terça-feira, 6 de julho de 2021

 PICASSO, GÊNIO, BROMISTA?


  Em 26 de abril de 1973, o jornal O GLOBO publicou uma reportagem perturbadora. Eu estava no início da carreira de designer e ilustrador, diretor de arte da Norton, por isso as coisas ficaram confusas.

 “Era Picasso realmente um pintor genial ou estava apenas com a sua revolução artística, tirando proveito da ‘imbecilidade, da vaidade e da concupiscência dos seus contemporâneos’? Não foram poucos, no mundo, os que se recusaram a ver no artista malaguenho qualquer dimensão de excepcionalidade e denunciaram a sua obra como farsante. Nesse grupo impugnador se incluía, surpreendentemente, o próprio Picasso. O seu autojulgamento de bromista, que ganhou celebridade e riqueza à custa dos basbaques das belas artes, está numa carta-confissão que endereçou ao escritor italiano Giovanni Papini, em 1952. Publicada no Diário ABC de Madri, a carta foi reproduzida pelo La Croix, de Paris, e aqui vai parte do seu texto, tal como foi publicado: Desde que el arte no es el alimento que nutre a los mejores, el artista puede ejercer su talento intentando todas las fórmulas y todos los caprichos de su fantasia y todos los caminos de su charlatanismo intelectual. En el arte, el pueblo no encuentra consolación ni exaltación, pero los refinados, los ricos, los ociosos, los destiladores de quinta-esencias, buscan en él la novedad, lo extraño, lo original, lo extravagante y lo escandaloso. Yo mismo he contentado, desde el cubismo y mucho antes, a todos esos criticos con todas las bromas que se me ocurrian y que ellos más admiraban cuanto menos las comprendian. A fuerza de ejercer todos eses juegos, esos rompecabeças y esos arabescos, yo me he hecho célebre rápidamente. Y la celebridade significa, para un pintor, ventas, fortuna, riqueza. Yo soy ahora, además de célebre, rico. Pero cuando me quedo a solas conmigo mismo no puedo considerarme un artista en el grand sentido que esta palabra tiene. Grandes pintores fueram Giotto, Tiziano, Rembrandt y Goya, yo soy solamente un bromista que ha comprendido su tiempo y ha sacado lo que ha podido de la imbecilidad, la vanidad y la concupiscencia de sus contemporáneos”.

 Sei que é difícil matar a fantasia, pois é o mito que move a humanidade e a religião é a maior prova disso. Mas quando Picasso morreu, eu estava na Norton Publicidade, em 1971, no auge da idolatria por ele e me sentindo o gênio da publicidade... Estranho é que, tempos depois, comprei um livro, O pensamento vivo de Picasso, da editora Martin Claret e, na página 32, estava exatamente o texto acima, publicado no jornal O GLOBO... Pois é, no seu diário íntimo, Picasso cuspiu na cara da sociedade hipócrita, comprou castelos e se tornou uma divindade! Só que bromista, em espanhol, quer dizer embromador.


    Aliás, para ser mais objetivo, a verdade é que, no apagar das luzes do impressionismo, a arte começou a perder o seu fundamento maior, o compromisso com a técnica. Foi Joseph Beuys quem falou a grande besteira: “Todo homem é um artista!”. Com isso, inaugurou-se a fase de que tudo feito em nome da arte, também era arte. Da alta cultura, a arte passou pelo senso comum e, nessa curva, migrou para um tipo de meio-conhecimento estético escamoteado com a finalidade de enganar os esnobes. Foi a era dos discursos. Já falamos antes da cultura da ritualização do sem sentido. No final das contas, o palco foi montado para gerar rios e montanhas de dinheiro no século vinte. Inventaram a maior indústria de gênios da história. O lodaçal de pobreza em que a arte hoje se atolou é o preço pela “liberdade” que ela desfruta. Arte hoje é mais um envolvimento atmosférico, olfativo e psicológico do que, propriamente, o envolvimento com os princípios que sempre nortearam a grande pintura. Não importa muito o que uma moldura envolve. Importa o colorido dos tubinhos de tinta; os cheiros diversos que são sentidos quando entramos nas galerias novas, como da tinta de plástico de alguma obra, ou da madeira de alguma instalação; as vedetes que se denominam artistas fazendo firulas e o monte de baboseiras discursadas, enquanto seguram copos. Enfim, os artistas não precisam saber pintar nem desenhar, basta que sejam interessantes para impressionar a plateia e que escondam muito bem a sólida fonte de indicação que os colocou no palco.

 1970, à época em que trabalhei na Norton como diretor de arte, li as confissões cabotinas de Picasso e, na ocasião, descobri um mestre genial, que fazia parte da galeria dos grandes ilustradores americanos: Benjamin Albert Stahl. Um fato atraente é que o próprio Norman Rockwell se declarou apenas um ilustrador diante de Ben Stahl, que o considerava um grande artista: “We are but illustrators, Ben Stahl is among the Masters”. Curioso é que Stahl, não cristão – de origem judaica, pintou a Via Dolorosa mais sofrida e espetacular que já vi! Suas Estações são de uma força e sofrimento inigualáveis. É a prova de que o profissionalismo na arte não tem nada a ver com inspiração divina... Então, quando percebi a grandiosidade do artista que descobrira, diante das notícias que tive de Picasso e demais modernistas, fiquei perturbado. Na época, minhas indagações ainda eram ingênuas e infantis. Na minha cabeça não havia espaço para entender como um pintor tão famoso poderia se declarar um embromador e a mídia rolando a bola de neve do charlatanismo intelectual. E todo aquele “blá-blá-blá” sobre centenas de quadros que a crítica tornara tão mágicos e sedutores? Tudo mentira? Levou muito tempo depois disso para que eu pudesse entender. Assim, amadureci e descobri a mídia. 


 Tempos depois, fui em busca do que realmente me interessava e comecei com descobertas através de milhares de textos, que precisavam ser enfrentadas. Susan Best, uma pintora realista de Buffalo, Texas, mandou um recado para os incompetentes pintores modernos: “-Tenho oitenta anos e trabalhei toda a minha vida na arte com sucesso. Aprendi a suportar as críticas desde jovem por colocar em jogo um fator negligenciado pela maioria: o bom senso. Os compradores em potencial percebem logo se um quadro lhes interessa ou não. Nunca jogam dinheiro fora: ou adquirem a obra, ou desistem dela. Não precisam de ninguém para dizer-lhes se a compra lhes convém ou não. Simples, talvez, mas o bom senso funciona perfeitamente. Nós artistas temos orgulho do nosso trabalho e nunca fazemos menos do que o melhor ao nosso alcance. Nosso sucesso depende da satisfação com que realizamos esse trabalho, do prazer que proporcionamos aos outros e do número de viagens que fazemos ao banco... Então, aos tão famosos intelectuais da pintura, eu digo que nós não precisamos de vocês. Vão ladrar diante da lua!”.

 O problema é que não me conformo com os imbecis que pasmam e os hipócritas que fingem pasmar diante de tantas bobagens e falcatruas que representam a tão falada arte moderna. Numa época em que o pós-moderno já entra em falência, como falar em moderno? Acontece que, para mim, todo o festival de mentiras e embromações começou no fim do século dezenove. Três iludidos que foram enganados pela crítica, pois disseram-lhes que eram gênios. E os tais iniciaram tudo aquilo: Van Gogh, Gauguin e Cézanne. Coitados, foram vítimas dos marchands enganadores da época. O primeiro “gênio”, incompetente, recusou a ajuda de um tio, pintor acadêmico de mérito, só vendeu um quadro em vida e acabou por dar um tiro no peito. O segundo, incompetente, abandonou a família, fugiu para os mares do sul e acabou tomando arsênico e, sem mais poder fugir de si mesmo, morreu dias depois. O terceiro acreditou ter descoberto nova fórmula e, pouco depois, declarou-se um falhado para Zola. Três vítimas infelizes, que acreditaram em mudar a história da arte. Mudaram tanto, que o século presente assiste a maior adesão ao clássico de todas as épocas. A partir do final do século dezenove, o circo foi montado. Inventaram o culto ao individualismo. Ah, o individualismo. Basta pintar umas bolas um pouco diferentes e a peça está pregada pela crítica: um novo gênio que surge. A permissividade encontrou campos sem fim. E quem não é tentado fazer alguma coisa para ver se encontra um pouquinho de sorte com a mídia? Não se precisa mais de escola, nem de ofício, nem de dedicação espartana diante de um cavalete. É só encontrar um padrinho do mecenato, um tio rico, talvez, e um crítico enrolador para escrever um monturo de porcarias para consolidar o novo talento. Ah, e altas doses de politicalha para sustentar a fraude intelectual elaborada pela velhacaria da crítica. 

 O jovem pintor realista americano Jacob Collins, aclamado pela crítica e festejado pela revista American Artist, declarou de maneira forte e concisa: “Tenho que me libertar do conceito modernista de que tudo que fiz é válido.” Aí está o centro de toda a discussão entre o clássico e o moderno. Por causa disso, a arte de Collins evoluiu. Ele aprendeu a trabalhar duro, estudar mais e se tornar crítico em relação ao seu trabalho. 

 James Gardner, no livro “Cultura ou lixo?”, faz declarações: “-Uma vez estabelecido, o mito do mundo da arte foi adotado por curadores, marchands, críticos e artistas, e reforçado por algumas eminentes exceções que confirmam a regra. Quem quiser entrar no sistema e não enxergar através do mito, não olhar para a gigantesca máquina de fazer dinheiro que ele é não irá muito longe”. E ainda: “O melhor que podemos dizer para muitos negociantes e artistas é que, se eles enganam os outros, o fazem com toda a sinceridade dos seus corações, pois primeiro enganaram a si mesmos”. E toda a embromação orquestrada, já na tentativa de montar a nova ordem mundial, teve um bom início no Armory Show, quando nascia o século vinte. Enfim, não há como mudar, porque o ser humano adora mitologias inofensivas. 


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