quinta-feira, 15 de janeiro de 2015


SUIS-JE CHARLIE?

    O homem, mesmo carregando as mazelas da sua baixa origem, fabrica santos. O papa, em visita recente ao Sri Lanka, com a missão de canonizar mais um, promoveu Joseph Vaz a santo cingalês. Ainda nos mandou mais uma pérola da sua coleção de declarações: “Todo indivíduo deve ser livre, sozinho ou associado a outros, para buscar a verdade, expressar abertamente suas convicções religiosas, livre de intimidações e de coações exteriores”.
    Todo indivíduo deve ser livre – ponto. Ciente das sanções legais, mas livre para buscar a sua verdade, pois sempre será relativa. Qual a verdade do papa? O indivíduo ainda deve ser livre para expressar abertamente, não só as suas convicções religiosas como, também, as antirreligiosas.
    Hoje, o mundo vive uma situação singular. Je suis Charlie tornou-se um slogan, agora até com uso mercantil. Mas abriu-se um caminho com o desdobramento de fatos de futuro imprevisto. É um funil que se tornou inevitável – todos tínhamos que entrar. A humanidade ficou saturada da religião, pois descobriu, pouco a pouco, que isso não vem no leite materno. Achávamos que a crença poderia ser biológica, que chegávamos ao mundo com a necessidade de religião. Mero equívoco, a ciência derrubou o mito. A religião é inoculada, não importa se a cultura é ocidental ou oriental. É fenômeno social recorrente para promover o freio comportamental e o ethos civilizatório. Afinal, a civilização só foi possível com os mecanismos do religare. Só que agora o processo não repousa mais no constructo civilizatório. Trata-se de um ajuste social urgente com viés de alforria do próprio homem para que seja possível a sua sobrevivência no planeta. O homem precisa entender agora que as divisões religiosas vão travar o processo imediato que se impõe, no dar as mãos, para salvar o que nos resta no mundo. Que essas mãos não estejam mais postas em orações fantasiosas, mas que sirvam para puxar rapidamente o nosso próximo do lodaçal formado. 
    Os simples esboços de algum maître dessinateur do Charlie Hebdo detonou a bomba interior de dois malucos. Tem-se o pavio histórico. Acontece que a bola do engodo religioso foi regurgitada entre os homens e parou na garganta. Aquele algo preparado para ser engolido na Antiguidade, voltou na pós-modernidade e se tornou um problema bem grande para todos nós: a intolerância à religião. Sim, porque, mais cedo ou mais tarde, seria conscientizado o fato de que nenhuma religião representa a verdade de per si. Logo, deixa de existir a verdade religiosa absoluta e, talvez, até o próprio absoluto.
    Um judeu tem as mesmas razões que um cristão para seguir a sua religião. Chamam isso de fé. Mas o muçulmano também tem as suas razões e não abre mão. Os cristãos citam a Bíblia como palavra de Deus inspirada. Os judeus reivindicam a antiguidade da Torah como sendo a regra de ouro e os muçulmanos alegam piamente que o Corão é a palavra perfeita do Criador. Fé é convicção ou contumácia? Se for convicção, como sustentar o que deveria ser uno e indivisível? Por que tantas fés? Maomé disse que Jesus não era divino. Yaweh diz que seu filho amado é Jesus. O papa diz que Maria é nossa mãe. Acho que Alá e Yaweh não conseguiram se entender desde o início... Mas dizem que Deus é o mesmo, não? Como pode existir verdade em coisas que divergem?
    O episódio nefasto do Charlie Hebdo deve-se exclusivamente à saturação da humanidade em relação à mentira de séculos, segundo o discurso de Nietzsche. O balde da saturação transbordou. A retórica e a dialética da crítica da religião não servem para o senso comum, então, o que resta é a charge – a vingança do populacho com a catarse dos desenhos de humor... Isto serve para a política, a religião, enfim, para o day-by-day do imenso vazio da existência. E esse é o papel da religião: a venda de sensações – de paz, salvação, prosperidade merecida, etc.
    Engraçado é que o onus probandi de cada religião e da natureza de Deus fica sempre no vazio. Ninguém produz prova científica das matérias de fé e querem nos fazer deglutir as baboseiras santas de antanho em nome de dogmas hilários. O anjo visitou Maria na anunciação, mas o anjo Gabriel visitou Maomé na caverna. Então, elas por elas...
    Segundo Michel Onfray, existe o gosto muçulmano pelo sangue. O profeta Maomé exterminou com regularidade as pessoas em batalhas do islã. Entretanto, Moisés também matou um egípcio. Josué, Elias e outros, no Antigo Testamento, também mataram centenas de infelizes... Se formos contabilizar, chegamos à inquisição com os papas fazendo churrasco humano nas praças públicas aos borbotões... Mas tem sempre a justificativa atual de que só Deus é perfeito. Os quase cento e cinquenta versículos, entre os mais de seis mil que compõem o Corão, aprovam a “guerra santa”, o jihad. Isto é muito mais do que necessário para anular a sustentação dos ditos de paz no restante do livro. Na história de Maomé, encontramos com frequência a espada e as expedições punitivas.
    O que destaco aqui é a natureza beligerante do islamismo e a não tão beligerante das demais religiões. Os judeus fizeram guerras, mataram em nome de Deus na Antiguidade e hoje. Os cristãos fizeram guerras, mataram na Idade Média e hoje. Entretanto, os muçulmanos, que também mataram muita gente, devido à natureza de fábulas e feitos heroicos da sua religião, geram braços de terrorismo que não conseguem ser controlados pelo próprio sistema religioso islâmico. E isso é um peso que, infelizmente, recai sobre eles. Enfim, é o próprio ego religioso o responsável pela sustentação das crenças que não fazem mais sentido nos dias de hoje. É nessa direção que firmo minha opinião de que, se o homem não abrir mão do sectarismo religioso, em prol de uma união necessária e que estabeleça um modus operandi de resgate urgente da civilização, em pouco tempo tudo vai naufragar... Em New Orleans, na ocasião do furacão Katrina, a população se descontrolou, cada um apegado à sua religião e saíram para comprar armas, fuzis, pistolas, na ansiedade de criar proteção para as suas famílias. Vedaram as casas, criaram barricadas, mas não deixaram de cometer estupros contra os vizinhos mais fracos... Talvez se não estivessem tão aferrados às religiões, teriam obtido um caminho de maior equilíbrio e resultados positivos de forma coletiva.
    Convenhamos, entretanto, que o princípio da crítica de humor do Charlie Hebdo, às vezes, perde a sutileza que o próprio gênero propõe. O negócio é fazer rir com a crítica, o que nem sempre acontece. Mas terrorismo é outra coisa. Não vi até agora nenhum cristão matar humoristas porque "pegaram pesado" com o papa. É preciso que se comece a entender que os homens ainda respeitam a figura do religioso, mas perdem, cada vez mais, o respeito pelas religiões no mundo de hoje. É um comportamento social crescente: respeita-se a opção do religioso, mas não as crendices, que desabam rápido! Contudo, nada justifica o gosto sectário pelo sangue. 
    É na religião que o homem encontra o saco de engodo para explorar o seu semelhante, a zona de conforto ideal e a justificativa até para a violência em massa. E isso é bem típico no próprio islã. Muitos dos seus líderes criticam os grupos terroristas, citam o Corão de forma pedagógica, mas no fundo, repetem: "Allahu akbar"... Com esta expressão, que significa "Deus é grande", os muçulmanos conquistaram o Oriente e invadiram o Ocidente. Também gritaram isto quando fuzilaram os cartunistas do Charlie Hebdo... Será que o profeta precisa ser vingado nos desenhistas esquálidos e intelectuosos que fazem piadas com a irresponsabilidade necessária ao século vinte e um? Jesus não precisou de advogados nem da vingança dos seus seguidores. Andou pela Galileia exposto a tudo, sem papamóvel e sem palácio de mármore com teto pintado por Michelangelo... E os judeus que se inventaram como povo escolhido? E o homem criou Deus segundo a sua imagem... A religião é pura divisão! 
    Por que razão o fio condutor dogmático do Corão jamais pôs um fim aos grupos terroristas que usam o mesmo livro? No passado distante, quando tanto sangue foi vertido em nome de Alá com a expansão do islã, não existiam grupos terroristas... Será que a nação islâmica não vive sem o terror ou não sabe acabar com ele?  
    Bem, num sentido mais amplo, não visando apenas o fanatismo islâmico, mas deitando um foco sobre todas as religiões do mundo, oui, je suis Charlie!


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quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O PATHOS SECTÁRIO


O sectarismo representa a expressão máxima de toda a experiência falsídica do sentimento humano. Para escaparmos do arquitetural de qualquer secta, do dogmatismo, conformamo-nos com um meio falibilismo[i] ou nos restringimos ao ceticismo puro.
      
Em Feuerbach, na sua perspectiva do impulso religioso, da falsa consciência, verifica-se essa questão: a falta total de capacidade de perceber a vida como ela realmente se apresenta no plano real. O impulso religioso é a potencialização da fantasia do mundo.

O sentimento doentio sectário é absorvido, aos poucos, no meio em que se vive. Se o homem for interpretado como produto do meio, parafraseando Durkheim, há uma lei de concomitância, normalmente não percebida, que representa a afinidade eletiva. É a correspondência, por exemplo, entre o ethos[ii] do capitalismo e os ditames do protestantismo. Dessa maneira, como ficou patente a relação entre os dois princípios, é fato a geração do sectarismo a partir da preponderância da certeza injustificada. O sectarismo pode vir a ser crime, fonte das guerras. Já a religião, na capa do protestantismo, como afirmava Nietzsche, “é a espécie mais suja de cristianismo que existe, a mais incurável, a mais irrefutável...”.

Nietzsche não cria, portanto não se preocupava com os mistérios transcendentes. É o problema da maioria que, baseada na sordidez dos exemplos humanos, desenvolve uma visão turva de Deus. Nietzsche viveu uma infância cheia de perturbações. Seu pai era pastor luterano, Karl Ludwig, que morreu jovem. O menino Nietzsche já era estranho e contrário ao convívio social. Queria seguir o ministério pastoral como o pai, mas deixou a ideia ainda cedo, pois diante dos maus exemplos do cenário luterano da juventude, sobreveio a repulsa pelo protestantismo.

O ponto principal deste livro é a tentativa de desconstrução do sistema sectário, portanto, o esforço maior que podemos encetar está na admissibilidade de um todo-poderoso sem compromisso com definições, jugos, raios nas mãos e sem as barbas brancas que abrigam o rancor contra a humanidade. O sectarismo esconde as suas garras na geração do medo, ou melhor, sem querer ser tautológico, ou fiando teia dogmática, a secta sustenta a parceria velada com o terror da infalibilidade do inferno.

Sören Kierkegaard teve um pai desequilibrado que o acusara de filho de Satã quando menino. O senso exagerado de pecado ficou arraigado em Kierkegaard de maneira profunda em sua infância. Era uma família de religiosos rígidos e o resultado para ele foi o de levar a vida com extrema frieza. Ainda assim, ao contrário de Nietzsche, entendeu de outra forma o cristianismo a ponto de acusá-lo profundamente, mas com grande carga de angústia, devido à sua criação. Chegou a ponto de declarar: “Fui um velho desde que nasci e jamais tive infância nem juventude”. Dizia que os ensinamentos de Jesus foram pervertidos pela Igreja e que o Estado remunerava os pastores para destruírem o cristianismo... Ele acusava de vileza os sacerdotes que viviam do nada, porque o cristianismo para eles, atestado pelas suas próprias vidas, não passava de um nada. Pelo menos, como um devoto cristão, tornou-se implacável contra o cristianismo corrompido daquela época. No entanto, ao contrário de Nietzsche que era o inimigo da fé e ícone do ateísmo, ambos vitimados pela falsa praxis religiosa dos pais, Kierkegaard legou-nos uma obra literária que é a condenação da vida superficial, firmando-se na trajetória de fé honesta em Cristo. Kierkegaard mostrou ao mundo a possibilidade do genuíno cristão não se deixar tragar pela sombra sectária, embora também carregasse um terrível fardo de neuroses pela opressão da própria religião.

Qual o instrumento de trabalho do profissional do sectarismo? A mentira[iii]. Só que é necessária uma pitada de verdade sem grão de mostarda[iv] para exercer uma profissão sacerdotal com êxito.

Pois bem, na sedutora culinária do protestantismo extorsivo, é preciso tempero no prato: uma camada bem cremosa de volúpia; pitadas de cinismo e uma xícara cheia de voracidade dinheirista. Pulveriza-se por cima dolo em abundância e, por fim, fatias de talento na arte de enganar, de ator perfeito, tudo para ser assado no forno de Belzebu. Sobremesa, papo de anjo decaído com calda de má-fé. Depois, um café expresso marca Hades e um licorzinho libidinoso. Um charuto de enxofre para o finale, irmão.

A indústria da fé é lucrativa para os líderes, mas extremamente lesiva às suas vítimas e a que mais causa sequelas. Dela participa a maioria dos profissionais do altar. Vampiros clericais, potentados hematófagos que competem entre si na captura sôfrega dos incautos que buscam novidades. São os profissionais que tiram o pão da mesa do pobre, oferecendo-lhe o paraíso. Os que pregam: “Não mentirás!”. Paraíso? Que paraíso?

“Armem os palanques, irmãos!”, disse um bispo doloso ao séquito de ovelhinhas mal ajambradas, pobres e iletradas. “Paz Sô!” – forma coloquial e ignara da saudação “a paz do Senhor” –, repetiu o desafortunado seguidor. “Vamos fazer a obra, irmãos!”, novamente o bispo. Assim, seguiu o cortejo de aparência imbecil, mas cheio de dolo, atrás do líder e esposa, uma “perua de Deus”, dessas que acompanham o bispo daqui pra lá e de lá pra cá. Se seguissem a Jesus de fato, venderiam seus bens, ou pouco, ou muito, dariam aos pobres e iriam estudar ou procurar um emprego decente. Algo que não enganasse os outros. Os pobres, então, também deixariam de esperar as coisas caírem do céu e sairiam em busca de algo melhor. Se mais valem duas mãos postas no trabalho do que cem mãos postas em oração, parafraseando Marx, toda a história da fé é a história da luta entre religiões...

A natureza excludente afigura-se como o maior sintoma do sectarismo. Os falsos profetas têm e mantêm o interesse em regar essa terra. Reportando-nos ao cenário calvinista, virá à tona a declaração mefistofélica do próprio Calvino, quando lhe arguiram sobre como obter a certeza da salvação: “Deveríamos ficar felizes em saber que Deus fez a escolha para os que foram predestinados à salvação”. Quantas vidas ele conseguiu destruir propalando algo tão tendencioso e excludente?

Se o venerando ministro, no exercício das suas nobres e altas incumbências, que lhes foram outorgadas do além, não aplicar as doses de incerteza, de que jeito poderá manter viva a exclusão? Em relação aos neófitos, nada de dúvidas, porque a desconfiança sempre recai sobre os desconfiados. É preciso crer. Cego, quieto, para que se produza a atmosfera do sorriso ingênuo nos rostos felizes e conformados. Então, repetem: “A paz do Senhor, irmão”.

Aceitamos líderes e criamos deuses segundo as exigências do nosso medo. Seremos, pois, escravos daquilo que criarmos. De Santa Claus[v], que nos leva a cumprir compromissos no natal e enriquecer as fantasias de nossos filhos; de uma “entidade” que nos obriga a compromissos em encruzilhadas; de líderes que nos exigem a guarda do sábado numa sinagoga; ou de frequentar a escola dominical de um templo por livre e espontânea pressão... São os mesmos que nos cobram votos levianos (considere-se que sem aceitação mútua não há voto possível) a um deus qualquer, até de engolir as hóstias do caminho. Temos que entender a nossa época e o beco sem saída da religião. Também o esgotamento dos meios e as razões da existência do mercado da fé. Tudo é consumo e a fides não foge à regra!

Nem por isso a ansiedade do homem diminuiu. Porque todos bem sabem o que é mentira. As recordações de Adão e Eva? Mas somos adâmicos em potencial, prontos para o ilícito, para o consumo, capitalistas libidinosos e sem limites. Somos honestos diante das divindades ou tememos ser pegos com a “mão na botija” sem a Bíblia na mão? Ou com ela, pouco importa. Por medo, somos.

Quando o homem se encontra impotente para entender a verdade das coisas e as consequências invisíveis da aleatoriedade, descobre nas fantasias religiosas dos mais “sábios” do que ele, as respostas para as suas muitas dúvidas. Mas, segundo Hobbes, qual o ser humano que pode acreditar em religiosos hipócritas, avaros, injustos, que cobram muito do rebanho e só revelam ambições pessoais? Faltando justiça, não há fé. Faltando milagres, também não haverá fé. Portanto, a falta de virtude dos clérigos provoca no povo a falta de fé. Líderes serpentiformes da teologia pestilenta. A Bíblia diz que “a fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus”. Sem testemunho não há fé, mas litígio, rancor. É uma guerra de todos os homens contra todos os homens, pela falta de testemunho, uma condição de guerra de todos contra todos, das potestades do ar às potestades daqui... Condição miserável a do homem, pela sua própria natureza. E, enquanto o clero achar que tem o direito de fazer o que bem entender por trás dos dogmas, a condição de guerra espiritual será uma constante para todos. A doutrinalha nos afasta da paz. Isto, pela falta de exemplo – o sectarismo inventou a guerra espiritual.

Nada se rompe mais facilmente do que a palavra de um sectário. Nada é mais frívolo do que os votos de um religioso crônico. Ele acusa para se autoafirmar, cobra antecipadamente dos outros, pois tem medo de que a sua falta de firmeza e hipocrisia aflorem aos olhos da sociedade... Nada é mais sórdido do que o santarrão, o falso-beato-oculto na luxúria dos altares e dos púlpitos, camuflado pelo véu de Iscariotes. Trinta moedas... Muito pouco, já que não existe mais dinheiro sujo e nada é mais sujo para aqueles que tomam o bocado molhado[vi].

Arrastamo-nos até aqui. Século vinte e um. O engodo religioso permanece a maiori usque ad minus[vii], como era desde o surgimento do homem, seu autor, mas sucumbimos à adulação astuciosa da religião, justamente porque somos humanos. Humanos irracionais. Os animais pertencem ao grupo dos irracionais simples, enquanto que o homem pertence ao grupo dos irracionais complexos.

É na fome, na sede, na curiosidade, que mordemos a isca. Quando o antílope se aproxima do regato para beber é que o leão o devora. Quando deixamos nossos mecanismos da razão de lado é que somos apanhados. Mas, ao percebermos qualquer verniz de amor religioso, a razão não se releva e de nada mais valem os mecanismos cognitivos... O homini religiosi é constituído somente de emoção e o mito abraâmico se pretende verdadeiro pelo brado do anjo no céu: “Abraão, Abraão!”. E os heróis foram inventados.

Não adianta, precisamos crer. Precisamos? Não nos impingem agora a “crença na crença”? Temos que ser depositantes de algo que represente segurança, investimento para o futuro. Precisamos garantir o mínimo de sensações, pois elas fazem parte do nosso equilíbrio biológico que nos empurra para frente. Não há como não lavar as escadas das igrejas. É orgásmico. Catártico. A maioria de nós tem necessidade emocional e psicológica dos mecanismos purgativos da religião, mas não precisamos ser extorquidos! Se a salvação é oferecida através dos evangelhos sem nenhum ônus, por que o clero se profissionalizou? Por que nos explora? Por que nos frauda? Por que o mito nos alimenta e o clero nos anestesia? Ele pouco crê no que prega. Sabe que é ilusão, mas o povo os sustenta assim mesmo. Ficamos em busca do Jesus histórico?

O clero nos obriga a enxergar através do mito... O que seria de Gotham City sem o homem-morcego? Ou mesmo de nós, se a “santíssima Virgem” não fosse divinizada para proteger a cidade? Nossas ilusões chegaram ao fim porque a massificação do sem sentido, imposta pela mídia voraz, esvaziou nossos sonhos por completo. Branca de neve, que no passado encantou gerações, hoje é sugerida como história underground, mais um caso de estupro pelos anões. Assim, o sentimento ficou sujo no mundo de hoje. O Belo foi amputado e o santo pervertido.

Outrora, falava-se da Igreja com reverência. Hoje ela é associada àqueles que a defraudaram, aos vorazes clérigos sanguessugas ou aos campeões da pedofilia... “Sai dela, povo meu!”, diz o Senhor. Saímos dela, mas para aonde vamos agora? Quem nos afagará antes de pegarmos no sono? Ou quem nos contará mentirinhas que dão o esconderijo para as nossas concupiscências? Quem nos livrará do peso da realidade assombrosa? Pela manhã, ao sairmos para o trabalho, ao encontro das nossas vítimas, quais medalhas devem ser beijadas? Então, qual o santinho predileto ou qual das nossas senhoras pode se escolher num cardápio tão variado? “Mas Nossa Senhora é uma só! É que ela usa muitos nomes...”, diz o beato. Quem será o avalista das nossas injustiças? E se optarmos pelo fradinho Lutero? Vamos à caixinha de promessas para tentar a sorte. Nossa Senhora! A Senhora não é minha, é tua... Assim, chegamos ao pior de tudo: a existência conceitual de Jesus.

“Então, senhores, somos ou não necessários?”, indagou o sacerdote. Agora, a quem confessar? Quem se incumbirá de nos passar o dever de casa – rezar por isto e aquilo, aliviando nosso apetite carnal? De camuflar nossa libido? De quem virá o endosso para manter o disfarce sombrio das nossas injustiças? Quem é suficientemente forte para abrir mão da igreja que inventamos?

Precisamos de alguém que coloque nossos nomes no quadro de dizimistas de uma igreja qualquer para que sejamos eleitos como salvos e remidos. Na pior das hipóteses, nos tragam a convicção de estarmos a caminho de alguma coisa melhor do que esta porcaria daqui. Aí, perguntam ao santo quando ele menos espera: “Escuta aqui, tenho que me salvar de que mesmo?”.

Em tempos passados, observei na rua um grupo de mulheres, Testemunhas de Jeová[viii], nitidamente reprimidas e envergonhadas por serem induzidas a oferecer, de porta em porta, uma série de enlatados teológicos em forma de revistas. Demonstravam esse sentimento reprimido e faziam uso do mesmo discurso para vender suas ideias. As donas de casa, em meio aos afazeres, por educação, atendem a mil e um toques de campainha para ouvir discursos vazios. Eu mesmo, por extrema ingenuidade, ainda bem que na minha infância, já vendi[ix] muitas dessas publicações de casa em casa para alimentar os cofres de Jeová. Fui uma dessas Testemunhas do Salão do Reino e, quando criança, tinha pavor de Jeová. As moças estavam muito acuadas, oprimidas e tristes. Tinham que apresentar os resultados na volta ao “Salão”, mas espremiam-se de vergonha ao cruzar por conhecidos no caminho. “Que droga, eu por aqui...”, com certeza passou por uma daquelas cabeças. Ou por mais de uma. Ou por todas. Pelo menos, no subconsciente. Bem, passou pela minha cabeça quando criança... Por que, arrazoando, essas mulheres não trabalham em algo que incomode menos a população, batendo à porta dos outros para propor salvações ou ingressos para o clube dos 144 mil santos afortunados que vão reinar pela eternidade?

É preciso que o sábado seja guardado. Viva os adventistas. “O irmão já fez sexo no sábado?”, indagou o sabatista. Viva também todos os outros evangélicos que não guardam o sábado ou o sexo! Se observarmos bem, a maioria das editoras evangélicas publica turbilhões de livros de orientação sexual. Como fazer isso, como fazer aquilo. O todo-poderoso deve ter criado o sexo e o homem inventou os manuais, porém os cachorros não precisam de orientação sexual. De tão puros, fazem na rua. Santos sorrelfos!

Viva os mórmons que, lá na América, alguns são polígamos... Que estranho, mas os daqui não! O que andou Salomão fazendo lá pelo Oriente? Não foi poligamia? Isso não nos diz respeito, Deus perdoou o rei. A religião foi criada para aqueles que precisam das historinhas que ela conta e até a neurociência concorda com isso.

Felizmente, há os verdadeiros, os puros de coração, que não foram o foco deste livro até agora. Façamos uma prospecção. Foram eles nascidos das instituições ou forjados por alguma denominação? Temos que nos preocupar com os crápulas, com os monstros espirituais que se empoleiram nos púlpitos para sugar a veia do pobre. São crápulas os líderes religiosos que mantêm o coração empedernido diante da singeleza dos seus neófitos, dos seus contribuintes dizimistas fiéis. Tratamos dos ratos que visitam os bolsos do incauto. Denunciamos os líderes que, como não tiveram talento para ter uma atuação mais útil, encontraram o caminho fácil de uma ordenação arrumada no interior de uma igrejinha qualquer, ou até mesmo de um desses seminários furbescos[i], que têm como meta iludir os pobres da periferia. Aqui não criticamos os líderes que se esforçam no ideal cristão, pois alguns têm até boa formação acadêmica em teologia financeira. Citamos os monstros do clero que se alimentam da gordura das ovelhas e sem formação acadêmica alguma. Mas o que significa a formação acadêmica de um doutor em divindade? Entretanto, não falamos do possível, do homem em verdade. Da possibilidade do livre, do feliz. Da estética espiritual, do Belo.

Zebulão, jovem bem intencionado, decide-se pelo ministério pastoral. Quer “servir a Deus”. Cursa um seminário, o primeiro estágio da decepção. Já pronto, ao considerar que seu ministério hoje não é como nos tempos bíblicos, com dificuldade admite ser um profissional da fé. No início do pastorado, começam os conflitos íntimos: a vontade de servir a Deus e as ordenanças da cúpula de sua instituição. Então, o que fazer? Estabelecer-se como comerciante e abandonar o ministério? Agora, para sobreviver, qual saída buscar? A conclusão chega logo: “é melhor viver pela fé e esperar as soluções do Altíssimo”... Afinal de contas, Zebulão investiu muito com a teologia e ainda pode vir a ser um doutor em divindade[ii]. Com o tempo ele se acomoda, lembra de que para ser João Batista tem que perder a cabeça e desiste do purismo, preparando a horta para regar o dinheiro que começa a brotar... Valeu a pena, não é irmão? É sempre melhor viver pela fé, “engolir os sapos” da cúpula, pois a coisa fica boa com o tempo. Quase sempre dá para arrumar a vida e, nos dias de hoje, o importante mesmo é um bom emprego. Nem todos são assim, é lógico. Quem sabe a maioria?

Mais adiante, o ministro se casa. Vamos escolher um nome para a sua mulher... Pronto: Antonieta, jovenzinha sensual, mas com um coque brutal adornando sua cabeça vazia. Tempos atrás, as mulheres pentecostais disputavam a santidade com o tamanho dos coques... Era um selo, marca de fé. Antonieta também decide ser pastora, porque a mulher se liberou para o clero. Até bispa já tem, vade retro Satana[iii]! A menção do mal não significa machismo, mas princípio teológico cultivado pelos antigos. Aí, surgem os filhos, um monte deles, e a vida fica cada vez mais difícil. Quando não tem jeito mesmo para ser outra coisa, nem há jamais competência para tal feito, o profissional está realmente formado e aí começam as concessões. Não me detive em falar sobre padres, pois acho que estão em extinção. Ai de vós, pastores de Israel!

A força motriz para o surgimento de todas as seitas e fanatismos é a irracionalidade do visionário, mas a raiz das ações corretas, como do bem inconteste, é o ser moral. Um paradoxo, mas a verdadeira santidade está nas ações corretas e não na religião. O ser moral é o compromisso com os padrões íntimos, irremovíveis, soberanos, enquanto que o ser religioso é o compromisso com o instável e o duvidoso. O ser moral é ditame maior, pois emana da consciência do dever com o per si, entretanto, o ser sectário é o divinatório. De conduta desviante, flutua na divinação: é o château en Espagne[iv]...

Pois bem, chegou o momento de tratarmos de uma tendência que paira sobre todas as criaturas do século vinte e um: a troca da religião por nenhuma religião. O religare tem sido somente com o deus de cada instituição e não com a causa incognoscível. Os deuses cansaram, pois não fazem nada e ficaram em silêncio. Até os da barbárie, onde, no Oriente Médio, multidões islâmicas ainda apedrejam um muro que representa o Diabo. O Diabo deveria ser apedrejado por amor à verdade. Apedrejemos, então, os autores da velhacaria sectária.

Quando, depois de anos de visão obliterada, pude encontrar a lucidez necessária para discordar da Bíblia, descobri o que é ser livre realmente. Não por questionar a palavra dita de Deus, mas por concluir que o homem interferiu absurdamente nessa palavra. Engendrou coisas para dominar o seu semelhante, criou o discurso do medo e introjetou o sectarismo no coração do neófito inocente. Tudo para a perpetuação da teocracia. A “Palavra” foi inventada.

Nos dias enganosos de hoje, qualquer pessoa com um nível médio de visão pode perceber a montagem da Bíblia, assim como, democraticamente, continua com todo o direito de interpretar as suas páginas como divinas. A conjuntura em que vivemos torna isso cada vez mais claro, entretanto, a tendência do homem em aceitar uma nova realidade, cada vez mais se pronuncia em todos os cantos da terra. A venda escorregou dos olhos mais atentos.

Por que temos que nos enganar, insistir na fantasia? O homem já percebeu o mito adâmico e a construção tendenciosa de um povo escolhido que perambulou pelo deserto em busca da terra prometida. Um povo que “encontrou uma filiação divina” mesmo sendo tão idólatra como todos os outros povos que a história tem notícia. A jogada mais astuta das bandas mesopotâmicas, a invenção mais perfeita da Antiguidade: o povo judeu. O caminho foi preparado para a outra grande invenção: o cristianismo! Dupla genialidade.

De Israel a Roma: por que haveremos de beatificar e canonizar santos, memórias, pela vida afora? A estratégia da indústria dos intercessores canonizados deu certo. São excelentes assessores divinos, devido à agenda ocupada do todo-poderoso. Melosos e melífluos. Generosos, permitem as relações mais esquisitas com os devotos, intimidades e parcerias que chegam às raias de devaneios estranhos... Fantasias infanto-juvenis. Historinhas que engolimos da santa madre Igreja. Historietas róseas, gostosinhas.

O hipotético brado na cruz: “Elí, Elí, lamá sabactaní”[v], dá-nos a perceber que Deus foi obrigado a deixar que todo o pecado da humanidade, num só instante, recaísse sobre Jesus, caso contrário a redenção jamais poderia se consumar. Fazendo um esforço peritoneal para pensar com a cabeça de um protestante, sou levado a concluir que no passado Deus teria abandonado seu Filho para que se cumprissem antigas profecias adaptadas sobre o suplício do Messias... Então, como Deus voltaria atrás nos dias de hoje, uma vez que todas as profecias parecem demonstrar que chegamos ao ocaso da história humana? Pobre do homem na ilusão de Deus...

Visto por esse ângulo, a história se repete: o todo-poderoso estaria impedido de interferir na existência dos moradores da terra, pois vige a sua palavra. Mas como qualquer deus pode atender a um e não atender a outro? De que forma o livramento do mal pode ser concedido somente a um? Outro? Mas e o grande Outro com sua promessa? Postula-se melhor, então, a decisão equável – todos às traças, a menos que haja ouro para a secta.

A questão fica assim: quais as situações em que Deus interfere hoje em favor da humanidade? Inexequível. Voltamos ao injusto sugerido. Segundo as escrituras, a interferência está na razão direta da fé individual, ou não. Se permanecer o critério de se alcançar a dádiva pela fé, então, nunca chegaremos ao fim dos tempos. Seria concessão, se visto através do perfil escatológico. Concessão é dúvida. É estranho e não seria aplicável, pois desabona os deuses.

Resta-nos, assim, a conclusão sinistra de que o todo-poderoso, por fidelidade própria, foi obrigado a deixar a humanidade ao léu... Segundo a Bíblia, chegamos ao fim dos tempos – a análise tem que ser correta –, não há mais saída. As interferências divinas, descritas nos clichês da “história sagrada” de outrora, não ocorrem mais na mesma ordem. Agora é o botão do dane-se que foi apertado...

Ficamos mais ou menos desse jeito: a terra é de ninguém, o filho grita pela mãe... Está gritando de teimoso! A mãe é surda, o filho chora e ela não ouve. Então, não é aconselhável muita esperança para não se afogar nela. Mas, se repensarmos a visão fideísta a qualquer preço, ficaremos diante de um neopascalismo. Mesmo que Deus tenha deixado a humanidade de lado para que as profecias se cumpram, ainda assim, é mais seguro crer nele. Caso contrário, a fé deixaria de ser uma dimensão antropológica. Entretanto, não existindo Deus, segundo o que o evolucionismo propôs, resta-nos a existência biológica – o festim das minhocas!

Como em todo lugar onde tem oxigênio tem porcaria, vivemos em uma colônia penal, pois fomos condenados à vida. O uso da fé pura e simples não nos exime da condenação à própria existência, já que fomos, por todas as crenças, exprobrados e premiados com a maxima culpa! É coisa de nascituro, pois já vem antes de se chegar à luz... Somos culpados porque murmuramos, damos voltas no deserto, reclamamos do maná e das codornizes, somos falhados congênitos. Não pedi para nascer, não pedi para sofrer e tenho que trabalhar. Porém, trabalho não mata, só aleija. Quem mata manda no Olimpo e o resto é trabalhar, envelhecer. Depois de purgar como um escargot, morrer. Funciona assim mesmo e o grande desafio é encontrar Deus fora do Olimpo, ou seja, na colônia penal. Nós, de camisola branca, rodando o moinho. Será que Deus vai perder tempo, visitando colônias penais? Tenha dó...

Depois de Darwin, ficou tudo mais claro. Surgiu um novo deus. Deus após Darwin! E agora José? No caminho tinha uma pedra, a pedra é a evolução das espécies com a proposta da vida puramente biológica. Foi a perda do significado de tudo: o feto niilista cresceu e virou homem! Mas e agora, Deus meu? Ou Deus teu. Estamos prontos para a realidade? É mais fácil recuar.

Por conta da seleção natural, os mais resistentes se adaptam à natureza, sobrevivem aos mais fracos, pois são mais adaptáveis e, então, a criação divina através de um projeto inteligente, do desígnio, cai por terra... Se a natureza se incumbiu sozinha de desenvolver e de projetar a vida, onde se situa o Criador? Por que insistir em explicações religiosas para o início da vida se a ciência explicou o essencial e o cabível? Já explicou o essencial, sim! E ainda vai explicar o que falta. A natureza não cumpre o papel de ser boa nem má. É sem crueldade, pois é sem valores humanos. Não é cruel, é real.

Conta-nos John Haught[vi] que um sacerdote cristão, diante do quadro de Charles Darwin sobre o evolucionismo, abandonou a Igreja e apontou o ateísmo como a única opção honesta no mundo. Haught argumentava que um Deus de amor não poderia ter idealizado e planejado um modelo onde a lei dominante é uma luta monstruosa pela sobrevivência em um planeta superlotado.  Questionava como um Deus de amor poderia estabelecer princípios onde a violência da competição teria, entre os animais e os homens, como regra basilar, o resultado da crueldade que vai determinar a sobrevivência dos mais fortes. O mais cruel, o mais astuto e o mais sagaz é que sobrevive, ou que melhor se adapta geneticamente? Como um Deus de amor projetaria uma cadeia de existência cruel onde criaturas sensíveis são obrigadas a devorar outras tantas criaturas igualmente sensíveis e estabelecer, assim, o pior dos sofrimentos? Que Deus é esse de tanto amor que projeta as criaturas para se dilacerarem e infunde nelas, ao mesmo tempo, a capacidade de sentir dores intensas? Que Deus é esse que nem ao menos anestesia suas criaturas na hora de serem degustadas? Mas não é Deus, é a natureza que promove isso e pronto. Qualquer deus não tem nada a ver com isso. Esse deus é um quarto vazio.

Depois de Darwin, a religião é despida de significado, discute-se o projeto inteligente divino. Na verdade, os argumentos da razão desbotam os mitos. Jamais vi em qualquer ambiente clerical uma discussão honesta sobre evolução, pelo contrário, antes o que se vê é repulsa, sobretudo dos protestantes, às “ideias perigosas” de Darwin. É proibido abrir a boca na Igreja. Só para bocejar, é claro, pois fica duvidoso e comprometedor para os fiéis.

Há algum tempo, vi um pregador protestante na televisão ser questionado por um seguidor se o homem foi criado por Deus antes ou depois dos dinossauros... Então, o pregador espertalhão[vii] respondeu que o homem fora criado, sim, antes dos dinossauros. Disse mais: que esses bichinhos sauriópodes foram extintos do planeta pelo simples fato de não terem entrado na arca de Noé. Tipicidade do florilégio-cultural-evangélico. Acho que o pregador é que ficou fora da arca.

O homem é incapaz de demonstrar a existência de Deus pela razão, já que qualquer tentativa de prova é pretensiosa. São Tomás tentou, mas não conseguiu desvincular a fé da razão. O que o Estado e ele pretendiam era firmar o povo na fé. No anedotário da religião, estaremos sempre diante do intrumentum regni[viii] do Estado, mantenedor do sectarismo, que assegura os interesses das classes dominantes. Assim, a maioria absoluta dos iletrados é induzida a crer cegamente na estratégia do sectarismo. Escravizam-se sob o conformismo das injustiças desse mundo e, através da crença opaca, tornam a deglutição da miséria muito mais fácil. É notório que o Estado alemão, entre outros, renunciou ao materialismo público e explícito por medo das massas: Die Religion muss dem Volk erhalten werden![ix]. Os governantes nunca se declaram descrentes, ateístas, pois poderão sofrer a cobrança do sangue dos miseráveis, dos quais as esperanças lhes foram retiradas. “O que fazermos diante de tamanha fome?”. Perguntou o povo. “Que haja sexo, religião e futebol![x]”. Respondeu o Estado.

Numa perspectiva cosmogâmica, o homem simples do povo não pode perceber que, desde a sua origem, está mergulhado numa solidão total e absoluta. A partir desse estado de ignorância, ele é vítima de todo tipo de fraude espiritual, de mitos e historinhas infantis divinizadas. Fica preso, atrelado ao medo de dar um passo que o faria, senão feliz, pelo menos um tanto livre. Na Pré-História, devido à imensidão do cenário que o cercava, ao carregar sempre a pequena brasa numa gaiola para acender sua fogueira, talvez o homem percebesse a solidão completa. Na sociedade atual, porém, é pouco perceptível por ele esse insulamento, devido ao estado do planeta superpopuloso e dispersivo em que vive. No mundo pluriarticulado, temos o espaço ideal para a proliferação dos mitos. Já que não encontramos meios para nos aliarmos à solidão, ela se torna o espectro que ameaça nossa existência. Aí, surge a religião, o compensatório do ininteligível.

Quando, com convicção, admiti e sustentei a falibilidade da Bíblia, jamais desconsiderei sua possibilidade positiva em relação ao aspecto transformativo no homem. Entretanto, aos poucos, fui me desjungindo da religião e atentando para o mundo real.

Vários séculos antes das escrituras serem compiladas, fatos bíblicos apenas faziam parte da tradição oral. Imaginemos: se com o livro já escrito, com a técnica do velho sermão encomendado, alteraram-no tantas vezes, quanto mais na sua fase embrionária?

A historicidade bíblica, de fato, representa uma completa ruína. O Gênesis e o Êxodo foram escritos mais de mil anos depois da imaginária migração de Abraão. Isso, em nome de uma construção de fé, como um projeto para desdobramento teocrático futuro, que vá lá... Mas como visão de método histórico-crítico, pelo amor de Yahweh! A religião não se fundamenta na história e, cá entre nós, que Deus violento, ciumento e vingativo os judeus criaram, não?... É só pensar um pouquinho. Então, para que se falar em história? Por que não ficar apenas com Harry Potter? Pelo menos não produz culpa nem neurose.

Não pretendo perturbar os crentes, pois os que não querem ver o mundo como realmente é, ou melhor, sem sentido de per si, hão de rotular-me como lobo devorador das ovelhinhas. Sinceramente, porém, quero ajudá-los a sair do medievo para a nossa época. Mas isto só será percebido por eles depois de passado muito tempo da leitura do presente livro. Primeiro, instala-se o medo do que digo e o choque de uma possível realidade. Depois, a ameaça aos nossos falsos valores conscientemente construídos sobre as dúvidas que abrigamos, mas cheias de disfarces. Por fim, a revolta, o ataque e, depois, a indiferença. Só que, com o passar do tempo, essas coisas estarão sedimentadas no subconsciente daqueles que forem afortunados, como eu, ao retê-las um dia. No futuro, entretanto, a reflexão terá o seu lugar – o exercício do pensar substituirá a ilusão e o encarceramento da nossa percepção religiosa.

O apóstolo Paulo teria escrito as suas cartas nos anos 50 d.C. e jamais chegou a ler qualquer um dos Evangelhos, pois foram escritos muito tempo depois da sua própria época.
O Evangelho de Marcos foi o primeiro a ser escrito, em torno de 70 d.C.; Mateus e Lucas, entre 80 e 85 d.C.; o Evangelho de João entre 90 e 95 no mesmo século. A Bíblia não é una, é plural! Por isso, o maior golpe de marketing da antiguidade foi dado por Constantino, pois vendo um império absolutamente fragmentado, resolveu unificá-lo através da religião cristã que, até então, era perseguida, tornando o cristianismo religião da moda. Por isso, o cristianismo se perdeu. Teodósio, no século IV, consolidou então a obra que Constantino dera início – oficializou o cristianismo.

Na verdade, não possuímos em qualquer fundação ou museu do mundo um só original dos livros do Novo Testamento. É isso mesmo! As cópias das cópias, das cópias, dos milhares de cópias que existiram anteriormente, foram produzidas muitos séculos depois dos fatos “ditos” ocorridos. Todos os livros do Novo Testamento foram escritos em grego tardiamente.

Os acontecimentos da vida de Jesus não foram escritos por seus contemporâneos, que eram analfabetos, pescadores rudes que mal sabiam falar o aramaico, quanto mais terem o preparo para ler e escrever. Como pescadores da Galileia, trabalhadores braçais, poderiam ter preparo para escrever em grego? Assim, todos os fatos foram registrados em torno de 35 e 65 anos após a morte de um Jesus não histórico, escritos a partir de tradições e relatos orais, obviamente sofrendo todo tipo de interpretação pessoal de cada grupo. O telefone sem fio. Triste saber disso, não é? Desolador para quem colocou sua vida nessa esperança pálida... O que Jesus disse? O que Jesus não disse? Na verdade, ninguém pode afirmar nada ao se considerar tantos séculos de distorções dos relatos iniciais. Afirmar pela fé? Mas não é de fé que falamos e sim de verdades – buscamos fatos históricos, e no século vinte e um! O que é a fé senão acreditarmos naquilo que sabemos que não é verdade? Contumácia. Vivemos ainda a fé fantasiosa, medieval. Fé para exibir ao próximo. Exteriorização de sentimentos ensaiados, que não temos. Uma palavra na boca, outra no coração.

Nos séculos II e III, existiam grupos com as interpretações mais diversas sobre o cristianismo. Eram ebionitas, marcionitas, cristãos gnósticos e proto-ortodoxos. Os últimos prevaleceram nas ideias, ao canonizar as escrituras, achando que as brigas teriam fim. Nessa época, os copistas cometeram os maiores erros, voluntários ou não. O fato é que as escrituras foram escritas de maneira humana, demasiado humana. Neste livro, grafei a vogal inicial da palavra “escrituras” em minúscula pelo simples fato de entender que escrituras não são apenas as cristãs, mas as judaicas, árabes e hindus também. Portanto, além de todas terem sido construídas por homens semianalfabetos, muitas vezes até insidiosos, o conceito linguístico é mais geral do que particular.

Vale lembrar que foi no concílio de Trento que a Bíblia passou a ser considerada como um conjunto de textos de inspiração divina e isso devido aos católicos. Do cunho histórico ao teocrático.

O homem não perde a mania em dar crédito às fabulas dos que aparentemente “olharam, mas não viram”, aos profissionais do sagrado, copistas ou não, traficantes da fé que se especializaram em criação de lendas para amenizar dias difíceis. Tal qual roteiristas de novela com a missão de nos ocultar a imensa solidão em que estamos submersos, mas de gustibus et de coloribus non disputandum...[xi]
 
Não é tão simples dizer: “Não creio na Bíblia porque foi escrita por homens!”. Ou, ao inverso, “A Bíblia é a palavra de Deus”. Toda e qualquer declaração sobre o assunto deve ser entabulada com agudeza de espírito. O tempo em que vivemos exige mais do que declarações sobre o verniz das coisas. É necessário perspicácia e admitirmos a transitoriedade de tudo ante ao novo cenário. Na Antiguidade, os mitos bíblicos eram a ordem do dia, nada se conhecia, portanto, se tornaram plausíveis. Hoje, o homini religiosi está menos ingênuo[xii]. Ele percebeu que, em profusão, as religiões se proliferaram sem acrescentar qualquer resultado objetivo à humanidade. A ciência faz melhor, pois é evidente. Qual o tipo de religião que descobriu a penicilina?

Como podemos crer em determinadas conjunturas judaicas, onde Deus parece deixar de ser onisciente a ponto de não prever a desobediência de Adão e Eva? Hipoteticamente, após castigá-los, arrepende-se de tê-los criado... Hominóides ou hominídeos? Como encontrar esses personagens primevos no século em que vivemos?

Como ficar de olhos fechados ante a mais uma possível falta de onisciência, que foi a escolha de Noé para repovoar o mundo? Será que Deus não sabia que tudo voltaria ao que era antes? Os filhos de Noé, então, repovoariam o mundo? Como, se a tentativa com Adão já não se mostrara positiva? Por acaso, o “Senhor” não sabia que as leis mosaicas jamais seriam seguidas na íntegra pelos judeus, a ponto de determinar a salvação pela graça através de Cristo? Se a resposta for o amor, a tolerância com o homem através dos milênios, por que tamanha complacência em relação a um plano de redenção de tanta complexidade, enquanto a humanidade geme de dor, agoniza e se arrasta pelo lamaçal da humilhação através da história? Enquanto os bebês das tribos famintas da África, ainda vivos nos acampamentos, contaminados pelo vibrião colérico, em completa desidratação e sem reação, aguardam que os abutres lhes arranquem as vísceras...

Como podemos crer numa religião totalmente caduca que pretende juntar os cacos de uma teologia oriunda de um passado medieval sombrio para adaptá-la aos dias de hoje, exibindo a sede de um papado, coberta de ouro, usando as técnicas de Disney para adaptar suas historietas. Como fica a Bíblia após Darwin?

Não posso crer em outra religião, surgida de uma Reforma, que acusa as demais de idólatras, quando a sua própria idolatria é um livro, o dinheiro e, no fundo, a fome de status social.

Com a primeira religião, infelicitei minha adolescência. Já com a outra, perdi o que tinha de melhor: a autenticidade, a alegria e o dinheiro para a pastorada faminta – os profissionais da fé. Fui um androide fideísta – títere da Igreja. Por isso, até posso sofrer a acusação de falta de conversão genuína, já que é fácil julgar o próximo. A imputação de não olhar para Deus, mas para os homens. Acontece que já ouvi essa história antes. Mas agora, só cabe a real intuição da deidade: primum vivere, deinde philosophari![xiii].

Não foi Deus quem ditou ou reuniu os livros da Bíblia, foram os homens. Há muito tempo e com segundas intenções. Em uma época em que os problemas que exponho na presente obra não eram questionados. Costumo dizer que a Bíblia se resume num problema gravíssimo de lombada (base de um livro onde as suas páginas são costuradas), o que fez dela uma coletânea de criações humanas, que pretende funcionar psicologicamente para os que não sabem pensar. À maneira de um self-service para a solução de problemas diários, embora muito contribua para o ato de conter a conspurcação humana. É o freio, o nutriente por excelência de todos os homens que precisam da religião de forma emocional e psicológica. Mas a Bíblia não deixa de ser um livro humano, demasiado humano.

Admitiria as palavras e promessas de Jesus como insuperáveis, em relação a qualquer sistema religioso no mundo, se elas fossem comprovadas como fato histórico. Se ele fosse provado como o Jesus histórico através do método histórico-crítico, não uma construção de existência conceitual de livros canonizados... Porém, dentro da minha ótica personalíssima de entender a Bíblia, através do método histórico-crítico e da interpretação pessoal, da qual sou detentor de todo direito, bem longe dos teólogos-bufões. Sou obrigado a admitir o relativismo do que Jesus disse ou não, sobretudo diante das centenas de milhares de cópias do Novo Testamento, do qual não temos um original sequer! O clero só fareja as vítimas que pode devorar e foge desembestado daqueles que questionam as “verdades espirituais” estabelecidas.

Minha leitura das escrituras não está vinculada ao método devocional, como citei antes, mas é o resultado de uma análise profunda da existência humana sob o aspecto histórico-crítico. Porém, sem ao longe pretender desprezar o lado desconhecido da vida, a transcendência e os mistérios que nos deslocam dos nossos vis interesses. Vozes indecifráveis que tanto incomodam nossas intenções carnais na direção do ouro e da prata.

Minha leitura das escrituras obedece a uma visão racional, cientificista, histórica e sociológica, subordinada a um método obviamente. Não está presa àquilo que nos ordenam acreditar, mas à interpretação acadêmica da leitura horizontal (comparação dos fatos, teorias e postulados entre os diversos livros da Bíblia), em contraposto à orientação devocional, que propõe a leitura vertical (corrida, sequencial, não comparativa), como pretende o sacerdote, ao implantar uma dogmática qualquer no nosso estômago. Só depois de muitos anos na trajetória do aprender a pensar, de reflexão com agudeza de espírito e coerência, pude perguntar a mim mesmo: “Puxa, como não vi isso antes?!”...

O deus construído pelos dogmas é, com certeza, o amigo imaginário dos adultos. Na verdade, em nenhum momento deste livro pretendi anular qualquer causa sui, como provável força superior, hipotética causa coexistente ao universo, mas questiono o que os livros pseudossagrados e o que os teólogos tagarelam sobre o deus que inventaram. A partir da honesta conscientização do método histórico-crítico, a fé já encontra outra dimensão, principalmente se fé significa não querer saber o que é a verdade. Nos seminários e faculdades de teologia de nível acadêmico sério do primeiro mundo (protestante ou católico), o método histórico-crítico não pode ser oculto ao alunado. É um grande choque para muitos, que não suportam a quebra do encanto. Retornam silentes para as suas igrejas, ou abandonam a fé por completo. Outros, já menos sensíveis, concluem a graduação e se tornam falso-resolvidos profissionais do púlpito. Mas não dá para evitar, é necessário que alguém faça esse tipo de trabalho. Os beatos e religiosos crônicos precisam desses profissionais mais do que o ar que respiram. Ainda – é necessária a ilusão de Deus.

Cheguei, assim, à conclusão honesta de que a Bíblia contém dois tipos de texto: os inventados pelo homem e os reinventados pelo homem. Mas alguns são genuinamente inspiradores na busca do summum bonum. Dos fantasiados pelo homem, desprezo-os. É coerente, entretanto, atentarmos para os textos que nos inspiram à superação ególatra, pois eles representam uma esperança para o homem sábio num mundo destroçado e essa conclusão é dom da verdade. Entretanto, apesar de toda a coerência proposta, da boa intenção, do poder de consolar que tem a Bíblia, nem por isso ela se torna palavra de Deus. Se Deus pretendesse que o povo tivesse a sua palavra escrita para levar debaixo do braço, desde a Antiguidade, teria preservado a autenticidade da mesma. Ele não teria permitido que o homem a deturpasse. Bem, já que o homem a deturpou, precisou também dizer que as escrituras foram inspiradas por Deus, pois o futuro chegaria, as múltiplas contradições seriam descobertas e teriam que ser aceitas. Pronto, a peça foi pregada desde os tempos mais remotos... Amém.

A capacidade de alguém perceber o que é genuíno ou não, é questão factual da razão somada à sensibilidade dos elementos do espírito, pois as coisas espirituais se discernem espiritualmente e isso é dom da Natureza. Mais ainda: é direito soberano de cada um de nós professarmos a crença (ou a descrença) que está firmada no nosso entendimento. Mas não no entendimento dos hipócritas ou dos teólogos profissionais.

O julgamento dos meus detratores religiosos deixou de ser uma preocupação. Os fracos é que se preocupam, pois o desejo íntimo deles é o de serem livres, de ansiarem por pensar fora do contexto sectário. Uma vez que não podem, vivem no clima de artifícios, sofismas e hipocrisia. São enfermos e, na impossibilidade de serem felizes, tornam-se virulentos. Contaminam.

De mais a mais, quem pode determinar se alguém está salvo ou não? Os pastores? Os irmãos? Com certeza, os hipócritas podem e o fazem de forma brilhante. Os detratores precisam existir, pois alguém tem sempre que fazer o serviço sujo de julgar o próximo e de estabelecer os critérios da salvação. Como dizia o pai de um amigo meu, o velho Boaventura: “Mas de que esses ‘caras’ querem me salvar?... Será que vão pagar as minhas contas?”.

Para não atribuir tudo à seleção natural pura e simples, à existência biológica, fica a pergunta: será que Deus condenaria os homens por questionarem os livros santos que eles mesmos escreveram e canonizaram? Ou, mesmo, nos daria uma sentença condenatória por ousar um desabafo de que, se mais devotos examinassem a Bíblia com rigor, haveria menos religiosos no mundo? Se existisse um Deus assim, seria muito diferente daquele que conhecemos nas práticas religiosas.

Chegamos, então, a que porto? Ao nosso, onde a indústria da fé não tem poder, onde não precisamos de mais liturgias, só de sentimentos sinceros na possibilidade do ser feliz e, quando não, crendo que o amor nunca fará mal ao próximo.

A preocupação com o presente trabalho não é a de enaltecer os valores espirituais, ou mesmo engrandecer as hipotéticas obras divinas. É a de denunciar o sectarismo, o tráfico da fé, exibir a abordagem dos seus ardis e mostrar o quanto o homem é escravizado pelos “textos sagrados”. Entretanto, é notória outra preocupação neste livro: firmar o princípio da ininteligibilidade de Deus. Mas isto ainda não me coloca como ateu e, sim, como alguém que levou a observação das coisas e do mundo com a mais profunda honestidade. Humanista secular estaria bom para o começo... Qualquer um que se coloque diante do espelho e pergunte a si mesmo se tudo o que nos foi ensinado concorda com o que vemos no cotidiano, talvez chegue à mesma conclusão. É um mero exercício – reaprender a pensar.

Se Deus fosse cognoscível como os religiosos afirmam, haveria apenas uma religião no mundo, a certa. Como isso não procede, então, torna-se a prova incontestável de que nenhuma religião é a certa, permanecendo Deus ininteligível para todos nós enquanto vivermos por aqui. A “religião certa” é uma utopia: resultado do encarceramento ao mundo perceptivo dos iludidos.

O grande detalhe não é crer ou deixar de crer na Bíblia, mas intuir, fora da influência do sectarismo, o que pode ser extraído dela de forma construtiva. Para fecharmos a Bíblia, é necessário que também saibamos analisar a sua essência por outro ângulo, até então não abordado. Apesar de todas as contradições (mais de trinta mil alterações suspeitas nela contidas, segundo John Mill), ainda assim, a humanidade se tornaria muito mais feliz se tentasse segui-la nos seus aspectos claros, positivos, e observá-los com contrição. Nos aspectos claros e até no seu simbolismo.

Esta é uma obra que insiste na ininteligibilidade de Deus, mas numa atitude de admissibilidade de existências fora do tempo-espaço, obviamente insondáveis. Carl Gustav Jung disse que “o homem deve sentir que vive num mundo misterioso, sob certos aspectos, onde ocorrem coisas inauditas – que permanecem inexplicáveis – e não somente coisas que se desenvolvem nos limites do esperado. O inesperado e o inabitual fazem parte do mundo. Só então a vida é completa”.

De volta ao início do nosso livro: “quem, definitivamente cria as possibilidades? Quem faz as circunstâncias? Quem ajusta isto àquilo e aquilo a isto?”. O acaso? Ou os ajustes não são ajustes, seriam apenas resultados de um princípio antrópico? Ou seja, o cosmo já estaria casualmente ajustado em relação ao nosso planeta, com as condições necessárias para a nossa existência...

Bem, não é esse o objeto do nosso livro. O objetivo é uma denúncia contra o sectarismo, na esperança da sua desconstrução por cada um de nós. Uma vez que atingimos a possibilidade de desconstruir tantas coisas ruins em nossa mente, como o racismo, por exemplo, por que não o fazermos com o sectarismo religioso? Por que não rejeitarmos as influências religiosas que pretendem nos acorrentar, através dos teólogos que tentam dominar nossas mentes para não usarmos a reflexão e reaprendermos a pensar? Por que não jogarmos os contrapesos teológicos no lixo? O que é um teólogo senão um anão contador de historinhas canonizadas? O que eles nos ensinaram até hoje? Ira camuflada? Dúvidas? Comparações? Diferenças? Confusão? Culpa? Divisões? Sim, divisões de todo tipo e culpa como sobrecarga. Doaram-nos os fundamentos para as guerras e dissensões!

    Para os que não podem viver sem a ideia de Deus, só existe uma regra para que a intuição de um ser supremo seja perfeita: o amor ao próximo. Assim como, na mesma via, só existe um meio para que o sectarismo seja percebido. Ele está na criação das normas que agrilhoam as coisas puras e livres. Está na regulamentação e no instituto dos mistérios da vida. A secta se origina das normas impostas que caracterizam o dogmatismo, não dos princípios retos, felizes e da paisagem moral que nasce no íntimo do homem. O sectarismo brota do medo.

Agora, vamos aos criativos, aos autores do sectarismo. Quem são eles? São os profissionais da fé que nos iludem e decepcionam. Os que se camuflam perante a sociedade admitindo-se imperfeitos até, reiterando suas fragilidades, por serem iguais a todos os outros cristãos... Declaram que, apenas, têm o título de pastores ou padres, mas que também são imperfeitos. Coitados, tão fracos... É aí que se escondem, atrás da fraqueza anunciada e da sujeira oculta, antes que o povo possa descobri-la e desnudá-la!

Viva a esperteza dos profissionais da fé sectária! Não deveriam ser um pouco melhores esses amigos do ouro? Mantenedores da metafísica que ilude o pobre, o fraco, o enfermo. São “ungidos de Deus”, logo fora de qualquer suspeita. Salafrários! Enganadores dos símplices e humildes... Bem que poderiam dar exemplo, ou enganar melhor de vez, com mais arte cênica. Quando estão em desvantagem política simulam ratinhos, pedem perdão – quando se fortalecem, cospem nos fracos e indefesos. Eles conhecem muito bem os que não podem se defender e não precisariam ser homicidas espirituais, vendilhões do templo. Não causariam tantas decepções àqueles que nem sequer têm força para protestar, pois é a Igreja que os engole para, depois, vomitá-los! Pobres que se calam e levam as feridas das decepções causadas pelos líderes.  Levam-nas pela vida afora, perdendo as referências mais preciosas. São os símplices, silentes, que têm medo. Quem são eles diante da mega autoridade eclesiástica – o potentado das profundezas?

Aí vem um ingênuo adocicado e diz: “entrega a Deus, meu irmão. Perdoa!”. Consolo daqueles que se conformam. Por isso, o líder sectário segue feliz, com a sua família, sem se dar conta nem de longe do estrago, das cicatrizes que fez nas almas daqueles que um dia confiaram nele. Esse tal é o “servo do deus da morte”, que jamais será punido, pois o povo o sustenta, reverenciando o tal. Merecendo-o! Entretanto, não nos esqueçamos dos bons, que renunciaram. Que tal são Francisco de Assis? Teria iludido o pobre se realmente tivesse existido?

O deus da religião é a mais brilhante criação do homem, mas, com certeza, os mamíferos humanos são os mais decepcionantes produtos evolutivos da natureza. Mamíferos, esses, que se dividem em duas espécies: os ingênuos crédulos crônicos, que ficam com a fé e os religiosos profissionais, que ficam com o dinheiro...

As velhas utopias já não servem para mais nada. Precisamos de outros sonhos e novas saídas de acordo com o nosso tempo. Com dever moral e consciência. Por isso, através da minha visão pessoal de pintor, comecei com um esboço prévio de Deus numa tela em branco, embora Picasso tenha dito que “a arte é uma mentira que nos faz perceber a verdade”.

Se isto aqui é tudo o que temos, saibamos viver da melhor forma possível, parafraseando Schopenhauer ao expor o tributo de amor ao próximo sem a intervenção divina. Na tentativa de sermos mais tolerantes com os erros do nosso próximo, pois estamos, na realidade, diante dos nossos próprios erros e estupidez.

Ou se, para outros, isto aqui é pouco e precisamos do além, possamos chegar, sem cairmos no sectarismo, ao mesmo objetivo com alguma opção devocional equilibrada, que faça parte de um bom cardápio. Cada um que se iluda como bem entender.




[i] De velhacaria.
[ii] Pasmem! Esse título existe mesmo! Tenho até um conhecido que, morrendo de fome no Brasil, foi para a América e se tornou um “doutor em divindade...”.
[iii] Retira-te, Satanás!
[iv] Castelo na areia; devaneio.
[v] Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?  
[vi] Professor de teologia da Universidade de Georgetown.
[vii] Na verdade, apedeuta.
[viii] Meio de governo.   
[ix] O povo precisa de religião!   
[x] Em Roma era pão e circo.
[xi] Não se deve discutir a respeito de gostos e cores...
[xii] Sim, porque ele, à sombra do sectarismo, sempre será ingênuo...
[xiii] Primeiro existir e depois filosofar!


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