terça-feira, 30 de setembro de 2014

A INDÚSTRIA DA FÉ


Uma das grandes preocupações que marcaram minha vida foi a exploração do povo pelos mercadores da fé. Jamais consegui compreender o porquê do cinismo de milhões de líderes religiosos que enriquecem por sugar o sangue e a individualidade dos ingênuos. Há os que matam o corpo, mas também existem os que desmantelam os sonhos e a alegria daqueles que um dia colocaram suas vidas aos pés de uma divindade ou de qualquer um livro convencionado santo.

Em 2007, publiquei A indústria da fé, que foi a confirmação escrita dos rumos ontológicos e existenciais tomados por mim nos últimos vinte anos. Pelo temor do desconhecido, fiquei silente por anos a fio. Vítima que fui no passado da escravidão do sectarismo, explorado pelos abutres que permeiam o mundo da fé, achei que era o momento de denunciar o tráfico fideísta, o marketing da fé, que se desenvolve como metástases nos dias de hoje.

Neste livro, mostro ao público o quanto estamos encarcerados ao nosso mundo perceptivo. Encarceramento imposto pela mentira de séculos - o sectarismo -, justamente esse nosso mundo perceptivo, de que tanto nos gabamos, na maioria das vezes, não passa de um imenso desvio cognitivo... Desvios que se instalam na mente e, através da confirmação emocional da crença, causam estragos que são irreversíveis à nossa existência.

  

A partir desta obra, interessei-me pela filosofia de uma forma definitiva. Diga-se de passagem, com foco acentuado na filosofia crítica da religião. Em breve, estará disponível meu segundo trabalho do gênero, já concluído, onde faço uma análise minuciosa da origem do judaísmo, do cristianismo e da própria Bíblia. Sobretudo, da finalidade do clero em perpetuar a teocracia através dos séculos...

Em seguida, resolvi postar alguns trechos da presente obra, pois estamos diante de uma urgência intelectual que sacode a humanidade: o esgotamento dos significados da religião, que foram provocados pela indústria da fé.

"No meio do fogo cruzado entre teísmo e ateísmo, há uma questão pouco analisada: a necessidade do ser humano em insistir crendo em coisas que contradizem os fatos reais de forma absoluta. É uma questão séria, pois se trata do propósito biológico das convicções firmadas. Do cérebro à crença na crença. 

O objeto precípuo do nosso cérebro é a sobrevivência e ele trabalha nessa direção. Para a nossa sobrevivência, o mecanismo básico do cérebro são os sentidos e, ainda assim, eles são insuficientes sozinhos. Por exemplo, não é o bastante ver um indivíduo com aparência de assassino num beco ao cair da noite. O mais importante é perceber a probabilidade de outros indivíduos iguais estarem mais adiante, talvez preparando um assalto onde termine num homicídio. Isto significa a crença, o mecanismo de sobrevivência do cérebro para aumentar a função de identificar os perigos pelos nossos sentidos. A crença aumenta o poder dos sentidos identificarem melhor a ameaça à nossa sobrevivência. A crença tem o papel de informar o aspecto da existência que não tem ligação com os sentidos, com o mundo das abstrações e dos significados que se buscam na religião. Significados e significantes que se questionam a cada dia.

Então, nossos sentidos permitem o conhecimento do lado perceptível do universo, enquanto que nossas crenças nos firmam naquilo que está fora do alcance dos sentidos. A partir daí é que tem início o paradoxo: as crenças sobrepujam a coerência das coisas, suplantam o racional, apesar das evidências contrárias.

Na verdade, para o cérebro pouco importa a natureza da crença ou o seu lado irracional, a prioridade é formar um escudo protecionista, já que a convicção, nesse caso, é uma questão puramente biológica! Uma reação automática de sobrevivência comandada pelo cérebro. Exemplo disso é o caso de pessoas bem informadas, cultas, se prenderem às crenças grotescas e absurdas. Quando as evidências e as crenças são conflitantes, o cérebro não dá preferência à razão. O cérebro não se prende à razão, mas à possibilidade de sobrevivência, pois o escudo é a convicção assentada.

Criacionistas não suportam a cientificidade do evolucionismo, não por causa de argumentos convincentes, mesmo porque não os alcançam, mas pela ameaça de total desmantelamento de algo considerado intocável: a convicção fundamentada nas escrituras religiosas. Seria uma ameaça de destruição de um sistema íntimo de pensamento, consolidado como totalmente inquestionável! Algo que jamais pode ser discutido, pois constitui a maior ameaça à fantasia última da vida de um religioso. Quando o homem se sente ameaçado nas suas convicções, regride à fase infantil e posterga qualquer atitude coerente. Entra na defensiva, enfraquecendo-se, mas não admite os vieses da razão e refugia-se na contumácia, que é a toca, o artifício dos fujões".

Na presente obra, indico também o caminho para aqueles que um dia foram vítimas da indústria da fé. Só há um meio para escapar desses ardis: a aquisição de saberes e o reconhecimento sincero de que precisamos reaprender a pensar. Não adianta mudar de religião, tampouco confiar nas nossas intuições, pois elas são absolutamente enganosas... O primeiro passo é admitirmos nossos equívocos e "achismos". Precisamos parar de achar isso e aquilo, ou permaneceremos como reféns perpétuos dos desvios cognitivos.

"Da questão do teísmo e do ateísmo, extraímos um fato extra: quer se creia ou não na existência de Deus, é absolutamente impossível, em qualquer lugar do mundo, a negação da existência do mal. Por que a existência do mal é muito mais crível e aparente do que a existência de Deus? Por que se acentua a evidência daquilo que representa o modo irregular do que deveria ser? O que se opõe à probidade, à virtude, à honra; aquilo que fere ou prejudica, não pode ser negado como existente, pois é factual.

O que é o mal senão um erro? Erro absoluto. Sendo Deus onisciente e onibenevolente[ii] pressupõe a não criação do mal, mas sendo, também, onipotente, pressupõe a possibilidade da criação de tudo. Não pode ser cogitado um ser onimalevolente, pois só produziria o mal e Deus já se mostrara como onibenevolente. Se o prefixo oni compõe e comporta o sentido de tudo, do absoluto, não pode abranger dois princípios. Ou Deus é onibenevolente ou onimalevolente. Assim, sendo Deus um ser onibenevolente, quem criou o mal? Ou Deus poderia ser limitado na sua própria existência? Ele não é omnimodus[iii]? Se Deus é um ser onímodo, de todas as maneiras, podendo ser autor do bem e do mal, torna-se, irrefutavelmente, um ser oniparente[iv].

Nesse tom, fica a questão: se Deus também criou o mal, não pode o bem ser um erro absoluto? Não procede, porque desfigura o ser humano e porque nossa natureza proclama o mal como erro, entretanto, o mal é necessário, pois existe.

Outro ponto é que, sendo a natureza de Deus perfeitamente bondosa e o mal uma imperfeição, como pode tudo em Deus ser bondade, acorde com o que dizem as religiões? Das duas, uma: ou Deus não foi capaz de criar um mundo perfeito e bom, o que representaria a completa perda da onipotência; ou, simplesmente, não quis fazer isso, o que seria a anulação da onibenevolência. Como, então, harmonizar a existência do mal com atributos como onipotência e onibenevolência? O mal é ilógico e aceito, não insertado, mas inserto na cultura judaico-cristã, mas é lógico e rejeitado, inserto na verdade efetiva da natureza, simplesmente porque é real.

Um argumento que vige na teologia cristã é a camuflagem do mal, via a imposição do plano divino, ao tornar o mal o veículo necessário e lógico para o aprimoramento do homem no seu espírito em face do plano divino a ele determinado. Nauseabundo.

A teologia redencionista resolve o problema: sem o mal tudo seria bom e o que haveria de ser salvo? Nesta via, surge o motivo para o castigo, para o inferno e para a corporificação do próprio mal, o Diabo. Depois, o livre-arbítrio e, por fim, a culpa. Não existe profissional do clero sem a administração da culpa. Ela é o nutriente do mercado de trabalho do sacerdote e adubo sectário.

Nesse encadeamento de conceitos, quando os juízos dados permitem inferir outros, poderíamos concluir que, ou Deus não teria conseguido eliminar o mal, ou apenas o teria colocado no palco da comédia humana com uma finalidade desconhecida. Afirma-se, então, que a fé é irracional, não é concebida pela razão – não pensa. Então, a fé é o exercício constante de teimosia para fugirmos da sensação de abandono aqui neste mundo...

Há, também, o argumento de que tudo o que Deus criou é bom e, sendo assim, fica a opção espontânea do homem na escolha do mal. É o resultado do livre-arbítrio, portanto, criação humana. Porém, o que dizer diante do indício do próprio Deus haver criado o livre-arbítrio? Se Ele o criou, então, deu-se a origem do mal, que não deixa de ser resultado da criação de Deus. Sim, pois criar o livre-arbítrio implica ter em mente a consequência do mal, que é nefasto, porém necessário ao redencionismo.

Sendo o mal o inevitável efeito colateral do livre-arbítrio, logo, não é exatamente a criação que se pode esperar de um ser onibenevolente. Visto desta forma, ou caímos numa espécie de teofobia, ou encaramos a possibilidade do cristianismo. Ou se aceita o Deus que pune e aflige, ou a teodiceia da incoerência. E o que seria a incoerência senão um problema metafísico?

Um aspecto, também, que falta com a coerência é o argumento da necessidade do mal com o propósito de aprendizado através da experiência do sofrimento, o que redundaria numa valorização maior do bem após se haver passado pelo mal... O fato de Deus haver criado o livre-arbítrio, ou produzido o mal, não é o aspecto mais relevante do assunto, todavia, sim, a compatibilidade dos polos e a incoerência de um ser onibenevolente haver criado o mal. Cabe-nos pensar o ilogismo da questão do deus-mal.

Com toda a certeza, não há nenhuma lógica para a criação do mal dentro de uma visão científica. Um deus que passa a punir as pessoas a começar do nascimento. Pune pelo mal praticado e dá o sofrimento para a remissão das culpas. De acordo com a teologia salvacionista, sofre-se um dano por duas razões: castigo ou provação. É o paradigma cristão paradoxal, a punição pelo mal, pelos erros que o homem cometeu desde o nascimento apenas por ter vindo a esse mundo. Ao envelhecer, adoecer, morrer e ser condenado eternamente. Esta é a visão clássica do mal.

Por fim, a resposta calvinista e primária que tenta encerrar com a questão: “Deus criou mesmo o mal. E daí? Ele faz o que bem entende, pois é Deus!”. Isto, porém, não resolve absolutamente o problema lógico do mal, apenas deixa o teísmo a dar voltas no deserto da dúvida.



[i]Negação total de toda a escala de valores e de toda forma de religião.  

[ii] Qualidade de absoluta bondade e suprema benignidade.

[iii] Aquilo que é de todos os modos.

[iv] O que produz tudo."







CONTOS DESLAMBIDOS


     Em 2006, publiquei um livro de contos totalmente aéreos e sem compromissos mais inquietos, Contos deslambidos. Do livro, decidi postar dois desses contos.


ADAM E PRISCILAH

O que vem a seguir. Sou educador aposentado e estou seguro de que a descrição é verdadeira. É o que parece importar para os homens – a verdade – e dela todos fogem. Querem-na, mas, quando desnuda, apontam-na relativa, pois o absoluto é assustador. Será mesmo que o absoluto existe? Foi um famoso maestro judeu, o autor desta pergunta. Estou tranquilo no meu relato. Se vão crer ou não, deixa de ser o mais importante para mim. Afinal de contas, tudo fica mesmo com os relativistas e foi o que percebi ao conhecer Adam, um indivíduo completamente diferente dos outros – pássaro bizarro atrás da própria existência.

Quatro, às vezes, se torna um número alto para certas coisas. Passaram-se quatro anos como uma nuvem doida e despercebida depois que vi Adam pela última vez. Como sofreu. Foi o ciclo de sempre: só os loucos ou os sonhadores sabem o que é o amor. Louco ele não era, mas um sonhador sem compromisso com a vida. Um tipo de artista irresponsável com o resto do mundo, porque era o resto mesmo para ele.

Adam esperava uma mulher que conhecera por acaso e que chegava ao trabalho todos os dias no mesmo horário. Priscilah. Estranho, mas o cartório botou um h no final do nome. Mulher discreta, que analisava a vida à sua volta com a fleuma e a calma de um lagarto. Tomava conta de dois idosos num sobrado, em cima de um armarinho. As pilhas de carretéis, miudezas, aviamentos e toda sorte de pequenas insignificâncias valorizavam a fachada do sobradinho, que ficava com jeito de coisa árabe. Os dias corriam.

Priscilah tinha um sorriso enfeitiçado que anulava todas as reações de Adam, já que ele não sabia se era anjo mau ou bom. Mas começou por ali uma paixão doida e Adam queria de qualquer maneira que o anjo fosse bom. Lógico, a intenção era viver junto dela para quase sempre. Começaram os dois naquilo que se repete – passeios e juras de amor. Os velhinhos do sobrado, jogados às traças, tiraram o emprego de Priscilah. Então, ela resolveu conhecer muitos lugares poéticos com o seu amado, até que encontraram um chalé à beira de um laguinho, totalmente espelhado, de onde saía fumaça por causa da evaporação durante o inverno. Lá ficaram escondidos por meses fazendo amor, comendo empadas de camarão com Miojo. Também comiam arroz selvagem. Queijo coalho. Sementes de girassol com funcho. Peixes, cogumelos e morangos silvestres. Enquanto ela colhia os morangos com a cesta que usava para os seus bordados, Adam pegava os peixes com um puçá na parte mais quieta do lago, quando a água esquentava um pouco, à tarde. Os peixes iam.

Corriam os dias e o sentimento aumentava. Priscilah era o tipo que não prestava atenção a nada. Nunca olhava para os carros antes de atravessar a rua e a vida era um atropelo, sempre. Qualquer buquê de flores que um carroceiro mandasse era uma promessa de casamento feliz. “Cega como uma barata, mas o cheiro de princesa”. Ouvi isto de Adam por mais de uma vez.

O que fizeram? Como dois irresponsáveis amaram-se, perderam-se com dor no peito de tanta paixão. Adam era orgulhoso e queria guardar Priscilah num vidrinho para ele. Ora, impossível... Se juntada a incerteza e a inconstância da mulher, não caberia no próprio ser, muito menos num vidrinho. Adam descobriu que Priscilah amara muitos homens e que jamais poderia tê-la ao lado do travesseiro... Não beijaria sua sobrancelha outra vez. Adam foi para a beira de um caminho, andou soturno porque a vida lhe arrebatara os devaneios. Depois nunca mais sentiu nada, nem raiva, nem amor. Ficou indiferente de botas. “Brinca, vai!” – falou de desgosto – foi embora.

O que fazer agora? Priscilah ainda dizia para Adam que o amava, que tinha ciúmes. Amor de plástico, pois não era verdadeiro. A triste verdade é que Priscilah não sabia o que era o amor e se entregava aos ventos, flutuava como uma bolha sem rumo. O que fez Adam? Chutou o balde. Era o tipo que se preparara na vida para espirrar veneno no olho do inimigo, caso o identificasse. Mas Priscilah, em meio à astúcia, toda camuflada, fingiu-se amiga e que amava Adam, assim, o inimigo não pôde ser identificado... O coitado lera O Príncipe quando tinha quinze anos. Achou que sabia tudo – será? – foi para o espelho e disse: “Idiota”. Acho que Adam não lembrava mais do Príncipe de Maquiavel...

Bem, é sempre tempo de restaurar os ideais maquiavélicos. Adam releu O Príncipe e pensou ter esquecido Priscilah. Mais tarde, descobriu que ela tinha ingressado num grupo secreto, tornando-se bruxa. Priscilah, quando era descoberta e deixava de ser amada, matava os seus amantes... Abria-lhes o peito para extrair-lhes o coração! A “Sociedade dos Bruxos” ensinava que, uma vez os corações arrancados, para que o feitiço fosse completo, seria necessário comer uma parte deles e o resto mergulhar em cera quente... Depois de resfriado o pedaço sobrante, guardá-lo em armários bem altos, acima das cabeças dos adultos, longe da vista de qualquer criança com menos de doze anos. Talvez ela pretendesse tirar o coração daquele a quem mais amara, mas que se encontrava bem longe dela. Ainda bem que estava longe.

Porém, o que Adam não esperava aconteceu. Priscilah fez um feitiço: uma pipa com a pele de um carneiro com sete dias de nascido e o retrato do seu amado colado na ponta. A pipa tinha que ser empinada até ficar pequenina no céu. E assim foi. Depois, ela gritou duas vezes: “Torneró! Torneró!”. Aquilo mais parecia com um pedido de regresso... E ele voltou para ela.

Quero ser breve no meu relato. Repito que não estou preocupado com quem vai ou não crer em mim. Por esses dias, ao cair da tarde, dirigi meu carro para longe da cidade. Quando passei por uma estrada de terra, no parque natural que esconde o laguinho do chalé onde ficaram Adam e Priscilah, vi uma figura feminina indefinida com uma cesta na mão colhendo morangos por trás das árvores. Parei o carro, desliguei o motor e passei a observá-la. Dois ou três minutos, até que um homem veio do lago segurando uma fieira de peixes, caminhou na direção daquela figura feminina e abraçou-a longamente... Depois foram para onde ficava o chalé antes que eu os pudesse identificar, embora meu coração inspirasse a certeza de quem eram na realidade. Daí eles sumiram. Contornei o bosque para ver o chalé de outro ângulo, mas não vi nada. Não havia qualquer chalé por ali. Procurei pelo chalé o dia todo. Nada.





ADAM EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

Passou um bom tempo desde que vi Adam pela última vez. Perdera-se de Priscilah e vagara como um vira-lata por lugares afastados até se tornar vagabundo como a sociedade costuma produzir. Dormiu até por dentro de grutas porque se largou mesmo. Largou-se de tanto amar. Cansou, dormiu. Acordou e a realidade surrava-lhe cada vez. Mais.

Foi numa enseada que o vi, chamando por uma sereia que achava ser dele. Pensou ser sua a sereia, vê se pode... O tolo não via que ela já tinha dono! Seu barquinho tinha o nome da sereia pintado na proa, “Priscilah”. E pintou com o sangue do pé, pois pisara num ouriço. Ficou doente, o infeliz. Não comia, não bebia, nem sorria. Deprimiu-me ver aquilo. Por certo, no delírio, resolveu amar uma mulher meio-peixe e indiferente. Estúpido sonhador que foi amar uma mulher no lugar do dinheiro.

Em uma dessas noites últimas, voltei lá. O barco estava com um buraco enorme e encalhado na areia. Adam, sentado numa pedra, olhando para o mar, balbuciava: “Volta minha sereia. Volta, pois não suporto mais a tua ausência... Meu coração está ferido e dele escorre gota a gota o sangue que antes me dava forças para buscar-te. Hoje, vejo-te apenas na alma, que é gêmea da tua. Busco-te no pensamento, nas lembranças suaves de cada momento em que o teu sorriso se derramava – concedendo-me a vida, refazendo-me como ser –, o perfume do teu hálito cor-de-rosa. Que me escureça o céu de todo se não mais puder ver-te, beijar-te o rosto, deitando-me sobre ti para derramar-te minha semente. Volta minha sereia, pois não mais sei onde te buscar fora de mim mesmo. Dá-me a vida, o ar, o fogo, pois meu peito abafado quase se esvaziou do único bem que ainda tenho: a lembrança do teu sorriso”...

Ouvi tudo aquilo em silêncio. Confesso minha amargura por ver Adam na espera de uma sereia, no meio da noite, com a certeza fofa de um lunático. Pobre Adam: magro, sujo. Descrente da vida, dos deuses, mas acreditando em sereias... Néscio. Se houvesse mesmo alguma sereia, teria seguido outros navios e o coração de novos marujos.

Não tenho tempo para os loucos e eles são muitos. Voltei as costas para Adam sem que ele percebesse e retirei-me daquele cenário estranho. Mas, sei lá porque, assim faz todo mundo, dei mais uma olhada para trás, ouvi um canto agudo bem distante e vi Adam correndo para a água gritando como um doido: “Espera por mim! Espera por mim, meu amor!”.

Moral da história: em algum ponto da vida perdemos o contato com a realidade para retomá-la depois, pelo menos na maioria das vezes. Não sendo assim é porque enlouquecemos.

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