O PATHOS SECTÁRIO
O sectarismo representa a expressão máxima
de toda a experiência falsídica do sentimento humano. Para escaparmos do
arquitetural de qualquer secta, do
dogmatismo, conformamo-nos com um meio falibilismo[i]
ou nos restringimos ao ceticismo puro.
Em Feuerbach, na sua perspectiva do impulso
religioso, da falsa consciência, verifica-se essa questão: a falta total de capacidade
de perceber a vida como ela realmente se apresenta no plano real. O impulso
religioso é a potencialização da fantasia do mundo.
O sentimento doentio sectário é absorvido,
aos poucos, no meio em que se vive. Se o homem for interpretado como produto do
meio, parafraseando Durkheim, há uma lei de concomitância, normalmente não
percebida, que representa a afinidade eletiva. É a correspondência, por
exemplo, entre o ethos[ii]
do capitalismo e os ditames do protestantismo. Dessa maneira, como ficou
patente a relação entre os dois princípios, é fato a geração do sectarismo a
partir da preponderância da certeza injustificada. O sectarismo pode vir a ser
crime, fonte das guerras. Já a religião, na capa do protestantismo, como
afirmava Nietzsche, “é a espécie mais suja de cristianismo que existe, a mais
incurável, a mais irrefutável...”.
Nietzsche não cria, portanto não se
preocupava com os mistérios transcendentes. É o problema da maioria que,
baseada na sordidez dos exemplos humanos, desenvolve uma visão turva de Deus.
Nietzsche viveu uma infância cheia de perturbações. Seu pai era pastor
luterano, Karl Ludwig, que morreu jovem. O menino Nietzsche já era estranho e contrário
ao convívio social. Queria seguir o ministério pastoral como o pai, mas deixou
a ideia ainda cedo, pois diante dos maus exemplos do cenário luterano da
juventude, sobreveio a repulsa pelo protestantismo.
O ponto principal deste livro é a tentativa
de desconstrução do sistema sectário, portanto, o esforço maior que podemos
encetar está na admissibilidade de um todo-poderoso sem compromisso com
definições, jugos, raios nas mãos e sem as barbas brancas que abrigam o rancor
contra a humanidade. O sectarismo esconde as suas garras na geração do medo, ou
melhor, sem querer ser tautológico, ou fiando teia dogmática, a secta sustenta a parceria velada com o
terror da infalibilidade do inferno.
Sören Kierkegaard teve um pai
desequilibrado que o acusara de filho de Satã quando menino. O senso exagerado
de pecado ficou arraigado em Kierkegaard de maneira profunda em sua infância. Era
uma família de religiosos rígidos e o resultado para ele foi o de levar a vida
com extrema frieza. Ainda assim, ao contrário de Nietzsche, entendeu de outra
forma o cristianismo a ponto de acusá-lo profundamente, mas com grande carga de
angústia, devido à sua criação. Chegou a ponto de declarar: “Fui um velho desde
que nasci e jamais tive infância nem juventude”. Dizia que os ensinamentos de
Jesus foram pervertidos pela Igreja e que o Estado remunerava os pastores para destruírem
o cristianismo... Ele acusava de vileza os sacerdotes que viviam do nada,
porque o cristianismo para eles, atestado pelas suas próprias vidas, não
passava de um nada. Pelo menos, como um devoto cristão, tornou-se implacável
contra o cristianismo corrompido daquela época. No entanto, ao contrário de
Nietzsche que era o inimigo da fé e ícone do ateísmo, ambos vitimados pela
falsa praxis religiosa dos pais,
Kierkegaard legou-nos uma obra literária que é a condenação da vida
superficial, firmando-se na trajetória de fé honesta em Cristo. Kierkegaard
mostrou ao mundo a possibilidade do genuíno cristão não se deixar tragar pela
sombra sectária, embora também carregasse um terrível fardo de neuroses pela
opressão da própria religião.
Qual o instrumento de trabalho do
profissional do sectarismo? A mentira[iii].
Só que é necessária uma pitada de verdade sem grão de mostarda[iv]
para exercer uma profissão sacerdotal com êxito.
Pois bem, na sedutora culinária do
protestantismo extorsivo, é preciso tempero no prato: uma camada bem cremosa de
volúpia; pitadas de cinismo e uma xícara cheia de voracidade dinheirista. Pulveriza-se
por cima dolo em abundância e, por fim, fatias de talento na arte de enganar,
de ator perfeito, tudo para ser assado no forno de Belzebu. Sobremesa, papo de
anjo decaído com calda de má-fé. Depois, um café expresso marca Hades e um licorzinho libidinoso. Um
charuto de enxofre para o finale,
irmão.
A indústria da fé é lucrativa para os
líderes, mas extremamente lesiva às suas vítimas e a que mais causa sequelas.
Dela participa a maioria dos profissionais do altar. Vampiros clericais, potentados
hematófagos que competem entre si na captura sôfrega dos incautos que buscam
novidades. São os profissionais que tiram o pão da mesa do pobre,
oferecendo-lhe o paraíso. Os que pregam: “Não mentirás!”. Paraíso? Que paraíso?
“Armem os palanques, irmãos!”, disse um
bispo doloso ao séquito de ovelhinhas mal ajambradas, pobres e iletradas. “Paz Sô!”
– forma coloquial e ignara da saudação “a paz do Senhor” –, repetiu o
desafortunado seguidor. “Vamos fazer a obra, irmãos!”, novamente o bispo.
Assim, seguiu o cortejo de aparência imbecil, mas cheio de dolo, atrás do líder
e esposa, uma “perua de Deus”, dessas que acompanham o bispo daqui pra lá e de
lá pra cá. Se seguissem a Jesus de fato, venderiam seus bens, ou pouco, ou
muito, dariam aos pobres e iriam estudar ou procurar um emprego decente. Algo
que não enganasse os outros. Os pobres, então, também deixariam de esperar as
coisas caírem do céu e sairiam em busca de algo melhor. Se mais valem duas mãos
postas no trabalho do que cem mãos postas em oração, parafraseando Marx, toda a
história da fé é a história da luta entre religiões...
A natureza excludente afigura-se como o
maior sintoma do sectarismo. Os falsos profetas têm e mantêm o interesse em
regar essa terra. Reportando-nos ao cenário calvinista, virá à tona a declaração
mefistofélica do próprio Calvino, quando lhe arguiram sobre como obter a
certeza da salvação: “Deveríamos ficar felizes em saber que Deus fez a escolha
para os que foram predestinados à salvação”. Quantas vidas ele conseguiu
destruir propalando algo tão tendencioso e excludente?
Se o venerando ministro, no exercício das
suas nobres e altas incumbências, que lhes foram outorgadas do além, não
aplicar as doses de incerteza, de que jeito poderá manter viva a exclusão? Em
relação aos neófitos, nada de dúvidas, porque a desconfiança sempre recai sobre
os desconfiados. É preciso crer. Cego, quieto, para que se produza a atmosfera
do sorriso ingênuo nos rostos felizes e conformados. Então, repetem: “A paz do
Senhor, irmão”.
Aceitamos líderes e criamos deuses segundo
as exigências do nosso medo. Seremos, pois, escravos daquilo que criarmos. De Santa Claus[v],
que nos leva a cumprir compromissos no natal e enriquecer as fantasias de
nossos filhos; de uma “entidade” que nos obriga a compromissos em
encruzilhadas; de líderes que nos exigem a guarda do sábado numa sinagoga; ou de
frequentar a escola dominical de um templo por livre e espontânea pressão...
São os mesmos que nos cobram votos levianos (considere-se que sem aceitação
mútua não há voto possível) a um deus qualquer, até de engolir as hóstias do
caminho. Temos que entender a nossa época e o beco sem saída da religião.
Também o esgotamento dos meios e as razões da existência do mercado da fé. Tudo
é consumo e a fides não foge à regra!
Nem por isso a ansiedade do homem diminuiu.
Porque todos bem sabem o que é mentira. As recordações de Adão e Eva? Mas somos
adâmicos em potencial, prontos para o ilícito, para o consumo, capitalistas
libidinosos e sem limites. Somos honestos diante das divindades ou tememos ser
pegos com a “mão na botija” sem a Bíblia na mão? Ou com ela, pouco importa. Por
medo, somos.
Quando o homem se encontra impotente para
entender a verdade das coisas e as consequências invisíveis da aleatoriedade, descobre nas fantasias religiosas dos
mais “sábios” do que ele, as respostas para as suas muitas dúvidas. Mas, segundo
Hobbes, qual o ser humano que pode acreditar em religiosos hipócritas, avaros,
injustos, que cobram muito do rebanho e só revelam ambições pessoais? Faltando
justiça, não há fé. Faltando milagres, também não haverá fé. Portanto, a falta
de virtude dos clérigos provoca no povo a falta de fé. Líderes serpentiformes
da teologia pestilenta. A Bíblia diz que “a fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela palavra
de Deus”. Sem testemunho não há fé, mas litígio, rancor. É uma guerra de todos
os homens contra todos os homens, pela falta de testemunho, uma condição de
guerra de todos contra todos, das potestades do ar às potestades daqui... Condição
miserável a do homem, pela sua própria natureza. E, enquanto o clero achar que
tem o direito de fazer o que bem entender por trás dos dogmas, a condição de
guerra espiritual será uma constante para todos. A doutrinalha nos afasta da
paz. Isto, pela falta de exemplo – o sectarismo inventou a guerra espiritual.
Nada se rompe mais facilmente do que a
palavra de um sectário. Nada é mais frívolo do que os votos de um religioso
crônico. Ele acusa para se autoafirmar, cobra antecipadamente dos outros, pois
tem medo de que a sua falta de firmeza e hipocrisia aflorem aos olhos da
sociedade... Nada é mais sórdido do que o santarrão, o falso-beato-oculto na
luxúria dos altares e dos púlpitos, camuflado pelo véu de Iscariotes. Trinta
moedas... Muito pouco, já que não existe mais dinheiro sujo e nada é mais sujo
para aqueles que tomam o bocado molhado[vi].
Arrastamo-nos até aqui. Século vinte e um.
O engodo religioso permanece a maiori
usque ad minus[vii],
como era desde o surgimento do homem, seu autor, mas sucumbimos à adulação
astuciosa da religião, justamente porque somos humanos. Humanos irracionais. Os
animais pertencem ao grupo dos irracionais simples, enquanto que o homem
pertence ao grupo dos irracionais complexos.
É na fome, na sede, na curiosidade, que
mordemos a isca. Quando o antílope se aproxima do regato para beber é que o
leão o devora. Quando deixamos nossos mecanismos da razão de lado é que somos
apanhados. Mas, ao percebermos qualquer verniz de amor religioso, a razão não
se releva e de nada mais valem os mecanismos cognitivos... O homini religiosi é constituído somente
de emoção e o mito abraâmico se pretende verdadeiro pelo brado do anjo no céu:
“Abraão, Abraão!”. E os heróis foram inventados.
Não adianta, precisamos crer. Precisamos?
Não nos impingem agora a “crença na crença”? Temos que ser depositantes de algo
que represente segurança, investimento para o futuro. Precisamos garantir o
mínimo de sensações, pois elas fazem parte do nosso equilíbrio biológico que
nos empurra para frente. Não há como não lavar as escadas das igrejas. É orgásmico.
Catártico. A maioria de nós tem necessidade emocional e psicológica dos
mecanismos purgativos da religião, mas não precisamos ser extorquidos! Se a
salvação é oferecida através dos evangelhos sem nenhum ônus, por que o clero se
profissionalizou? Por que nos explora? Por que nos frauda? Por que o mito nos
alimenta e o clero nos anestesia? Ele pouco crê no que prega. Sabe que é
ilusão, mas o povo os sustenta assim mesmo. Ficamos em busca do Jesus
histórico?
O clero nos obriga a enxergar através do
mito... O que seria de Gotham City sem
o homem-morcego? Ou mesmo de nós, se a “santíssima Virgem” não fosse divinizada
para proteger a cidade? Nossas ilusões chegaram ao fim porque a massificação do
sem sentido, imposta pela mídia voraz, esvaziou nossos sonhos por completo.
Branca de neve, que no passado encantou gerações, hoje é sugerida como história
underground, mais um caso de estupro
pelos anões. Assim, o sentimento ficou sujo no mundo de hoje. O Belo foi
amputado e o santo pervertido.
Outrora, falava-se da Igreja com
reverência. Hoje ela é associada àqueles que a defraudaram, aos vorazes
clérigos sanguessugas ou aos campeões da pedofilia... “Sai dela, povo meu!”,
diz o Senhor. Saímos dela, mas para aonde vamos agora? Quem nos afagará antes
de pegarmos no sono? Ou quem nos contará mentirinhas que dão o esconderijo para
as nossas concupiscências? Quem nos livrará do peso da realidade assombrosa?
Pela manhã, ao sairmos para o trabalho, ao encontro das nossas vítimas, quais
medalhas devem ser beijadas? Então, qual o santinho predileto ou qual das nossas senhoras pode se escolher num cardápio tão variado? “Mas Nossa
Senhora é uma só! É que ela usa muitos nomes...”, diz o beato. Quem será o avalista
das nossas injustiças? E se optarmos pelo fradinho Lutero? Vamos à caixinha de
promessas para tentar a sorte. Nossa Senhora! A Senhora não é minha, é tua...
Assim, chegamos ao pior de tudo: a existência conceitual de Jesus.
“Então, senhores, somos ou não
necessários?”, indagou o sacerdote. Agora, a quem confessar? Quem se incumbirá
de nos passar o dever de casa – rezar por isto e aquilo, aliviando nosso
apetite carnal? De camuflar nossa libido? De quem virá o endosso para manter o
disfarce sombrio das nossas injustiças? Quem é suficientemente forte para abrir
mão da igreja que inventamos?
Precisamos de alguém que coloque nossos
nomes no quadro de dizimistas de uma igreja qualquer para que sejamos eleitos
como salvos e remidos. Na pior das hipóteses, nos tragam a convicção de
estarmos a caminho de alguma coisa melhor do que esta porcaria daqui. Aí,
perguntam ao santo quando ele menos espera: “Escuta aqui, tenho que me salvar
de que mesmo?”.
Em tempos passados, observei na rua um
grupo de mulheres, Testemunhas de Jeová[viii],
nitidamente reprimidas e envergonhadas por serem induzidas a oferecer, de porta
em porta, uma série de enlatados teológicos em forma de revistas. Demonstravam
esse sentimento reprimido e faziam uso do mesmo discurso para vender suas
ideias. As donas de casa, em meio aos afazeres, por educação, atendem a mil e
um toques de campainha para ouvir discursos vazios. Eu mesmo, por extrema
ingenuidade, ainda bem que na minha infância, já vendi[ix]
muitas dessas publicações de casa em casa para alimentar os cofres de Jeová.
Fui uma dessas Testemunhas do Salão do Reino e, quando criança, tinha pavor de
Jeová. As moças estavam muito acuadas, oprimidas e tristes. Tinham que
apresentar os resultados na volta ao “Salão”, mas espremiam-se de vergonha ao
cruzar por conhecidos no caminho. “Que droga, eu por aqui...”, com certeza
passou por uma daquelas cabeças. Ou por mais de uma. Ou por todas. Pelo menos,
no subconsciente. Bem, passou pela minha cabeça quando criança... Por que,
arrazoando, essas mulheres não trabalham em algo que incomode menos a
população, batendo à porta dos outros para propor salvações ou ingressos para o
clube dos 144 mil santos afortunados que vão
reinar pela eternidade?
É preciso que o sábado seja guardado. Viva
os adventistas. “O irmão já fez sexo no sábado?”, indagou o sabatista. Viva
também todos os outros evangélicos que não guardam o sábado ou o sexo! Se
observarmos bem, a maioria das editoras evangélicas publica turbilhões de
livros de orientação sexual. Como fazer isso, como fazer aquilo. O todo-poderoso
deve ter criado o sexo e o homem inventou os manuais, porém os cachorros não
precisam de orientação sexual. De tão puros, fazem na rua. Santos sorrelfos!
Viva os mórmons que, lá na América, alguns
são polígamos... Que estranho, mas os daqui não! O que andou Salomão fazendo lá
pelo Oriente? Não foi poligamia? Isso não nos diz respeito, Deus perdoou o rei.
A religião foi criada para aqueles que precisam das historinhas que ela conta e
até a neurociência concorda com isso.
Felizmente, há os verdadeiros, os puros de
coração, que não foram o foco deste livro até agora. Façamos uma prospecção. Foram
eles nascidos das instituições ou forjados por alguma denominação? Temos que
nos preocupar com os crápulas, com os monstros espirituais que se empoleiram
nos púlpitos para sugar a veia do pobre. São crápulas os líderes religiosos que
mantêm o coração empedernido diante da singeleza dos seus neófitos, dos seus
contribuintes dizimistas fiéis. Tratamos dos ratos que visitam os bolsos do
incauto. Denunciamos os líderes que, como não tiveram talento para ter uma
atuação mais útil, encontraram o caminho fácil de uma ordenação arrumada no
interior de uma igrejinha qualquer, ou até mesmo de um desses seminários
furbescos[i], que
têm como meta iludir os pobres da periferia. Aqui não criticamos os líderes que
se esforçam no ideal cristão, pois alguns têm até boa formação acadêmica em teologia
financeira. Citamos os monstros do clero que se alimentam da gordura das ovelhas
e sem formação acadêmica alguma. Mas o que significa a formação acadêmica de um
doutor em divindade? Entretanto, não falamos do possível, do homem em verdade.
Da possibilidade do livre, do feliz. Da estética espiritual, do Belo.
Zebulão, jovem bem intencionado, decide-se pelo
ministério pastoral. Quer “servir a Deus”. Cursa um seminário, o primeiro
estágio da decepção. Já pronto, ao considerar que seu ministério hoje não é como
nos tempos bíblicos, com dificuldade admite ser um profissional da fé. No
início do pastorado, começam os conflitos íntimos: a vontade de servir a Deus e
as ordenanças da cúpula de sua instituição. Então, o que fazer? Estabelecer-se
como comerciante e abandonar o ministério? Agora, para sobreviver, qual saída
buscar? A conclusão chega logo: “é melhor viver pela fé e esperar as soluções
do Altíssimo”... Afinal de contas, Zebulão investiu muito com a teologia e
ainda pode vir a ser um doutor em divindade[ii]. Com
o tempo ele se acomoda, lembra de que para ser João Batista tem que perder a
cabeça e desiste do purismo, preparando a horta para regar o dinheiro que
começa a brotar... Valeu a pena, não é irmão? É sempre melhor viver pela fé,
“engolir os sapos” da cúpula, pois a coisa fica boa com o tempo. Quase sempre
dá para arrumar a vida e, nos dias de hoje, o importante mesmo é um bom
emprego. Nem todos são assim, é lógico. Quem sabe a maioria?
Mais adiante, o ministro se casa. Vamos
escolher um nome para a sua mulher... Pronto: Antonieta, jovenzinha sensual,
mas com um coque brutal adornando sua cabeça vazia. Tempos atrás, as mulheres
pentecostais disputavam a santidade com o tamanho dos coques... Era um selo,
marca de fé. Antonieta também decide ser pastora, porque a mulher se liberou
para o clero. Até bispa já tem, vade
retro Satana[iii]! A menção do mal não significa machismo,
mas princípio teológico cultivado pelos antigos. Aí, surgem os filhos, um monte
deles, e a vida fica cada vez mais difícil. Quando não tem jeito mesmo para ser
outra coisa, nem há jamais competência para tal feito, o profissional está
realmente formado e aí começam as concessões. Não me detive em falar sobre
padres, pois acho que estão em extinção. Ai de vós, pastores de Israel!
A força motriz para o surgimento de todas
as seitas e fanatismos é a irracionalidade do visionário, mas a raiz das ações
corretas, como do bem inconteste, é o ser moral. Um paradoxo, mas a verdadeira
santidade está nas ações corretas e não na religião. O ser moral é o
compromisso com os padrões íntimos, irremovíveis, soberanos, enquanto que o ser
religioso é o compromisso com o instável e o duvidoso. O ser moral é ditame
maior, pois emana da consciência do dever com o per si, entretanto, o ser sectário é o divinatório. De conduta
desviante, flutua na divinação: é o château
en Espagne[iv]...
Pois bem, chegou o momento de tratarmos de
uma tendência que paira sobre todas as criaturas do século vinte e um: a troca
da religião por nenhuma religião. O religare
tem sido somente com o deus de cada instituição e não com a causa
incognoscível. Os deuses cansaram, pois não fazem nada e ficaram em silêncio.
Até os da barbárie, onde, no Oriente Médio, multidões islâmicas ainda apedrejam
um muro que representa o Diabo. O Diabo deveria ser apedrejado por amor à
verdade. Apedrejemos, então, os autores da velhacaria sectária.
Quando, depois de anos de visão obliterada,
pude encontrar a lucidez necessária para discordar da Bíblia, descobri o que é
ser livre realmente. Não por questionar a palavra dita de Deus, mas por
concluir que o homem interferiu absurdamente nessa palavra. Engendrou coisas
para dominar o seu semelhante, criou o discurso do medo e introjetou o
sectarismo no coração do neófito inocente. Tudo para a perpetuação da
teocracia. A “Palavra” foi inventada.
Nos dias enganosos de hoje, qualquer pessoa
com um nível médio de visão pode perceber a montagem da Bíblia, assim como,
democraticamente, continua com todo o direito de interpretar as suas páginas
como divinas. A conjuntura em que vivemos torna isso cada vez mais claro,
entretanto, a tendência do homem em aceitar uma nova realidade, cada vez mais
se pronuncia em todos os cantos da terra. A venda escorregou dos olhos mais
atentos.
Por que temos que nos enganar, insistir na
fantasia? O homem já percebeu o mito adâmico e a construção tendenciosa de um povo escolhido que perambulou pelo
deserto em busca da terra prometida. Um povo que “encontrou uma filiação divina”
mesmo sendo tão idólatra como todos os outros povos que a história tem notícia.
A jogada mais astuta das bandas mesopotâmicas, a invenção mais perfeita da Antiguidade:
o povo judeu. O caminho foi preparado para a outra grande invenção: o
cristianismo! Dupla genialidade.
De Israel a Roma: por que haveremos de
beatificar e canonizar santos, memórias, pela vida afora? A estratégia da
indústria dos intercessores canonizados deu certo. São excelentes assessores
divinos, devido à agenda ocupada do todo-poderoso. Melosos e melífluos.
Generosos, permitem as relações mais esquisitas com os devotos, intimidades e
parcerias que chegam às raias de devaneios estranhos... Fantasias infanto-juvenis.
Historinhas que engolimos da santa madre Igreja. Historietas róseas, gostosinhas.
O hipotético brado na cruz: “Elí, Elí, lamá
sabactaní”[v], dá-nos
a perceber que Deus foi obrigado a deixar que todo o pecado da humanidade, num
só instante, recaísse sobre Jesus, caso contrário a redenção jamais poderia se
consumar. Fazendo um esforço peritoneal para pensar com a cabeça de um
protestante, sou levado a concluir que no passado Deus teria abandonado seu Filho
para que se cumprissem antigas
profecias adaptadas sobre o suplício do Messias... Então, como Deus voltaria
atrás nos dias de hoje, uma vez que todas as profecias parecem demonstrar que
chegamos ao ocaso da história humana? Pobre do homem na ilusão de Deus...
Visto por esse ângulo, a história se
repete: o todo-poderoso estaria impedido de interferir na existência dos moradores
da terra, pois vige a sua palavra. Mas como qualquer deus pode atender a um e
não atender a outro? De que forma o livramento do mal pode ser concedido
somente a um? Outro? Mas e o grande Outro com sua promessa? Postula-se melhor, então,
a decisão equável – todos às traças, a menos que haja ouro para a secta.
A questão fica assim: quais as situações em
que Deus interfere hoje em favor da humanidade? Inexequível. Voltamos ao
injusto sugerido. Segundo as escrituras, a interferência está na razão direta
da fé individual, ou não. Se permanecer o critério de se alcançar a dádiva pela
fé, então, nunca chegaremos ao fim dos tempos. Seria concessão, se visto
através do perfil escatológico. Concessão é dúvida. É estranho e não seria
aplicável, pois desabona os deuses.
Resta-nos, assim, a conclusão sinistra de
que o todo-poderoso, por fidelidade própria, foi obrigado a deixar a humanidade
ao léu... Segundo a Bíblia, chegamos ao fim dos tempos – a análise tem que ser
correta –, não há mais saída. As interferências divinas, descritas nos clichês
da “história sagrada” de outrora, não ocorrem mais na mesma ordem. Agora é o
botão do dane-se que foi apertado...
Ficamos mais ou menos desse jeito: a terra
é de ninguém, o filho grita pela mãe... Está gritando de teimoso! A mãe é
surda, o filho chora e ela não ouve. Então, não é aconselhável muita esperança
para não se afogar nela. Mas, se repensarmos a visão fideísta a qualquer preço,
ficaremos diante de um neopascalismo. Mesmo que Deus tenha deixado a humanidade
de lado para que as profecias se cumpram, ainda assim, é mais seguro crer nele.
Caso contrário, a fé deixaria de ser uma dimensão antropológica. Entretanto,
não existindo Deus, segundo o que o evolucionismo propôs, resta-nos a
existência biológica – o festim das minhocas!
Como em todo lugar onde tem oxigênio tem porcaria,
vivemos em uma colônia penal, pois fomos condenados à vida. O uso da fé pura e
simples não nos exime da condenação à própria existência, já que fomos, por
todas as crenças, exprobrados e premiados com a maxima culpa! É coisa de nascituro, pois já vem antes de se chegar
à luz... Somos culpados porque murmuramos, damos voltas no deserto, reclamamos
do maná e das codornizes, somos falhados congênitos. Não pedi para nascer, não
pedi para sofrer e tenho que trabalhar. Porém, trabalho não mata, só aleija.
Quem mata manda no Olimpo e o resto é trabalhar, envelhecer. Depois de purgar
como um escargot, morrer. Funciona
assim mesmo e o grande desafio é encontrar Deus fora do Olimpo, ou seja, na
colônia penal. Nós, de camisola branca, rodando o moinho. Será que Deus vai
perder tempo, visitando colônias penais? Tenha dó...
Depois de Darwin, ficou tudo mais claro. Surgiu
um novo deus. Deus após Darwin! E agora José? No caminho tinha uma pedra, a
pedra é a evolução das espécies com a proposta da vida puramente biológica. Foi
a perda do significado de tudo: o feto niilista cresceu e virou homem! Mas e
agora, Deus meu? Ou Deus teu. Estamos prontos para a realidade? É mais fácil
recuar.
Por conta da seleção natural, os mais
resistentes se adaptam à natureza, sobrevivem aos mais fracos, pois são mais
adaptáveis e, então, a criação divina através de um projeto inteligente, do
desígnio, cai por terra... Se a natureza se incumbiu sozinha de desenvolver e
de projetar a vida, onde se situa o Criador? Por que insistir em explicações
religiosas para o início da vida se a ciência explicou o essencial e o cabível?
Já explicou o essencial, sim! E ainda vai explicar o que falta. A natureza não
cumpre o papel de ser boa nem má. É sem crueldade, pois é sem valores humanos.
Não é cruel, é real.
Conta-nos John Haught[vi] que
um sacerdote cristão, diante do quadro de Charles Darwin sobre o evolucionismo,
abandonou a Igreja e apontou o ateísmo como a única opção honesta no mundo.
Haught argumentava que um Deus de amor não poderia ter idealizado e planejado
um modelo onde a lei dominante é uma luta monstruosa pela sobrevivência em um
planeta superlotado. Questionava como um
Deus de amor poderia estabelecer princípios onde a violência da competição
teria, entre os animais e os homens, como regra basilar, o resultado da
crueldade que vai determinar a sobrevivência dos mais fortes. O mais cruel, o
mais astuto e o mais sagaz é que sobrevive, ou que melhor se adapta
geneticamente? Como um Deus de amor projetaria uma cadeia de existência cruel
onde criaturas sensíveis são obrigadas a devorar outras tantas criaturas
igualmente sensíveis e estabelecer, assim, o pior dos sofrimentos? Que Deus é
esse de tanto amor que projeta as criaturas para se dilacerarem e infunde nelas,
ao mesmo tempo, a capacidade de sentir dores intensas? Que Deus é esse que nem
ao menos anestesia suas criaturas na hora de serem degustadas? Mas não é Deus,
é a natureza que promove isso e pronto. Qualquer deus não tem nada a ver com
isso. Esse deus é um quarto vazio.
Depois de Darwin, a religião é despida de
significado, discute-se o projeto inteligente divino. Na verdade, os argumentos
da razão desbotam os mitos. Jamais vi em qualquer ambiente clerical uma
discussão honesta sobre evolução, pelo contrário, antes o que se vê é repulsa,
sobretudo dos protestantes, às “ideias perigosas” de Darwin. É proibido abrir a
boca na Igreja. Só para bocejar, é claro, pois fica duvidoso e comprometedor
para os fiéis.
Há algum tempo, vi um pregador protestante
na televisão ser questionado por um seguidor se o homem foi criado por Deus
antes ou depois dos dinossauros... Então, o pregador espertalhão[vii]
respondeu que o homem fora criado, sim, antes dos dinossauros. Disse mais: que
esses bichinhos sauriópodes foram extintos do planeta pelo simples fato de não
terem entrado na arca de Noé. Tipicidade do florilégio-cultural-evangélico.
Acho que o pregador é que ficou fora da arca.
O homem é incapaz de demonstrar a
existência de Deus pela razão, já que qualquer tentativa de prova é
pretensiosa. São Tomás tentou, mas não conseguiu desvincular a fé da razão. O
que o Estado e ele pretendiam era firmar o povo na fé. No anedotário da
religião, estaremos sempre diante do intrumentum
regni[viii] do
Estado, mantenedor do sectarismo, que assegura os interesses das classes
dominantes. Assim, a maioria absoluta dos iletrados é induzida a crer cegamente
na estratégia do sectarismo. Escravizam-se sob o conformismo das injustiças
desse mundo e, através da crença opaca, tornam a deglutição da miséria muito
mais fácil. É notório que o Estado alemão, entre outros, renunciou ao
materialismo público e explícito por medo das massas: Die Religion muss dem Volk erhalten werden![ix]. Os
governantes nunca se declaram descrentes, ateístas, pois poderão sofrer a
cobrança do sangue dos miseráveis, dos quais as esperanças lhes foram retiradas.
“O que fazermos diante de tamanha fome?”. Perguntou o povo. “Que haja sexo, religião
e futebol![x]”. Respondeu
o Estado.
Numa perspectiva cosmogâmica, o homem simples
do povo não pode perceber que, desde a sua origem, está mergulhado numa solidão
total e absoluta. A partir desse estado de ignorância, ele é vítima de todo
tipo de fraude espiritual, de mitos e historinhas infantis divinizadas. Fica
preso, atrelado ao medo de dar um passo que o faria, senão feliz, pelo menos um
tanto livre. Na Pré-História, devido à imensidão do cenário que o cercava, ao
carregar sempre a pequena brasa numa gaiola para acender sua fogueira, talvez o
homem percebesse a solidão completa. Na sociedade atual, porém, é pouco perceptível
por ele esse insulamento, devido ao estado do planeta superpopuloso e
dispersivo em que vive. No mundo pluriarticulado, temos o espaço ideal para a
proliferação dos mitos. Já que não encontramos meios para nos aliarmos à
solidão, ela se torna o espectro que ameaça nossa existência. Aí, surge a
religião, o compensatório do ininteligível.
Quando, com convicção, admiti e sustentei a
falibilidade da Bíblia, jamais desconsiderei sua possibilidade positiva em relação
ao aspecto transformativo no homem. Entretanto, aos poucos, fui me desjungindo
da religião e atentando para o mundo
real.
Vários séculos antes das escrituras serem
compiladas, fatos bíblicos apenas faziam parte da tradição oral. Imaginemos: se
com o livro já escrito, com a técnica do velho sermão encomendado, alteraram-no
tantas vezes, quanto mais na sua fase embrionária?
A historicidade bíblica, de fato,
representa uma completa ruína. O Gênesis e o Êxodo foram escritos mais de mil
anos depois da imaginária migração de Abraão. Isso, em nome de uma construção
de fé, como um projeto para desdobramento teocrático futuro, que vá lá... Mas
como visão de método histórico-crítico, pelo amor de Yahweh! A religião não se
fundamenta na história e, cá entre nós, que Deus violento, ciumento e vingativo
os judeus criaram, não?... É só pensar um pouquinho. Então, para que se falar
em história? Por que não ficar apenas com Harry Potter? Pelo menos não produz
culpa nem neurose.
Não pretendo perturbar os crentes, pois os
que não querem ver o mundo como realmente é, ou melhor, sem sentido de per si, hão de rotular-me como lobo
devorador das ovelhinhas. Sinceramente, porém, quero ajudá-los a sair do
medievo para a nossa época. Mas isto só será percebido por eles depois de
passado muito tempo da leitura do presente livro. Primeiro, instala-se o medo
do que digo e o choque de uma possível realidade. Depois, a ameaça aos nossos
falsos valores conscientemente construídos sobre as dúvidas que abrigamos, mas
cheias de disfarces. Por fim, a revolta, o ataque e, depois, a indiferença. Só
que, com o passar do tempo, essas coisas estarão sedimentadas no subconsciente
daqueles que forem afortunados, como eu, ao retê-las um dia. No futuro,
entretanto, a reflexão terá o seu lugar – o exercício do pensar substituirá a
ilusão e o encarceramento da nossa percepção religiosa.
O apóstolo Paulo teria escrito as suas
cartas nos anos 50 d.C. e jamais chegou a ler qualquer um dos Evangelhos, pois
foram escritos muito tempo depois da sua própria época.
O Evangelho de Marcos foi o primeiro a ser
escrito, em torno de 70 d.C.; Mateus e Lucas, entre 80 e 85 d.C.; o Evangelho
de João entre 90 e 95 no mesmo século. A Bíblia não é una, é plural! Por isso,
o maior golpe de marketing da antiguidade
foi dado por Constantino, pois vendo um império absolutamente fragmentado,
resolveu unificá-lo através da religião cristã que, até então, era perseguida,
tornando o cristianismo religião da moda. Por isso, o cristianismo se perdeu.
Teodósio, no século IV, consolidou então a obra que Constantino dera início –
oficializou o cristianismo.
Na verdade, não possuímos em qualquer
fundação ou museu do mundo um só original dos livros do Novo Testamento. É isso
mesmo! As cópias das cópias, das cópias, dos milhares de cópias que existiram
anteriormente, foram produzidas muitos séculos depois dos fatos “ditos”
ocorridos. Todos os livros do Novo Testamento foram escritos em grego
tardiamente.
Os acontecimentos da vida de Jesus não
foram escritos por seus contemporâneos, que eram analfabetos, pescadores rudes
que mal sabiam falar o aramaico, quanto mais terem o preparo para ler e
escrever. Como pescadores da Galileia, trabalhadores braçais, poderiam ter
preparo para escrever em grego? Assim, todos os fatos foram registrados em
torno de 35 e 65 anos após a morte de um Jesus não histórico, escritos a partir
de tradições e relatos orais, obviamente sofrendo todo tipo de interpretação
pessoal de cada grupo. O telefone sem fio. Triste saber disso, não é? Desolador
para quem colocou sua vida nessa esperança pálida... O que Jesus disse? O que
Jesus não disse? Na verdade, ninguém pode afirmar nada ao se considerar tantos
séculos de distorções dos relatos iniciais. Afirmar pela fé? Mas não é de fé
que falamos e sim de verdades – buscamos fatos históricos, e no século vinte e
um! O que é a fé senão acreditarmos naquilo que sabemos que não é verdade? Contumácia.
Vivemos ainda a fé fantasiosa, medieval. Fé para exibir ao próximo. Exteriorização
de sentimentos ensaiados, que não temos. Uma palavra na boca, outra no coração.
Nos séculos II e III, existiam grupos com as
interpretações mais diversas sobre o cristianismo. Eram ebionitas, marcionitas,
cristãos gnósticos e proto-ortodoxos. Os últimos prevaleceram nas ideias, ao
canonizar as escrituras, achando que as brigas teriam fim. Nessa época, os
copistas cometeram os maiores erros, voluntários ou não. O fato é que as
escrituras foram escritas de maneira humana, demasiado humana. Neste livro,
grafei a vogal inicial da palavra “escrituras” em minúscula pelo simples fato
de entender que escrituras não são apenas as cristãs, mas as judaicas, árabes e
hindus também. Portanto, além de todas terem sido construídas por homens semianalfabetos,
muitas vezes até insidiosos, o conceito linguístico é mais geral do que
particular.
Vale lembrar que foi no concílio de Trento
que a Bíblia passou a ser considerada como um conjunto de textos de inspiração
divina e isso devido aos católicos. Do cunho histórico ao teocrático.
O homem não perde a mania em dar crédito às
fabulas dos que aparentemente “olharam, mas não viram”, aos profissionais do
sagrado, copistas ou não, traficantes da fé que se especializaram em criação de
lendas para amenizar dias difíceis. Tal qual roteiristas de novela com a missão
de nos ocultar a imensa solidão em que estamos submersos, mas de gustibus et de coloribus non
disputandum...[xi]
Não é tão simples dizer: “Não creio na
Bíblia porque foi escrita por homens!”. Ou, ao inverso, “A Bíblia é a palavra
de Deus”. Toda e qualquer declaração sobre o assunto deve ser entabulada com
agudeza de espírito. O tempo em que vivemos exige mais do que declarações sobre
o verniz das coisas. É necessário perspicácia e admitirmos a transitoriedade de
tudo ante ao novo cenário. Na Antiguidade, os mitos bíblicos eram a ordem do
dia, nada se conhecia, portanto, se tornaram plausíveis. Hoje, o homini religiosi está menos ingênuo[xii]. Ele
percebeu que, em profusão, as religiões se proliferaram sem acrescentar qualquer
resultado objetivo à humanidade. A ciência faz melhor, pois é evidente. Qual o
tipo de religião que descobriu a penicilina?
Como podemos crer em determinadas
conjunturas judaicas, onde Deus parece deixar de ser onisciente a ponto de não
prever a desobediência de Adão e Eva? Hipoteticamente, após castigá-los,
arrepende-se de tê-los criado... Hominóides ou hominídeos? Como encontrar esses
personagens primevos no século em que vivemos?
Como ficar de olhos fechados ante a mais
uma possível falta de onisciência, que foi a escolha de Noé para repovoar o
mundo? Será que Deus não sabia que tudo voltaria ao que era antes? Os filhos de
Noé, então, repovoariam o mundo? Como, se a tentativa com Adão já não se
mostrara positiva? Por acaso, o “Senhor” não sabia que as leis mosaicas jamais
seriam seguidas na íntegra pelos judeus, a ponto de determinar a salvação pela
graça através de Cristo? Se a resposta for o amor, a tolerância com o homem
através dos milênios, por que tamanha complacência em relação a um plano de
redenção de tanta complexidade, enquanto a humanidade geme de dor, agoniza e se
arrasta pelo lamaçal da humilhação através da história? Enquanto os bebês das
tribos famintas da África, ainda vivos nos acampamentos, contaminados pelo
vibrião colérico, em completa desidratação e sem reação, aguardam que os abutres
lhes arranquem as vísceras...
Como podemos crer numa religião totalmente
caduca que pretende juntar os cacos de uma teologia oriunda de um passado medieval
sombrio para adaptá-la aos dias de hoje, exibindo a sede de um papado, coberta
de ouro, usando as técnicas de Disney
para adaptar suas historietas. Como fica a Bíblia após Darwin?
Não posso crer em outra religião, surgida
de uma Reforma, que acusa as demais de idólatras, quando a sua própria idolatria
é um livro, o dinheiro e, no fundo, a fome de status social.
Com a primeira religião, infelicitei minha
adolescência. Já com a outra, perdi o que tinha de melhor: a autenticidade, a
alegria e o dinheiro para a pastorada faminta – os profissionais da fé. Fui um
androide fideísta – títere da Igreja. Por isso, até posso sofrer a acusação de
falta de conversão genuína, já que é fácil julgar o próximo. A imputação de não
olhar para Deus, mas para os homens. Acontece que já ouvi essa história antes.
Mas agora, só cabe a real intuição da deidade: primum vivere, deinde philosophari![xiii].
Não foi Deus quem ditou ou reuniu os livros
da Bíblia, foram os homens. Há muito tempo e com segundas intenções. Em uma
época em que os problemas que exponho na presente obra não eram questionados.
Costumo dizer que a Bíblia se resume num problema gravíssimo de lombada (base
de um livro onde as suas páginas são costuradas), o que fez dela uma coletânea
de criações humanas, que pretende funcionar psicologicamente para os que não
sabem pensar. À maneira de um self-service
para a solução de problemas diários, embora muito contribua para o ato de
conter a conspurcação humana. É o freio, o nutriente por excelência de todos os
homens que precisam da religião de forma emocional e psicológica. Mas a Bíblia
não deixa de ser um livro humano, demasiado humano.
Admitiria as palavras e promessas de Jesus
como insuperáveis, em relação a qualquer sistema religioso no mundo, se elas fossem
comprovadas como fato histórico. Se ele fosse provado como o Jesus histórico
através do método histórico-crítico, não uma construção de existência
conceitual de livros canonizados... Porém, dentro da minha ótica personalíssima
de entender a Bíblia, através do método histórico-crítico e da interpretação
pessoal, da qual sou detentor de todo direito, bem longe dos teólogos-bufões. Sou
obrigado a admitir o relativismo do que Jesus disse ou não, sobretudo diante
das centenas de milhares de cópias do Novo Testamento, do qual não temos um
original sequer! O clero só fareja as vítimas que pode devorar e foge
desembestado daqueles que questionam as “verdades espirituais” estabelecidas.
Minha leitura das escrituras não está
vinculada ao método devocional, como citei antes, mas é o resultado de uma
análise profunda da existência humana sob o aspecto histórico-crítico. Porém,
sem ao longe pretender desprezar o lado desconhecido da vida, a transcendência
e os mistérios que nos deslocam dos nossos vis interesses. Vozes indecifráveis
que tanto incomodam nossas intenções carnais na direção do ouro e da prata.
Minha leitura das escrituras obedece a uma
visão racional, cientificista, histórica e sociológica, subordinada a um método
obviamente. Não está presa àquilo que nos ordenam acreditar, mas à
interpretação acadêmica da leitura horizontal (comparação dos fatos, teorias e
postulados entre os diversos livros da Bíblia), em contraposto à orientação
devocional, que propõe a leitura vertical (corrida, sequencial, não comparativa),
como pretende o sacerdote, ao implantar uma dogmática qualquer no nosso
estômago. Só depois de muitos anos na trajetória do aprender a pensar, de
reflexão com agudeza de espírito e coerência, pude perguntar a mim mesmo:
“Puxa, como não vi isso antes?!”...
O deus construído pelos dogmas é, com
certeza, o amigo imaginário dos adultos. Na verdade, em nenhum momento deste
livro pretendi anular qualquer causa sui,
como provável força superior, hipotética causa coexistente ao universo, mas
questiono o que os livros pseudossagrados e o que os teólogos tagarelam sobre o
deus que inventaram. A partir da honesta conscientização do método
histórico-crítico, a fé já encontra outra dimensão, principalmente se fé significa
não querer saber o que é a verdade. Nos seminários e faculdades de teologia de
nível acadêmico sério do primeiro mundo (protestante ou católico), o método
histórico-crítico não pode ser oculto ao alunado. É um grande choque para
muitos, que não suportam a quebra do encanto. Retornam silentes para as suas
igrejas, ou abandonam a fé por completo. Outros, já menos sensíveis, concluem a
graduação e se tornam falso-resolvidos profissionais do púlpito. Mas não dá
para evitar, é necessário que alguém faça esse tipo de trabalho. Os beatos e
religiosos crônicos precisam desses profissionais mais do que o ar que
respiram. Ainda – é necessária a ilusão de Deus.
Cheguei, assim, à conclusão honesta de que
a Bíblia contém dois tipos de texto: os inventados pelo homem e os reinventados
pelo homem. Mas alguns são genuinamente inspiradores na busca do summum bonum. Dos fantasiados pelo
homem, desprezo-os. É coerente, entretanto, atentarmos para os textos que nos
inspiram à superação ególatra, pois eles representam uma esperança para o homem
sábio num mundo destroçado e essa conclusão é dom da verdade. Entretanto,
apesar de toda a coerência proposta, da boa intenção, do poder de consolar que
tem a Bíblia, nem por isso ela se torna palavra de Deus. Se Deus pretendesse
que o povo tivesse a sua palavra escrita para levar debaixo do braço, desde a Antiguidade,
teria preservado a autenticidade da mesma. Ele não teria permitido que o homem
a deturpasse. Bem, já que o homem a deturpou, precisou também dizer que as
escrituras foram inspiradas por Deus, pois o futuro chegaria, as múltiplas
contradições seriam descobertas e teriam que ser aceitas. Pronto, a peça foi
pregada desde os tempos mais remotos... Amém.
A capacidade de alguém perceber o que é
genuíno ou não, é questão factual da razão somada à sensibilidade dos elementos
do espírito, pois as coisas espirituais se discernem espiritualmente e isso é
dom da Natureza. Mais ainda: é direito soberano de cada um de nós professarmos
a crença (ou a descrença) que está firmada no nosso entendimento. Mas não no entendimento
dos hipócritas ou dos teólogos profissionais.
O julgamento dos meus detratores religiosos
deixou de ser uma preocupação. Os fracos é que se preocupam, pois o desejo
íntimo deles é o de serem livres, de ansiarem por pensar fora do contexto
sectário. Uma vez que não podem, vivem no clima de artifícios, sofismas e
hipocrisia. São enfermos e, na impossibilidade de serem felizes, tornam-se
virulentos. Contaminam.
De mais a mais, quem pode determinar se
alguém está salvo ou não? Os pastores? Os irmãos? Com certeza, os hipócritas
podem e o fazem de forma brilhante. Os detratores precisam existir, pois alguém
tem sempre que fazer o serviço sujo de julgar o próximo e de estabelecer os
critérios da salvação. Como dizia o pai de um amigo meu, o velho Boaventura:
“Mas de que esses ‘caras’ querem me salvar?... Será que vão pagar as minhas
contas?”.
Para não atribuir tudo à seleção natural
pura e simples, à existência biológica, fica a pergunta: será que Deus condenaria
os homens por questionarem os livros santos
que eles mesmos escreveram e canonizaram? Ou, mesmo, nos daria uma sentença
condenatória por ousar um desabafo de que, se mais devotos examinassem a Bíblia
com rigor, haveria menos religiosos no mundo? Se existisse um Deus assim, seria
muito diferente daquele que conhecemos nas práticas religiosas.
Chegamos, então, a que porto? Ao nosso,
onde a indústria da fé não tem poder, onde não precisamos de mais liturgias, só
de sentimentos sinceros na possibilidade do ser feliz e, quando não, crendo que
o amor nunca fará mal ao próximo.
A preocupação com o presente trabalho não é
a de enaltecer os valores espirituais, ou mesmo engrandecer as hipotéticas
obras divinas. É a de denunciar o sectarismo, o tráfico da fé, exibir a
abordagem dos seus ardis e mostrar o quanto o homem é escravizado pelos “textos
sagrados”. Entretanto, é notória outra preocupação neste livro: firmar o
princípio da ininteligibilidade de Deus. Mas isto ainda não me coloca como ateu
e, sim, como alguém que levou a observação das coisas e do mundo com a mais
profunda honestidade. Humanista secular estaria bom para o começo... Qualquer
um que se coloque diante do espelho e pergunte a si mesmo se tudo o que nos foi
ensinado concorda com o que vemos no cotidiano, talvez chegue à mesma
conclusão. É um mero exercício – reaprender a pensar.
Se Deus fosse cognoscível como os
religiosos afirmam, haveria apenas uma religião no mundo, a certa. Como isso
não procede, então, torna-se a prova incontestável de que nenhuma religião é a
certa, permanecendo Deus ininteligível para todos nós enquanto vivermos por
aqui. A “religião certa” é uma utopia: resultado do encarceramento ao mundo
perceptivo dos iludidos.
O grande detalhe não é crer ou deixar de
crer na Bíblia, mas intuir, fora da influência do sectarismo, o que pode ser
extraído dela de forma construtiva. Para fecharmos a Bíblia, é necessário que
também saibamos analisar a sua essência por outro ângulo, até então não
abordado. Apesar de todas as contradições (mais de trinta mil alterações
suspeitas nela contidas, segundo John Mill), ainda assim, a humanidade se
tornaria muito mais feliz se tentasse segui-la nos seus aspectos claros,
positivos, e observá-los com contrição. Nos aspectos claros e até no seu simbolismo.
Esta é uma obra que insiste na
ininteligibilidade de Deus, mas numa atitude de admissibilidade de existências fora
do tempo-espaço, obviamente insondáveis. Carl Gustav Jung disse que “o homem
deve sentir que vive num mundo misterioso, sob certos aspectos, onde ocorrem
coisas inauditas – que permanecem inexplicáveis – e não somente coisas que se
desenvolvem nos limites do esperado. O inesperado e o inabitual fazem parte do
mundo. Só então a vida é completa”.
De volta ao início do nosso livro: “quem,
definitivamente cria as possibilidades? Quem faz as circunstâncias? Quem ajusta
isto àquilo e aquilo a isto?”. O acaso? Ou os ajustes não são ajustes, seriam
apenas resultados de um princípio antrópico? Ou seja, o cosmo já estaria
casualmente ajustado em relação ao nosso planeta, com as condições necessárias
para a nossa existência...
Bem, não é esse o objeto do nosso livro. O
objetivo é uma denúncia contra o sectarismo, na esperança da sua desconstrução
por cada um de nós. Uma vez que atingimos a possibilidade de desconstruir
tantas coisas ruins em nossa mente, como o racismo, por exemplo, por que não o
fazermos com o sectarismo religioso? Por que não rejeitarmos as influências
religiosas que pretendem nos acorrentar, através dos teólogos que tentam dominar
nossas mentes para não usarmos a reflexão e reaprendermos a pensar? Por que não
jogarmos os contrapesos teológicos no lixo? O que é um teólogo senão um anão contador
de historinhas canonizadas? O que eles nos ensinaram até hoje? Ira camuflada?
Dúvidas? Comparações? Diferenças? Confusão? Culpa? Divisões? Sim, divisões de
todo tipo e culpa como sobrecarga. Doaram-nos os fundamentos para as guerras e
dissensões!
Para os que não podem viver sem a ideia de
Deus, só existe uma regra para que a intuição de um ser supremo seja perfeita:
o amor ao próximo. Assim como, na mesma via, só existe um meio para que o
sectarismo seja percebido. Ele está na criação das normas que agrilhoam as
coisas puras e livres. Está na regulamentação e no instituto dos mistérios da
vida. A secta se origina das normas
impostas que caracterizam o dogmatismo, não dos princípios retos, felizes e da
paisagem moral que nasce no íntimo do homem. O sectarismo brota do medo.
Agora, vamos aos criativos, aos autores do
sectarismo. Quem são eles? São os profissionais da fé que nos iludem e
decepcionam. Os que se camuflam perante a sociedade admitindo-se imperfeitos
até, reiterando suas fragilidades, por serem iguais a todos os outros cristãos...
Declaram que, apenas, têm o título de pastores ou padres, mas que também são
imperfeitos. Coitados, tão fracos... É aí que se escondem, atrás da fraqueza
anunciada e da sujeira oculta, antes que o povo possa descobri-la e desnudá-la!
Viva a esperteza dos profissionais da fé
sectária! Não deveriam ser um pouco melhores esses amigos do ouro? Mantenedores
da metafísica que ilude o pobre, o fraco, o enfermo. São “ungidos de Deus”,
logo fora de qualquer suspeita. Salafrários! Enganadores dos símplices e
humildes... Bem que poderiam dar exemplo, ou enganar melhor de vez, com mais
arte cênica. Quando estão em desvantagem política simulam ratinhos, pedem
perdão – quando se fortalecem, cospem nos fracos e indefesos. Eles conhecem
muito bem os que não podem se defender e não precisariam ser homicidas espirituais,
vendilhões do templo. Não causariam tantas decepções àqueles que nem sequer têm
força para protestar, pois é a Igreja que os engole para, depois, vomitá-los!
Pobres que se calam e levam as feridas das decepções causadas pelos líderes. Levam-nas pela vida afora, perdendo as
referências mais preciosas. São os símplices, silentes, que têm medo. Quem são
eles diante da mega autoridade eclesiástica – o potentado das profundezas?
Aí vem um ingênuo adocicado e diz: “entrega
a Deus, meu irmão. Perdoa!”. Consolo daqueles que se conformam. Por isso, o líder
sectário segue feliz, com a sua família, sem se dar conta nem de longe do
estrago, das cicatrizes que fez nas almas daqueles que um dia confiaram nele.
Esse tal é o “servo do deus da morte”, que jamais será punido, pois o povo o
sustenta, reverenciando o tal. Merecendo-o! Entretanto, não nos esqueçamos dos bons,
que renunciaram. Que tal são Francisco de Assis? Teria iludido o pobre se
realmente tivesse existido?
O deus da religião é a mais brilhante criação
do homem, mas, com certeza, os mamíferos humanos são os mais decepcionantes produtos
evolutivos da natureza. Mamíferos, esses, que se dividem em duas espécies: os ingênuos
crédulos crônicos, que ficam com a fé e os religiosos profissionais, que ficam
com o dinheiro...
As velhas utopias já não servem para mais nada.
Precisamos de outros sonhos e novas saídas de acordo com o nosso tempo. Com
dever moral e consciência. Por isso, através da minha visão pessoal de pintor, comecei
com um esboço prévio de Deus numa tela em branco, embora Picasso tenha dito que
“a arte é uma mentira que nos faz perceber a verdade”.
Se isto aqui é tudo o que temos, saibamos
viver da melhor forma possível, parafraseando Schopenhauer ao expor o tributo
de amor ao próximo sem a intervenção divina. Na tentativa de sermos mais
tolerantes com os erros do nosso próximo, pois estamos, na realidade, diante
dos nossos próprios erros e estupidez.
Ou se, para outros, isto aqui é pouco e
precisamos do além, possamos chegar, sem cairmos no sectarismo, ao mesmo
objetivo com alguma opção devocional equilibrada, que faça parte de um bom
cardápio. Cada um que se iluda como bem entender.
[ii] Pasmem!
Esse título existe mesmo! Tenho até um conhecido que, morrendo de fome no
Brasil, foi para a América e se tornou um “doutor em divindade...”.
[iii] Retira-te,
Satanás!
[iv] Castelo
na areia; devaneio.
[v] Deus
meu, Deus meu, por que me desamparaste?
[vi] Professor
de teologia da Universidade de Georgetown.
[vii] Na
verdade, apedeuta.
[ix] O povo precisa de
religião!
[x] Em Roma era pão e circo.
[xi] Não se deve discutir a
respeito de gostos e cores...
[xii] Sim, porque ele, à
sombra do sectarismo, sempre será ingênuo...
[xiii]
Primeiro existir e
depois filosofar!
ATENÇÃO: todos os direitos reservados.