Jesus e o que ele verdadeiramente falara? Que monumento de insanidade e oportunismo! Os quatro Evangelhos só foram canonizados no século IV e por critérios falaciosos! Nenhum deles foi escrito na época de Jesus e, muito menos, por qualquer um dos seus seguidores. Os que conhecemos, foram escritos dezenas de anos depois de Jesus, por indivíduos que não o conheceram, falavam outro idioma e viviam em províncias muito distantes... Pior: deram interpretações totalmente diferentes dos fatos que teriam acontecido, seguindo informações a posteriori, com entendimento diversificado e acrescido de outras ações. Os teólogos que tiveram formação em instituições de peso sabem disso, mas se calam por conveniência.

As falsificações textuais da Bíblia foram um consenso a partir da sua canonização. Antes, nos séculos I, II e III, não havia consenso nenhum. Imaginemos, por mais de trezentos anos, um verdadeiro engenho de criações teológicas sobre Jesus e seus discípulos... Como esses sujeitos descarados, que se intitulavam pais da igreja, poderiam saber o que foi dito por Jesus ou escrito pelos apóstolos tanto tempo depois dos primeiros anos do cristianismo? A farsa montada por séculos, segundo Nietzsche “a mentira de séculos”, exala seus últimos suspiros diante da globalização e das violentas transformações sociais que presenciamos atualmente.

Foi dessa maneira que o cristianismo se propagou: cada um conta uma história, que repassa para o outro já com um tom diferente. Depois, de outro para outro, com uma interpretação “mais clara”. Então, repete-se: outro para outro, já com tendências a uma visão pessoal. Assim, mais outro “melhora” a história para dignificar as coisas que o último absorve. Desta feita, outro já tem uma compreensão inadmissível de um fato e conta para outro, alterando o fato. Isso com a melhor das intenções, “engrandecer” o próprio Deus e por aí vai, ad infinitum...

Imaginemos essa prática depois de dez anos. De vinte anos. De trinta anos. Depois de três séculos, até esse monte de lendas e contos serem canonizados. Por isso, foram obrigados a canonizar as Escrituras às pressas para acabar com a proliferação das ficções desenfreadas, reduzindo-as à essência aceitável para o consumo balanceado das nossas refeições espirituais do dia a dia.

No momento da leitura deste livro em que nos encontramos, faço um apelo aos religiosos, principalmente aos que se mantêm inflexíveis nos dogmas, que tentem analisar o período de cento e setenta anos após a morte de Jesus. Apenas por uma questão de honestidade, admitamos a nossa distância do senhorio de qualquer tipo de verdade. Sejamos reflexivos.

Arrazoemos, então. Depois da morte de Cristo, a Bíblia nos traz um quadro sugestivo de que as coisas, dali em diante, andaram de uma forma absolutamente resolvida em termos doutrinários e com a expansão pacífica do cristianismo. Às mil maravilhas? Nada pode ser mais equivocado. Era exatamente o oposto.

Nos primeiros três séculos do cristianismo, as coisas ferveram em dissensões, interesses e conflitos de todo tipo. Cada grupo do cristianismo das origens reivindicava para si as palavras que Jesus teria de fato pronunciado, assim como os escritos autênticos deixados pelos apóstolos... As divergências se multiplicavam e as inimizades também. Os primeiros grupos cristãos entravam em conflito por pontos de vista totalmente contraditórios entre si. Exatamente como hoje, cada um sustenta ser o detentor da verdade dogmática e fim de conversa.

Eram dezenas de grupos em batalha teológica nos primórdios da cristandade, porém, vou fazer comentários de apenas quatro deles, que foram mais os importantes: ebionitas; marcionitas; cristãos gnósticos e proto-ortodoxos.

Os ebionitas eram judeus convertidos ao cristianismo, tinham um foco obsessivo em Moisés e seguiam a obediência integral à Torah, por se considerarem descendentes diretos dos hebreus das tribos do Sinai. Estudiosos afirmam que o nome do fundador da seita era Ebion. Outros já dizem que o nome vem de ebyon, que significa “pobre”, porque os mesmos da seita haviam feito voto de pobreza ao decidirem seguir a Cristo.

Mas essa maneira de crer em Jesus significava, para o ebionita, manter o vínculo com a lei judaica e buscar o próprio Messias prometido aos hebreus. Portanto, para seguir a Cristo, o ebionita teria que ser judeu e, se um gentio se convertesse ao judaísmo, seria submetido inexoravelmente à circuncisão.

Infelizmente, os ebionitas deixaram poucos escritos, e nenhum registro de doutrinas ou hierarquias. As informações que temos sobre eles são relatos feitos por outros grupos cristãos da época. Os ebionitas divergiam das doutrinas de Paulo, pois eles só viam como possível a salvação através dos requisitos da lei.

Por razões de não terem conhecido o Evangelho de João, a formação teológica dos ebionitas não considerava o nascimento de Jesus na forma virginal de Maria. Então, para eles, Jesus fora fruto da união sexual entre José e Maria. É preciso que se entenda a visão dos tais, uma vez que não conheceram os Evangelhos do jeito que vemos hoje. Jesus fora, apenas, o resultado da adoção por Deus, como filho, mas de carne e osso, por ter guardado a lei na íntegra. Deus, então, o abençoara com a adoção. Por isso, os ebionitas eram chamados de “adocionistas”. Jesus não era filho de Deus desde o início dos tempos – foi adotado na ocasião do seu batismo –, quando teria ouvido a voz do Pai: “Tu és meu Filho, hoje eu te concebi”.

Os ebionitas eram inimigos da teologia de Paulo, acusando-o de heresia por facilitar o acesso a Deus sem o cumprimento das leis, apenas pela graça. Lógico, aceitavam acima de tudo a Torah, com acréscimos de alguns documentos cristãos se estivessem fixados na lei de Moisés. O principal documento, para eles, era um livro um tanto diferente de Mateus. Um “Mateus antigo”, em aramaico, que não continha os dois primeiros capítulos, omitindo a narrativa do nascimento de Jesus por Maria na condição de mulher virgem.

Dizem alguns especialistas que o Mateus antigo que eles usavam era uma mescla do que seriam, mais tarde, Mateus, Marcos e Lucas do Novo Testamento. Uma curiosidade nos ebionitas é que eles, fiéis à prática dos rituais do Antigo Testamento, opunham-se a qualquer tipo de sacrifício de animais e eram vegetarianos... O porquê do radicalismo dos ebionitas em relação à guarda da lei era, simplesmente, pelo fato de não existir ainda o Novo Testamento como o conhecemos hoje. Mas eles tinham os próprios livros sagrados e a Torah como regra maior.

Foram os marcionitas o segundo grupo importante na formação do cristianismo, seguidores de Marcion, um pregador e “teólogo” do século II, que nasceu em Sinope, no Ponto, ao sul do Mar Negro. Ainda jovem, foi para Roma, onde inevitavelmente causou divisões e conflitos nas igrejas, sendo banido da cidade.

Marcion escreveu a obra Antitheses. Nela, estabeleceu a invenção de dois deuses, ao dividir o pressuposto já existente no Deus do Antigo Testamento e no de Jesus. O antigo, Deus dos judeus, era um carrasco, irado por natureza, vingativo; enquanto que o outro era bonzinho, afetivo e criador. Essa teologia esquizoide mexeu com a cabeça daquele povo; perturbou o clero ao extremo, por ser “perigosa” e ofensiva às doutrinas até então elaboradas.

Por ser Paulo o herói de Marcion, ele mudou os ensinamentos do apóstolo e ainda afirmava que o cumprimento da lei não traria a salvação a quem quer que fosse. Nesse ponto, nasce a teoria de Marcion: como poderia o Deus do Antigo Testamento, irado, vingativo, ser o mesmo Deus que enviou Jesus ao mundo? Marcion, demente, concluiu que existem dois deuses diferentes.

Parece que essa teologia atendeu às expectativas de muitos cristãos vazios de raciocínio. Marcion afirmava que o Deus dos judeus não era perverso, mas se via obrigado a exercer o controle sobre a maldade dos homens, castigava-os, enquanto que o Deus de Jesus, súbito surgiu por aqui, por pouco tempo, apenas para mostrar Jesus como o salvador da humanidade. Esse deus “bom” não se considerava pai dos judeus, portanto tinha que tirar os cristãos das garras do deus do furor.

Tudo veio de surpresa: o deus bonzinho enviou ao mundo um Jesus que não era de carne e osso, era só a aparência de ser humano, tipo fantasma, pois um ser perfeito não poderia assumir a forma humana. Era a nova dicotomia: um Cristo que parecia humano, mas não era de carne e osso. Fingiu sofrer na cruz, mas na realidade era só a aparência de Jesus...

É lógico que Marcion não era demente. Era um grande ator e farsante da Antiguidade. Mas, como o povo adora ideias tolas e novidades, a doutrina de Marcion foi um sucesso marcante. Ainda usava um termo grego para definir a situação do fantasma divino: dokeo[1], uma visão docética. Os marcionitas ficaram conhecidos como cristãos docéticos.

O Jesus de Marcião não teria subido à cruz em carne, mas de mentira, sem sofrer, porque era só aparência do real. O engodo contraditório não ficou oculto e, então, sobrou o questionamento: um fantasma não tem sangue, logo, como iria derramá-lo em favor dos homens, segundo as Escrituras? O espectro messiânico que o pseudodeus-pai apresentou aos homens evaporou-se.

Marcion foi mais um golpista cristão da história antiga, porque organizou o primeiro concílio informal da Igreja romana e lançou a primeira tentativa de cânone cristão para a massa ignara engolir. Nesse rumo, reuniu os líderes da igreja no tal “concílio” para expor a sua doutrinalha, mas levou um escorregão vexatório, sendo expulso da Igreja romana. Então, o dinheiro que doara para subornar o clero, foi devolvido a Marcion de forma humilhante. No entanto, de volta à Ásia Menor, sua terra, abriu muitas igrejas e seu credo foi acolhido com sucesso por idiotas de outras bandas...

Marcion compôs um cânone próprio com onze livros; as epístolas paulinas e ainda incluiu outros livros de Paulo, que ele, sem escrúpulos, falsificara. De qualquer maneira, como quase tudo na história é falsificado, Marcion foi o primeiro líder esperto a dar o golpe da canonização. Um inimigo seu, Tertuliano, heresiólogo proto-ortodoxo, usou de um sarcasmo que ficou marcado: “Eu vos asseguro, que se pode mais facilmente encontrar um homem nascido sem um coração e sem cérebro, como o próprio Marcion, do que sem um corpo, como o Cristo de Marcion”.

O terceiro grande grupo, nos primórdios do cristianismo, foram os gnósticos[2]. Defendiam que o mal já estava inserido na própria vida desse mundo e não era o resultado do pecado dos homens. Nessa ótica, o requisito para a salvação não seria a fé, mas o conhecimento de si mesmo, da origem do mundo, da missão cristã gnóstica aqui e dos meios de retorno à esfera celestial de origem.

Em 1945, foi encontrado no Egito um verdadeiro tesouro de documentos históricos – por um pequeno grupo de beduínos –, a biblioteca de Nag Hammadi. O líder do grupo era Mohammed Ali, responsável pela descoberta de vários papiros da Antiguidade. Um suposto evangelho perdido, fragmentos que continham passagens da vida e morte de Jesus. Era o Evangelho Copta de Tomé com outros relatos. Caracterizaram-se como a base doutrinária dos cristãos gnósticos. Talvez a descoberta filológica mais significativa do século vinte, responsável pelo conhecimento que hoje temos do gnosticismo e cristianismo primitivos. Hipotéticos evangelhos de Filipe, João e Tiago foram achados, extremamente místicos no todo. Entretanto, uma visão inconcebível para nós, se comparados aos Evangelhos canônicos que conhecemos hoje. Na época em que esses relatos gnósticos foram escritos, nenhum Evangelho dos que conhecemos tinha sido canonizado.

Os gnósticos acreditavam na existência de apenas um Deus no começo do mundo e ele era perfeito, o Pleroma[3]. Esse princípio maior, depois da criação da matéria, desequilibrou-se e causou o caos no universo. Isso gerou uma doutrina permeada de mitos estranhos, com uma “revelação” vinda de um deus, o “Um”, fora do conhecimento humano, que traria aos cristãos o entendimento oculto necessário à salvação. Esse Um, produziu vertentes, braços, interpretados como entidades secundárias chamadas de Aeons, que representavam poderes. O desequilíbrio causador do caos foi um Aeon, a representação de Sofia[4], que decidiu gerar uma deidade sem copular com Pleroma, portanto, de forma oculta. O deus foi gerado e seu nome conhecido como Yaldabaoh, nada mais, nada menos, que Yahweh, o Deus dos judeus!... Só que esse deus, devido à sua geração através de um ato oculto, era interpretado como um deus inferior, mas que se considerou o Um, não havendo outro além dele. Teria, assim, esse deus secundário, tomado o lugar do Eterno anterior, desconhecido dos homens.

Esse Yaldabaoh, foi o responsável pela criação do mundo e das forças do mal. Desta feita, também criou Adão e Eva, logo, tudo que temos por aqui. Ficou o homem sujeito à busca de um tipo de entendimento especial para obter a salvação, deixando esse mundo considerado irrecuperável. Por isso, a necessidade da gnosis para sair do mundo, ter um encontro final com o Pleroma, que seria o “grande pai” e viver com ele por toda a eternidade...

Cristo, para os gnósticos, era visto à maneira dos marcionitas: não era de carne e osso. Esse tipo de Jesus fantasma, traria a gnosis ao mundo e permitiria aos homens o retorno ao “pai de verdade”, o Pleroma. Toda essa história tem um pouco da cultura grega, algo estoico, um tipo de ataraxia. De fato, os gnósticos desprezavam o corpo para não se prenderem à matéria, já que o corpo fazia parte desse mundo – a prisão material. Por incrível que pareça, os gnósticos até reconheciam alguma divindade no Deus dos judeus, como, por exemplo, os Dez Mandamentos e algumas partes das Escrituras. Mas o verdadeiro deus era o Pleroma.

Desse terceiro grupo, auferimos algo importante: foram eles os responsáveis pela herança deixada para muitas seitas de hoje, que ainda cultivam um cristianismo místico, considerado herético pela maioria, de suspeito intelectualismo elitista, restrito a sociedades secretas e grupos efetivamente herméticos.

Bem, chegamos ao quarto grupo, os proto-ortodoxos. O mais importante deles, pois foi o grupo que escolheu os evangelhos, cartas e demais escritos que deveriam ser incluídos no Novo Testamento. O que temos hoje foi definido por eles. Selaram o destino das Escrituras, porque eram fortes politicamente e mais contidos com a propagação das lendas iniciais do cristianismo.

Foram denominados proto-ortodoxos, porque fizeram parte da pré-ortodoxia[5]. Construíram o que achavam certo, ou melhor, “enxugaram” as múltiplas opiniões dos seus oponentes, que tinham disponíveis há dois séculos, ordenando-as num livro. Esse grupo se encontrava robustecido desde o início do século III e dispunha dos autores mais eruditos da Antiguidade cristã, os que melhor cimentaram seus textos teológicos, obviamente com bases na confecção mitológica anterior, desde os tempos abraâmicos...

No início do século IV, Roma, como capital do império, era o centro das atenções do mundo existente. Esse império tornava-se problemático com a descentralização crescente do poder. Suas províncias se enfraqueciam e o povo ansiava por mudanças, devido à complexidade da expansão do próprio império. É nesse momento máximo da história que se desenvolve a mais brilhante estratégia de marketing político vista até agora: Constantino se converte ao cristianismo, recontextualizando a cristandade.

Caius Flavius Valerius Aurelius Constantinus, Constantino I, o Grande. Nome de alta envergadura, de imperador. Um talentoso líder que tirou o cristianismo de uma enorme confusão e fez dele um clichê. O cristianismo estava na moda, um sinônimo de status. As pizzas, então, foram encomendadas, pois o solo era italiano.

Constantino teve um conveniente desvio cognitivo: a visão de uma cruz no céu, com a inscrição In hoc signo vinces[6], às vésperas da batalha contra Maxêncio, na ponte Mílvia. Constantino venceu a batalha e se converteu àquele tipo de cristianismo. Ainda disse que Jesus lhe falara em sonho, ensinando-lhe a fazer o sinal da cruz antes de entrar em qualquer batalha... Desse jeito, tudo daria certo para a unificação do império.

O imperador apoia o concílio de Niceia, em 325 d.C. e faz uma monumental celebração: proclama-se o décimo terceiro apóstolo! Politicamente, Constantino ainda realiza outro grande feito, só que já no leito de morte, em 337 d.C., ordena que um bispo considerado hereje o batize, visto que entrara em conflito com os bispos da Igreja de Roma, devido às suas imposições no concílio de Niceia. Com essa atitude, além de ter mandado canonizar sua mãe Helena, ele consegue juntar heréticos e ortodoxos em prol da unidade do império. Convém ressaltar que o conceito de heresia veio a existir a partir da canonização das Escrituras, pois o que estava fora delas tornou-se erro absoluto. Tempos depois, em 380 d.C., o imperador Teodósio decreta o cristianismo religião do Estado. Nasce o catolicismo romano e todos os que o rejeitam, são agora barbaramente perseguidos... Principalmente, os judeus.

Nesse cenário favorável aos proto-ortodoxos, o imperador Constantino como aliado teológico, o grupo triunfa sobre seus rivais ebionitas, marcionitas e gnósticos. Hoje, podemos identificar a torpeza do jogo político por trás desses acontecimentos, não as ideologias dogmáticas como imaginávamos. Isso traz meu axioma à tona: “Em qualquer época da história, todas as divergências dogmáticas causadoras de cisões, dentro de qualquer religião, se devem aos interesses políticos na busca pelo poder e não às questões doutrinárias em si. A ruptura não advém por amor a Deus e sim pelo poder”.

É preciso analisar, através da crítica histórica, o caminhar da religião para entendermos a malícia e a maldade dos homens. Pela argúcia dos seus autores, os cristãos proto-ortodoxos intuíram a necessidade de estabelecer uma “prova” maior, que determinasse a derrota dos cristãos gnósticos. Qual seria essa prova? A vida. Dar a vida por amor a Cristo, coisa que os marcionitas e, muito menos, os gnósticos jamais fariam, devido à natureza dos seus princípios doutrinários fantasiosos. Os primeiros, porque não dariam a vida por um espectro que nem chegou a conhecer o sofrimento. Os segundos, porque interpretaram a figura de Cristo demasiado simbólica e pseudointelectualizada.

Foi plantado um conceito na mente dos proto-ortodoxos: valia realmente a pena oferecer a vida por Cristo, jamais negá-lo em qualquer circunstância, mesmo diante das feras do Coliseu. Surgiu, a partir daí, a cultura do sacrifício como lucro e investimento na eternidade com Deus. Aliás, o próprio apóstolo Paulo introduzira esse conceito através dos seus relatos. Para ele “o viver é Cristo e o morrer é lucro”. Na sociedade em que vivemos isso pode ser entendido como severo desequilíbrio mental e um delírio análogo ao mito abraâmico de imolação da prole.

No século II, essa ideia encontrava abrigo na mente dos proto-ortodoxos. Esses cristãos obcecados começaram a produzir martirológios: relatos textuais de terríveis sacrifícios humanos, como no caso de Inácio de Antioquia, Policarpo e o próprio Estevão, que serviu para que Paulo fosse induzido pela emoção a se tornar apóstolo. Ora, se bem que não podemos saber, nem de longe, quantos cristãos foram martirizados na Antiguidade. Pelo menos, existem dados históricos indicativos de milhares, nos dois primeiros séculos da cristandade. Há, também, no universo desses martirológios, os relatos mais desviantes possíveis da realidade. Por exemplo, o de Inácio de Antioquia, quando anuncia “o desejo de se tornar pão para as feras selvagens, como trigo de Deus; ser moído pelos dentes das feras e triturado por inteiro para se tornar o puro pão de Cristo”... Isso mais me parece o comportamento da esquerda caviar no Ocidente, que repete o “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

O que mais me chama a atenção em tudo isso, é a posição matreira e maldita do Estado romano, no silêncio da espreita, para o endosso na propagação dos martírios. Foi o jeito encontrado para perpetuar a religião ligada ao poder. Uma vez estabelecida a “prova” para diferenciar os cristãos proto-ortodoxos dos demais grupos, ficou fácil estabelecer o cânone das Escrituras e construir uma Bíblia que não mudasse jamais. Pois, que se constate, não mudou. O cristianismo deu certo desde então. Mas e agora que descobrimos o enredo, como vê-lo através da crítica histórica? O que fazer? Fingir que não sabemos, como há dois séculos, o que poucos sabiam? Hoje, a cada instante, sabemos mais. Temos a globalização, a desesperança e o esgotamento.


[1] Do grego “parecer”; parecido – que deu origem ao uso corrente do termo “docetismo”.
[2] Do grego gnosis  – “conhecimento”.
[3] Termo grego que representa o Um, o Singular, o Eterno.
[4] Palavra grega que significa Sabedoria.
[5] A palavra grega orthos significa certo / correto. A palavra doxa significa opinião. Portanto, ortodoxo significa a crença certa – a opinião correta.
[6] Do latim “Com este signo vencerás”.


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