REAPRENDENDO A PENSAR
Por que reaprender a pensar? Simplesmente
para juntar os cacos quebrados e usar nosso maior dom, o poder da reflexão. É
um processo que envolve um retorno gigantesco do ponto em que chegamos ao ponto
de partida. Do desvio cognitivo ao ponto de restauração – para que haja reparo
da nossa equivocidade cognitiva e recuperação do tempo perdido. Isso é mais do
que um ato de humildade. Requer vontade, coragem, apego ao conhecimento e
inconformismo com o senso comum.
Quando despertamos para as verdades
científicas, não fica difícil perceber logo de saída que a verdade absoluta pode
até não existir. Portanto, a afirmação de que cada um tem a sua verdade é uma
premissa falsa mantida pelas assertivas do populacho.
Esse tipo de coisa é o que encoraja a
sustentação alucinada de tantas verdades extravagantes que circulam pelo mundo.
Mas é a crença particular no método científico que nos dá um tipo de verdade
diferente das outras: a que pode ser demonstrada com os seus resultados
evidentes. Universais e não individuais. A ciência não joga com baboseiras
esquizoides ou “achismos” alternativos. Uma verdade científica, quando
comprovada, não muda a vida romântica de um indivíduo, muda a humanidade.
Então, como pensar? Como ordenar o
pensamento para não dar voltas no deserto? Normalmente, não olhamos a vida por
um prisma simples. A própria ciência conserva os seus métodos que funcionam
baseados na simplicidade. Mas se a verdade absoluta não existir, o que nos vai
restar então? Resta-nos já, de invariável meio, a adoção de uma divisa: a
dúvida de tudo. A partir daí, só a verdade científica poderá produzir provas e
nos dar respostas reais. Então, à luz do cientificismo, uma verdade será
absoluta, uma vez comprovada, na medida em que seu núcleo se enriqueça com a
adição de outras verdades comprovadas, que gera um processo evolutivo do
absoluto expandido.
Um exemplo disso seria a teoria da seleção
natural de Darwin, provada verdadeira no século dezenove e hoje, enriquecida
por novas descobertas (no campo da genética), nunca perdeu o caráter absoluto
de verdade. A teoria da seleção natural foi amplamente demonstrada por mais de
cem anos. Se caminharmos, entretanto, pelos atalhos da razão, a filosofia vai
sempre questionar a “verdade absoluta”, pois é notório que teorias científicas
do passado foram enriquecidas com o pressuposto de serem verdades absolutas.
O que pretendo mostrar com isso é que,
mesmo em meio a um turbilhão de palpites e opiniões infantis, na tentativa de passar
por coisa séria, uma verdade só é passível de ser comprovada através do método
científico. Nunca pelas pobres divagações religiosas em que o clero tenta se
escorar.
Dentro dos mesmos princípios, Richard
Dawkins[1]
desfaz mal-entendidos que comumente geram confusão: “A ciência não pode responder
se o aborto é um procedimento incorreto, mas ela pode mostrar que o continuum (embriológico), que liga de
maneira ininterrupta um feto desprovido de percepções a um adulto dotado de
consciência, é análogo ao continuum
(evolutivo), que liga os humanos às outras espécies. Se o continuum embriológico aparenta ser mais ininterrupto, é somente
porque o continuum evolutivo é dividido
pelas contingências da extinção. Os princípios fundamentais da ética não
deveriam depender das contingências acidentais da extinção. Para dizer uma vez
mais, a ciência não tem meios de responder se um aborto é um assassinato,
enquanto matar chimpanzés não é. É preciso ser coerente. A ciência não tem
meios de responder se é errado clonar um ser humano completo. Porém, ela pode
esclarecer que um clone, como a Dolly, nada mais é do que um gêmeo idêntico,
embora de idade diferente. A ciência pode nos ensinar que, se quisermos nos
opor à clonagem dos humanos, não devemos apelar para os argumentos do estilo ‘o
clone não seria uma pessoa inteira’ ou ‘o clone não teria alma’. A ciência não
tem como responder se as pessoas têm alma, mas ela pode afirmar que, se os
gêmeos idênticos têm almas, então os clones como a Dolly também têm. É preciso
ser coerente. A ciência não pode responder se a clonagem de células-tronco para
produzir ‘órgãos avulsos’ é incorreta. Mas ela pode nos desafiar a explicar de
que maneira a clonagem de células-tronco difere, do ponto de vista moral, de
outro procedimento aceito há muito tempo: a cultura de tecidos. A cultura de
tecidos tem sido há décadas um dos principais suportes da pesquisa sobre o
câncer. A famosa linhagem de células HeLa, que se originou da falecida Henrietta
Lacks em 1951, é hoje cultivada em laboratórios por todo o mundo. Um
laboratório padrão, na Universidade da Califórnia, produz 48 litros de célula
HeLa por dia, como um serviço de rotina para os pesquisadores da universidade. A
produção diária mundial total de células HeLa deve pesar algumas toneladas –
toda ela um gigantesco clone de Henrietta Lacks. Durante o meio século desde
que essa produção em massa começou, ninguém parece ter feito objeção alguma a
ela. Os agitadores que se unem para pôr um fim à pesquisa com células-tronco
hoje em dia, precisam explicar por que razão eles não se opõem ao cultivo em
massa de células HeLa. É preciso ser coerente”.
Parece que o mundo está grávido de outro
mundo. Muito bem, é hora de se questionar tudo: raça, etnia, minorias, opção
sexual e outros. Por que, então, não podemos discutir a opção dos que não creem
em mitos, religiões ou no próprio Deus?
Richard Dawkins traz à tona um discurso de
seu grande amigo Douglas Adams, em 1998:
“Ora,
o método científico é, estou certo de que todos vão concordar, a mais poderosa
ideia intelectual, a mais poderosa estrutura para a reflexão, a investigação, a
compreensão e o enfrentamento do mundo à nossa volta, e ele se baseia na premissa
de que toda ideia pode ser atacada. Se resiste ao ataque, ela sobrevive, e, se
não resiste, então ela vai por água abaixo. Com a religião as coisas não se
passam dessa forma. A religião tem certas ideias centrais, que chamamos de
sagradas ou de divinas ou de seja lá do que for. O que isso significa é: ‘Eis
aqui uma ideia ou uma noção que não pode ser alvo de críticas; isso
simplesmente não é permitido. E por que não? – Porque não!’. Se alguém vota num
partido cujas ideias não aprovamos, somos livres para argumentar contra elas o
quanto quisermos; haverá atritos, mas ninguém se sentirá lesado por isso. Se
alguém acredita que os impostos deveriam aumentar ou diminuir, somos livres
para divergir de tal opinião. Mas, por outro lado, se alguém diz ‘Não posso mover
uma palha no sábado’, nós dizemos ‘Eu respeito
isso’. O estranho é que, enquanto estou dizendo isso, me surpreendo pensando:
‘Será que há algum judeu ortodoxo na plateia, que se sentirá ofendido pela
minha fala?’. No entanto, eu não teria pensado: ‘Talvez haja alguém de esquerda
ou alguém de direita ou alguém filiado a esta ou àquela visão em economia’,
enquanto levantava outras questões. Tudo o que eu pensaria em relação a isso é
‘Muito bem, nós temos opiniões diferentes’. Mas no momento em que digo algo que
tem relação com as crenças (vou arriscar meu pescoço aqui e dizer) irracionais
de alguém, então nos tornamos todos extremamente paternalistas e terrivelmente
defensivos e dizemos: ‘Nós não atacamos isso; trata-se de uma crença
irracional, mas, não, nós a respeitamos’. Por que será que consideramos
perfeitamente legítimo apoiar o partido Trabalhista ou o partido Conservador,
os Republicanos ou os Democratas, esse modelo econômico em oposição àquele, o
Macintosh em vez do Windows – mas ter uma opinião sobre o modo como o universo
começou, sobre quem criou o universo... Não, isso é sagrado? O que isso
significa? Por que razões ergueram uma cerca protetora em torno disso, senão
pelo fato de que simplesmente nos habituamos a fazê-lo? Não há absolutamente nenhum
outro motivo; trata-se apenas de um acordo que se desenvolveu insidiosamente e,
numa espécie de círculo vicioso, tornou-se muito, muito poderoso. Assim, nos
acostumamos a não desafiar as ideias religiosas. Mas é muito interessante o
furor que Richard cria ao fazê-lo! Todos ficam absolutamente enlouquecidos,
pois não é permitido dizer tais coisas. E, entretanto, quando as examinamos
racionalmente, não há nenhuma razão por que essas ideias não devam estar
abertas ao debate como qualquer outra, exceto pelo fato de que, de algum modo, chegamos
a um acordo entre nós de que elas não deveriam estar”.
Voltaire disse que “Se Deus não existisse,
seria necessário inventá-lo”. Cá entre nós, Voltaire não mais do que representava
uma forma caduca e indolente de divindade, o deísmo... Aqui, voltamos ao
problema da biologia da crença: a figura de um ser superior está arraigada em
nosso cérebro. É algo que nasce com o homem. Vem no leite materno em bruto e é
trabalhado na mente da criança desde cedo, logo é uma ação neurofisiológica.
Considero firmemente que a razão da
existência da crença em uma força superior reside, desde a infância, no problema
do medo. Esse medo começa no momento em que se entra no mundo, pois saímos da
casa de origem: o útero materno. Começamos, então, a jornada numa nova morada –
provisória. Portanto, retomo os mesmos princípios aqui e ali, pois são
viscerais. Argumentos basilares sobre a existência de Deus, porque estão no
interesse de todos, ainda mais sobre as nossas crenças, fatores determinantes e
“transformativos” de vida.
A neurociência já demonstrou que a mente é
originada da substância física do cérebro e, diante dessa perspectiva, o
projeto de alma fica um tanto desabrigado. Aliás, todo o design inteligente. As explicações dúbias, improváveis e
fantasiosas, ficam por conta da religião – o mundo como as pessoas desejam que
ele seja, mas não como ele é realmente.
Importante, também, é o entendimento de
que, se o cérebro fornece escapes fantasiosos à mente e mostra um mundo utópico
às vezes, é pelo equilíbrio emocional do indivíduo. Agora, cabe à mente a
tarefa de seletor, num exercício do
pensamento correto, a prática no desprezo ao caminho fácil e o convencimento de
que o método científico é o meio certo para o saber pensar.
Como não podemos ser imortais, o cérebro
outorga à mente a possibilidade de desenvolver um tipo de pensamento bastante
positivo como fator biológico, até recorrente entre os franceses: Pourquoi y-a-t-il quelque chose plutôt que
rien?[2]
Também, a ideia de que um ser amoroso cuida de nós, por existir um plano
especial nas nossas vidas criado por esse ser amoroso, teríamos sido escolhidos
por alguma razão para fazermos parte de algo maior no universo.
O reaprender a pensar, então, implica em
apurar a mente como seletor para que
o cérebro “entenda” que pode dar suporte a essa mesma mente através de
informações neurais, ao atuar num processo em constante evolução.
Precisamos entender as coisas como se
encaminham no presente século e tratar a miopia intelectual da qual somos
reféns. Em absoluto, não se trata de deicídio, tampouco de matar a
espiritualidade em nós, mas de reinterpretar a espiritualidade verdadeira como
compromisso com o ser moral e com todos os valores que a religião sequestrou de
quem de direito: o homem comum. Essa mesma religião que metabolizou o que era
próprio do homem administrar para devolvê-lo como uma regurgitação.
Certa vez, ouvi sobre um sacerdote cristão
da sua renúncia ao cristianismo. Ele, quando leu A origem das espécies de Darwin, abandonou a Igreja e apontou o
ateísmo como única opção honesta no mundo. Argumentava que um deus de amor não
teria idealizado um modelo de existência onde a lei dominante é a luta monstruosa
pela sobrevivência num planeta superlotado e ruim.
O sacerdote questionava como um deus de
amor poderia estabelecer princípios onde a violência da competição teria, entre
os animais e os homens, como regra básica, o resultado da crueldade que vai
determinar a sobrevivência dos mais fortes. Aquele que melhor se adapta é o que
sobrevive... Que deus é esse de tanto amor que projeta as criaturas para se
dilacerarem e infunde nelas, ao mesmo tempo, a capacidade de sentir dores
intensas? Que deus é esse que nem ao menos anestesia suas criaturas na hora de
serem devoradas?...
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