segunda-feira, 25 de maio de 2015

REAPRENDENDO A PENSAR

Por que reaprender a pensar? Simplesmente para juntar os cacos quebrados e usar nosso maior dom, o poder da reflexão. É um processo que envolve um retorno gigantesco do ponto em que chegamos ao ponto de partida. Do desvio cognitivo ao ponto de restauração – para que haja reparo da nossa equivocidade cognitiva e recuperação do tempo perdido. Isso é mais do que um ato de humildade. Requer vontade, coragem, apego ao conhecimento e inconformismo com o senso comum.

Quando despertamos para as verdades científicas, não fica difícil perceber logo de saída que a verdade absoluta pode até não existir. Portanto, a afirmação de que cada um tem a sua verdade é uma premissa falsa mantida pelas assertivas do populacho.

Esse tipo de coisa é o que encoraja a sustentação alucinada de tantas verdades extravagantes que circulam pelo mundo. Mas é a crença particular no método científico que nos dá um tipo de verdade diferente das outras: a que pode ser demonstrada com os seus resultados evidentes. Universais e não individuais. A ciência não joga com baboseiras esquizoides ou “achismos” alternativos. Uma verdade científica, quando comprovada, não muda a vida romântica de um indivíduo, muda a humanidade.

Então, como pensar? Como ordenar o pensamento para não dar voltas no deserto? Normalmente, não olhamos a vida por um prisma simples. A própria ciência conserva os seus métodos que funcionam baseados na simplicidade. Mas se a verdade absoluta não existir, o que nos vai restar então? Resta-nos já, de invariável meio, a adoção de uma divisa: a dúvida de tudo. A partir daí, só a verdade científica poderá produzir provas e nos dar respostas reais. Então, à luz do cientificismo, uma verdade será absoluta, uma vez comprovada, na medida em que seu núcleo se enriqueça com a adição de outras verdades comprovadas, que gera um processo evolutivo do absoluto expandido.

Um exemplo disso seria a teoria da seleção natural de Darwin, provada verdadeira no século dezenove e hoje, enriquecida por novas descobertas (no campo da genética), nunca perdeu o caráter absoluto de verdade. A teoria da seleção natural foi amplamente demonstrada por mais de cem anos. Se caminharmos, entretanto, pelos atalhos da razão, a filosofia vai sempre questionar a “verdade absoluta”, pois é notório que teorias científicas do passado foram enriquecidas com o pressuposto de serem verdades absolutas.

O que pretendo mostrar com isso é que, mesmo em meio a um turbilhão de palpites e opiniões infantis, na tentativa de passar por coisa séria, uma verdade só é passível de ser comprovada através do método científico. Nunca pelas pobres divagações religiosas em que o clero tenta se escorar.

Dentro dos mesmos princípios, Richard Dawkins[1] desfaz mal-entendidos que comumente geram confusão: “A ciência não pode responder se o aborto é um procedimento incorreto, mas ela pode mostrar que o continuum (embriológico), que liga de maneira ininterrupta um feto desprovido de percepções a um adulto dotado de consciência, é análogo ao continuum (evolutivo), que liga os humanos às outras espécies. Se o continuum embriológico aparenta ser mais ininterrupto, é somente porque o continuum evolutivo é dividido pelas contingências da extinção. Os princípios fundamentais da ética não deveriam depender das contingências acidentais da extinção. Para dizer uma vez mais, a ciência não tem meios de responder se um aborto é um assassinato, enquanto matar chimpanzés não é. É preciso ser coerente. A ciência não tem meios de responder se é errado clonar um ser humano completo. Porém, ela pode esclarecer que um clone, como a Dolly, nada mais é do que um gêmeo idêntico, embora de idade diferente. A ciência pode nos ensinar que, se quisermos nos opor à clonagem dos humanos, não devemos apelar para os argumentos do estilo ‘o clone não seria uma pessoa inteira’ ou ‘o clone não teria alma’. A ciência não tem como responder se as pessoas têm alma, mas ela pode afirmar que, se os gêmeos idênticos têm almas, então os clones como a Dolly também têm. É preciso ser coerente. A ciência não pode responder se a clonagem de células-tronco para produzir ‘órgãos avulsos’ é incorreta. Mas ela pode nos desafiar a explicar de que maneira a clonagem de células-tronco difere, do ponto de vista moral, de outro procedimento aceito há muito tempo: a cultura de tecidos. A cultura de tecidos tem sido há décadas um dos principais suportes da pesquisa sobre o câncer. A famosa linhagem de células HeLa, que se originou da falecida Henrietta Lacks em 1951, é hoje cultivada em laboratórios por todo o mundo. Um laboratório padrão, na Universidade da Califórnia, produz 48 litros de célula HeLa por dia, como um serviço de rotina para os pesquisadores da universidade. A produção diária mundial total de células HeLa deve pesar algumas toneladas – toda ela um gigantesco clone de Henrietta Lacks. Durante o meio século desde que essa produção em massa começou, ninguém parece ter feito objeção alguma a ela. Os agitadores que se unem para pôr um fim à pesquisa com células-tronco hoje em dia, precisam explicar por que razão eles não se opõem ao cultivo em massa de células HeLa. É preciso ser coerente”.

Parece que o mundo está grávido de outro mundo. Muito bem, é hora de se questionar tudo: raça, etnia, minorias, opção sexual e outros. Por que, então, não podemos discutir a opção dos que não creem em mitos, religiões ou no próprio Deus?

Richard Dawkins traz à tona um discurso de seu grande amigo Douglas Adams, em 1998:

“Ora, o método científico é, estou certo de que todos vão concordar, a mais poderosa ideia intelectual, a mais poderosa estrutura para a reflexão, a investigação, a compreensão e o enfrentamento do mundo à nossa volta, e ele se baseia na premissa de que toda ideia pode ser atacada. Se resiste ao ataque, ela sobrevive, e, se não resiste, então ela vai por água abaixo. Com a religião as coisas não se passam dessa forma. A religião tem certas ideias centrais, que chamamos de sagradas ou de divinas ou de seja lá do que for. O que isso significa é: ‘Eis aqui uma ideia ou uma noção que não pode ser alvo de críticas; isso simplesmente não é permitido. E por que não? – Porque não!’. Se alguém vota num partido cujas ideias não aprovamos, somos livres para argumentar contra elas o quanto quisermos; haverá atritos, mas ninguém se sentirá lesado por isso. Se alguém acredita que os impostos deveriam aumentar ou diminuir, somos livres para divergir de tal opinião. Mas, por outro lado, se alguém diz ‘Não posso mover uma palha no sábado’, nós dizemos ‘Eu respeito isso’. O estranho é que, enquanto estou dizendo isso, me surpreendo pensando: ‘Será que há algum judeu ortodoxo na plateia, que se sentirá ofendido pela minha fala?’. No entanto, eu não teria pensado: ‘Talvez haja alguém de esquerda ou alguém de direita ou alguém filiado a esta ou àquela visão em economia’, enquanto levantava outras questões. Tudo o que eu pensaria em relação a isso é ‘Muito bem, nós temos opiniões diferentes’. Mas no momento em que digo algo que tem relação com as crenças (vou arriscar meu pescoço aqui e dizer) irracionais de alguém, então nos tornamos todos extremamente paternalistas e terrivelmente defensivos e dizemos: ‘Nós não atacamos isso; trata-se de uma crença irracional, mas, não, nós a respeitamos’. Por que será que consideramos perfeitamente legítimo apoiar o partido Trabalhista ou o partido Conservador, os Republicanos ou os Democratas, esse modelo econômico em oposição àquele, o Macintosh em vez do Windows – mas ter uma opinião sobre o modo como o universo começou, sobre quem criou o universo... Não, isso é sagrado? O que isso significa? Por que razões ergueram uma cerca protetora em torno disso, senão pelo fato de que simplesmente nos habituamos a fazê-lo? Não há absolutamente nenhum outro motivo; trata-se apenas de um acordo que se desenvolveu insidiosamente e, numa espécie de círculo vicioso, tornou-se muito, muito poderoso. Assim, nos acostumamos a não desafiar as ideias religiosas. Mas é muito interessante o furor que Richard cria ao fazê-lo! Todos ficam absolutamente enlouquecidos, pois não é permitido dizer tais coisas. E, entretanto, quando as examinamos racionalmente, não há nenhuma razão por que essas ideias não devam estar abertas ao debate como qualquer outra, exceto pelo fato de que, de algum modo, chegamos a um acordo entre nós de que elas não deveriam estar”.

Voltaire disse que “Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo”. Cá entre nós, Voltaire não mais do que representava uma forma caduca e indolente de divindade, o deísmo... Aqui, voltamos ao problema da biologia da crença: a figura de um ser superior está arraigada em nosso cérebro. É algo que nasce com o homem. Vem no leite materno em bruto e é trabalhado na mente da criança desde cedo, logo é uma ação neurofisiológica.

Considero firmemente que a razão da existência da crença em uma força superior reside, desde a infância, no problema do medo. Esse medo começa no momento em que se entra no mundo, pois saímos da casa de origem: o útero materno. Começamos, então, a jornada numa nova morada – provisória. Portanto, retomo os mesmos princípios aqui e ali, pois são viscerais. Argumentos basilares sobre a existência de Deus, porque estão no interesse de todos, ainda mais sobre as nossas crenças, fatores determinantes e “transformativos” de vida.

A neurociência já demonstrou que a mente é originada da substância física do cérebro e, diante dessa perspectiva, o projeto de alma fica um tanto desabrigado. Aliás, todo o design inteligente. As explicações dúbias, improváveis e fantasiosas, ficam por conta da religião – o mundo como as pessoas desejam que ele seja, mas não como ele é realmente.

Importante, também, é o entendimento de que, se o cérebro fornece escapes fantasiosos à mente e mostra um mundo utópico às vezes, é pelo equilíbrio emocional do indivíduo. Agora, cabe à mente a tarefa de seletor, num exercício do pensamento correto, a prática no desprezo ao caminho fácil e o convencimento de que o método científico é o meio certo para o saber pensar.

Como não podemos ser imortais, o cérebro outorga à mente a possibilidade de desenvolver um tipo de pensamento bastante positivo como fator biológico, até recorrente entre os franceses: Pourquoi y-a-t-il quelque chose plutôt que rien?[2] Também, a ideia de que um ser amoroso cuida de nós, por existir um plano especial nas nossas vidas criado por esse ser amoroso, teríamos sido escolhidos por alguma razão para fazermos parte de algo maior no universo.

O reaprender a pensar, então, implica em apurar a mente como seletor para que o cérebro “entenda” que pode dar suporte a essa mesma mente através de informações neurais, ao atuar num processo em constante evolução.

Precisamos entender as coisas como se encaminham no presente século e tratar a miopia intelectual da qual somos reféns. Em absoluto, não se trata de deicídio, tampouco de matar a espiritualidade em nós, mas de reinterpretar a espiritualidade verdadeira como compromisso com o ser moral e com todos os valores que a religião sequestrou de quem de direito: o homem comum. Essa mesma religião que metabolizou o que era próprio do homem administrar para devolvê-lo como uma regurgitação.

Certa vez, ouvi sobre um sacerdote cristão da sua renúncia ao cristianismo. Ele, quando leu A origem das espécies de Darwin, abandonou a Igreja e apontou o ateísmo como única opção honesta no mundo. Argumentava que um deus de amor não teria idealizado um modelo de existência onde a lei dominante é a luta monstruosa pela sobrevivência num planeta superlotado e ruim.

O sacerdote questionava como um deus de amor poderia estabelecer princípios onde a violência da competição teria, entre os animais e os homens, como regra básica, o resultado da crueldade que vai determinar a sobrevivência dos mais fortes. Aquele que melhor se adapta é o que sobrevive... Que deus é esse de tanto amor que projeta as criaturas para se dilacerarem e infunde nelas, ao mesmo tempo, a capacidade de sentir dores intensas? Que deus é esse que nem ao menos anestesia suas criaturas na hora de serem devoradas?...


[1] Zoólogo e filósofo famoso pelo seu ceticismo, nascido em Nairóbi, Quênia, em 1941.
[2] Por que existe algo e não apenas o nada?

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