sexta-feira, 29 de maio de 2015

DA CONSTRUÇÃO DO LIVRO E SEUS CÂNONES FATAIS III

Observe-se a situação das igrejas nos séculos II e III. Não havia, ainda, o que hoje entendemos por ortodoxia e heresia. Pus nesta ordem, porque a heresia só poderá existir a partir do que for ortodoxo. Esse conceito veio à luz e se firmou para sempre quando as Escrituras foram canonizadas. Portanto, quando um grupo ebionita, marcionita ou gnóstico amparava sua doutrina, fazia-o com plena convicção de “sentimento de opinião correta”. Claro está que cada grupo se achava dono da crença certa e a professava como verdade absoluta. Nem tudo era má-fé no quase tudo.

O conceito de heresia foi formado gradualmente pelos líderes e autores proto-ortodoxos, que tudo escreviam, fortalecendo suas opiniões contra os grupos antagônicos. Assim, teciam a malha do que viria a ser o Novo Testamento, pois as Escrituras judaicas eram o parâmetro da cristandade nos seus inícios.

À medida que os proto-ortodoxos esculpiam sua teologia em cima das epístolas de Paulo e dos Evangelhos (nesse aspecto foram mais inteligentes que seus rivais), os outros grupos perdiam força. Inevitável, mas o caminho escolhido foi da seleção dos livros que seriam canonizados, dirimindo a batalha de princípios, existente até então. Os proto-ortodoxos elegeram como critério para a canonização um método regulador comum: só o que fora escrito pelos apóstolos seria digno da canonicidade.

Os proto-ortodoxos reconheciam a autoridade absoluta dos apóstolos enquanto autores dos textos do Novo Testamento. E agora? Mas as cartas de Paulo são questionáveis. Os especialistas concordam com a autenticidade de apenas sete delas no aspecto estilístico, paleográfico e filológico, embora não sejam originais do próprio punho. Os manuscritos que temos em museus são cópias, pelo menos de cento e cinquenta anos após a sua primeira escrita. Não existe nada, absolutamente nada, escrito do próprio punho dos apóstolos... Os quatro Evangelhos são anônimos! Jamais Mateus, Marcos, Lucas ou João escreveram qualquer um deles e o pior é que cada copista não deixou de fazer a sua “festinha” particular, por burrice, inépcia, ou dolo. Todos deixaram suas marcas de alteração nos textos.

Nos primeiros três séculos do cristianismo, os copistas das Escrituras eram pessoas, ora com certo grau de instrução, ora limitadíssimas intelectualmente. Elas se arvoravam em todo tipo de interpretação na cópia de “originais” anteriores. Como eram indivíduos inconsequentes, sem ter a real dimensão do que faziam, alteravam os textos por ignorância ou má-fé. Nesse tempo do amadorismo nas cópias, guardavam um caráter regional, pois as cópias se diferenciavam bastante de uma província para outra. Não era possível o intercâmbio entre copistas de localidades distantes, pois sempre resultava numa forma fechada de interpretação das Escrituras. Não passavam de documentos de “regiões surdas”, com aspectos herméticos e intelectualidade de piso inferior.

Foi somente no princípio do século IV, quando o imperador Constantino se “converteu” ao cristianismo, em 312 d.C., que a sociedade romana sofreu profunda transformação. O cristianismo passou a conferir status social aos novos adeptos, virou moda e contagiou o império. Que paradoxo asqueroso... Depois, através do imperador Teodósio, o cristianismo se tornou a religião oficial do império romano. As nuances ocultas da religião, que já eram vis, apodreceram de vez.

Durante a época de Constantino, quando indivíduos de melhor preparo cultural aderiram à moda do cristianismo, se tornaram copistas profissionais e, mais tarde, os monges assumiram por completo essa tarefa, copiando as Escrituras gregas. Trabalhavam nas scriptoria[1] das abadias, com mais competência, mas nem por isso com mais honestidade. Essas abadias situavam-se no Império Bizantino, por isso o idioma copiado era o grego. Mas, logo, na parte ocidental do Império Romano, o povo já clamava por cópias em latim, que era a língua corrente.

Como mencionado antes, para atender ao apelo do povo, o papa Dâmaso I determinou a são Jerônimo, maior “intelectual” da Igreja, a tradução oficial das Escrituras do grego para o latim, com o objetivo de alcançar um resultado positivo e repercutível na aceitação popular do Novo Testamento latino. Chamou-se essa tradução de Vulgata[2] latina. Deu certo, pois foi aceita pelo povo, usada pela Igreja durante séculos e superou as traduções antigas no grego, que eram pouco acessíveis.

No século XV, em 1400, nasceu Johannes Gutenberg, inventor da imprensa, chegando ao fim a longa e penosa fase dos copistas das Escrituras. Com a impressão das páginas através dos tipos móveis, vencia-se um grande obstáculo para os copistas ab manu[3]. Todas as páginas impressas passaram a ser bem semelhantes, impedindo erros não intencionais. Esse fato pode até não parecer importante, mas foi um veículo imprescindível, pois através da interferência da máquina, abriu-se uma nova era para a escrita num contexto geral e, particularmente, para a formatação profissional do produto Bíblia.

A primeira grande obra a ser impressa por Gutenberg foi a Vulgata latina, que demorou seis anos para ficar pronta. Suas edições, assim, se multiplicaram progressivamente. Por quase um milênio, não se usava mais a Bíblia em grego na Europa ocidental. Só a Vulgata latina era utilizada pelo clero e por pesquisadores. Então, no mesmo século da invenção da imprensa, o Ocidente voltou a se interessar pelo grego.

Surgiu, então, uma figura ilustre, Erasmo de Roterdam[4], ordenado sacerdote pelo papa Júlio II em 1492, mas obteve a dispensa dos votos. Quedou-se imparcial quanto à Reforma de Lutero e criticou a arrogância dos católicos. Mais tarde, tornou-se um humanista, essencialmente ligado ao saber, dedicando-se à literatura e ao pensamento religioso.

Erasmo decidiu publicar uma edição do Novo Testamento grego, que, por ser a primeira edição publicada, foi chamada de Editio princeps[5]. A edição foi fundamentada em manuscritos do século XII... Pasme-se: mil e cem anos depois do nascimento de Jesus, segundo os Evangelhos. Quanta coisa mudou nos textos depois de tanto tempo, mas há quem refute esse princípio. O que vamos fazer? Contra fatos e provas não há argumentos. Mas para os crédulos em milagres e na falta das boas letras, Deus tudo adapta segundo seus planos... A edição de Erasmo foi impressa em 1515 e adotada pelos impressores, que reimprimiram o texto por mais de trezentos anos.

Mais ou menos na mesma época, Ximenes Cisneros[6] resolveu, em loucura competitiva com Erasmo, editar o Novo Testamento trilíngue, contendo três colunas por página – em latim, hebraico e grego. Essa edição ficou logo conhecida como Poliglota complutense, publicada na Espanha, cidade de Alcalá (Complutum em latim), daí o nome da edição que foi distribuída ao público só em 1522, quando o infeliz Cisneros já estava morto. O cardeal nem viu sua obra circular e o Vaticano virou a página do coitado, que virou poeira...

Os documentos que serviram de base para a Poliglota complutense foram emprestados ao cardeal Ximenes pelo Vaticano, através do papa Leão X, moldando os caminhos textuais da Bíblia mais e mais no rumo do catolicismo romano. Percebe-se como uma religião de origem tão humilde, que inventaram em cima de Jesus, depois de mil e quinhentos anos de distorções, se torna a maior influência política originária do passado para a Idade Média e Renascença.

Permito-me, em tempo, lembrar meu axioma, que mostra as divergências religiosas não como fruto de querelas dogmáticas, mas como resultado da luta interna pelo poder eclesiástico.

Depois desse período de “arrumação” da Bíblia, entraram em cena muitos impressores criativos. Posavam de intelectuais e se destacavam nesse espetacular novo negócio comercial... Primeiro, surgiu Stephanus[7], um impressor que resolveu imprimir a Bíblia com a inclusão de capítulos e versículos numerados. Estienne seguiu a profissão de impressor, que era a mesma do seu pai, procurando se aprimorar no grego, latim e no próprio hebraico.

Estienne resolveu “melhorar” a Vulgata de Jerônimo, que existia há uns mil anos, mas durante a Idade Média já haviam adulterado a Vulgata de muitas maneiras e Stephanus entendeu que poderia dar uma boa arrumada no texto na direção da aceitação mais popular, algo mais fácil para o povo digerir... Estienne, “sujeito espetacular” e bem intencionado. Na verdade, eram apedeutas com segundas intenções. A Bíblia de Estienne foi publicada em 1528, sendo o primeiro passo de um design melhorado das Escrituras, que até hoje chamam de “sagradas”...

Stephanus fez boas inovações: colocou o livro de Atos depois dos Evangelhos e antes das epístolas de Paulo. Imprimiu a Bíblia em fontes romanas, um pouco parecidas com o tipo de letra que você está lendo agora. Viram só como as coisas mudam? A Bíblia ficou muito mais bonita e se tornou imitada em toda a Europa.

Estienne recebeu do rei da França um belo título: Typographus regius[8], que dava o direito ao sujeito até de traduzir e imprimir obras em latim; hebraicas e gregas. Tanto Estienne tinha a veia de designer que encheu a sua Bíblia em latim de ilustrações... Em suma, era tal a aceitação do público de tudo feito por ele, que sua obra tornou-se a base do Textus Receptus[9]. Mas era apenas um ícone do senso comum, um artista das multidões.

Com isso, Estienne foi perseguido pela Igreja Católica por ter alterado a Vulgata, sendo considerado, pelo clero romano, apenas um impressor e não um teólogo. Passou a sofrer várias censuras, acusado de heresia, conseguiu escapar da condenação das chamas e fugiu da França, morrendo fora da sua terra.

Vieram depois outras figuras um tanto ilustres com a missão de “melhorar” as Escrituras: o francês Théodore de Bèze, teólogo protestante; Boaventura, mais Abraão Elzevir (tio e sobrinho), prefaciaram uma edição da Bíblia, em 1633. Aplicando uma jogada de mestre, disseram: “Agora vocês têm o texto que é aceito por todos, no qual nada oferecemos de alterado ou corrupto”[10]. Genial! Foi a partir desse aforismo que o povo engoliu a bola e resolveu “ficar” com essa tradução como oficial. O que me emociona é a bondade de Deus em empregar tantos secretários para fazer essa salada monumental que chamam de Escrituras sagradas. Se isso fosse palavra de Deus, eu veria santo Antão de camisola branca, passeando de bicicleta nas nuvens com minha avó na garupa...

Que estratégia a religião do Livro! Por que os protestantes não adoram objetos em forma humana, mas adoram um livro? Ah, não o beijam... Mas é levado debaixo do braço como uma divisa militar por todos os lugares! Exibem-no para a baixa classe social, lutam para parecerem convictos, abrem-no para declamá-lo com pífios ares professorais, de dedo apontado, e repetem: “Assim diz o Senhor”... Será que não é a mesma coisa que as tábuas da lei? Eram carregadas na arca da aliança, com o cajado de Aarão e o pote de maná, como aviso divino. Se tivessem existido mesmo e encontradas, aquelas pedras seriam adoradas pelos judeus até hoje.

O homem tem instinto de veneração. Qualquer coisa a mais que aconteça na sua vida é motivo para que haja atribuição a um princípio qualquer. O homem precisa curvar-se, nem que seja diante de um raio caído no chão. De um trovão. De um sujeito feio, todo coberto de palha. Qualquer porcaria serve, o negócio é curvar-se, porque mostra submissão, medo e sensação de obediência. Isto é pura falha neural, um subproduto da mente. Quando Lutero, debaixo de forte tempestade, cruzava um bosque na Alemanha e quase foi atingido por um raio, presumiu que Deus o chamara para a missão de reformar a Igreja de Roma. Com toda certeza, houve um daqueles desvios cognitivos violentos na mente de Lutero, já mencionados no início do nosso trabalho...

Até quando vamos considerar sagrado tudo o que os homens nos dizem ser sagrado? Por que um livro é sagrado? Por que um amuleto em forma de cruz é sagrado? Por que damos beijos em medalhinhas? Por que beijamos pedras, ossos, panos e sei lá mais o quê? Por que não pensamos nisso? Por que não beijamos leprosos que são vivos e poderiam sentir nosso amor? Aliás, diriam alguns mais materialistas que, se não tivessem tantas bactérias, seriam as notas da nossa carteira que deveriam ser beijadas, porque são elas que salvam nossas vidas e nos dão dignidade...

Esse texto aceito por todos, que foi o Textus Receptus, abreviado “TR”, do Novo Testamento grego, surgiu a partir da visão de Erasmo de Roterdam, publicado e difundido pelos impressores citados, além de outros, por mais de trezentos anos. Esse TR deu origem também à Bíblia King James, criticada como a pior tradução feita na Europa até hoje.

Tudo se encaminhou direitinho no reino das margaridas. As igrejas já possuíam o Textus Receptus, “aprovado por Deus” e pelo mundo – que maravilha. Para que mais? Todas as dúvidas sobre as Escrituras estavam resolvidas, o mundo cristão era feliz e a cada domingo todos ficavam contentes na igreja... Será que isso era assim mesmo? Não. Que pena, não era mais assim.

Em 1633, pouco depois que o Textus Receptus fora anunciado por Elzevir, nasceu um indivíduo na Inglaterra, em 1645, que recebeu o nome de John Mill. O tal cresceu, resolveu estudar Deus e ingressou no Queen’s College, Oxford, como servidor em 1661. Depois, recebeu o grau de mestre e, no mesmo ano, discursou diante do Oratio Panegyrica, na inauguração do Teatro Sheldonian. Em 1676, tornou-se capelão-mor do bispo de Oxford. Em pouco tempo, foi nomeado reitor de Bletchington, em Oxfordshire. Logo depois, eleito capelão do rei Charles II. Com o andar da carruagem, foi diretor de St. Edmund Hall, em Oxford e, em 1704, foi nomeado pela rainha Anne com a dignidade de cônego em Canterbury...

Acontece que, para distúrbio da Igreja, John Mill criou um dos maiores questionamentos da história sobre o Novo Testamento. Após um investimento de trinta anos em estudos profundos, trabalho pesado, numa nova direção interpretativa das Escrituras, Mill inaugurou o campo da crítica textual do Novo Testamento. Isso causou um terrível escândalo na época: Mill anunciou a descoberta de trinta mil variações e discrepâncias no Novo Testamento! Grande foi o abalo no meio teológico, mas estava evidente a importância da sua descoberta. Indefensável pelo clero.

Os teólogos ficaram loucos! O Textus Receptus escorregou ladeira abaixo e restou a pergunta: se as palavras do Novo Testamento estão truncadas, os “originais” desacreditados, como prosseguir com o ensinamento da doutrina cristã? O estranho aconteceu: duas semanas após a publicação da sua obra, em 1707, Mill faleceu. Segundo alguns, “por ter bebido café em excesso”... Tenho o leve pressentimento que os benfazejos sacerdotes arrancaram as tripas de Mill. Coisas da fé. Nada sabemos sobre os detalhes, mas isso ocorre entre homens santos com certa frequência. São desacertos a serem resolvidos no seio da família cristã. A cristandade abalou-se como nunca, pois ficou exposta e construída, pela primeira vez, a tese magistral defendida por Mill, desabonando as Escrituras.

Tempos depois, aparece em cena uma figura engessada no fundamentalismo do século dezoito, Daniel Whitby[11], ministro evangélico, que apresentava ao mundo sua contestação a John Mill, na obra Examen lectionum Johannis Milli.

Whitby era um teólogo oriundo do pensamento arminiano, que reforçava aspectos nublados da teologia dos remonstrantes[12], como a condenação no dia do juízo final e a salvação somente para os homens de fé. “Os indivíduos só perceberiam a vontade de Deus através do Espírito Santo, restando ainda o risco da queda da graça cristã. O homem recebera também de Deus o direito de exercer a liberdade perfeita do livre arbítrio”.

Veja-se que esses dogmas eram basilares para a contestação a John Mill: insistia Whitby que Deus, sendo perfeito, não permitiria esses milhares de erros nas Escrituras, causando interferências quanto à compreensão da mensagem salvacionista. Desse jeito, o ministro foi conclusivo em reiterar que “a Bíblia é a palavra de Deus vírgula por vírgula”.

Whitby atacou Mill o que pôde, para fortalecer o princípio doutrinário basilar da Reforma Protestante, a sola scriptura[13]. A lenda conta que o Deus perfeito deixou o Antigo Testamento para os hebreus e permitiu que eles fizessem melhorias. Bem mais tarde, veio outro grupo menos legalista e completou o sentido que Deus não dera no início: escreveram outro livro mais atualizado para juntar ao primeiro. Mudou um pouco a proposta, mas isso não significa que Deus não queira o melhor para nós...

Veja-se de novo: esse argumento, aparentemente simples, é mais do que um tronco de carvalho – admite que os homens tenham feito alterações no Livro, mas não é relevante, “porque Deus está cuidando da sua palavra para que ela não perca o sentido”... O tiro, entretanto, saiu pela culatra! Quem tomou conhecimento da tese de John Mill não conseguiu esquecê-la. Disseram até que Pedro, como autor de textos bíblicos, era um ótimo pescador... O quadro, então, mudou: daquela época até hoje, ao invés das trinta mil variações de Mill, foram descobertas mais de trezentas e trinta mil!

Muito bem, falemos de outro sujeito com a mesma importância de Mill e Whitby – que era Richard Simon[14]. Suas principais obras foram Histoire critique du Vieux Testament e Histoire critique du texte du Nouveau Testament, que foram o golpe de morte para Whitby, pois defendem a ideia de que a crença correta estaria baseada nas tradições apostólicas da Igreja de Roma e não na interpretação literal da Bíblia. De certa forma, Richard Simon dera as mãos ao protestante Mill para derrotar o fundamento de Whitby, o próprio dogma do protestantismo – a sola scriptura. Reforçou a obra de Jerônimo, a Vulgata latina, por serem os textos gregos conflitantes, duvidosos, quando despontou a necessidade de “seleção” textual e tradução para o latim. Então, o padre canonizado, Jerônimo, se transforma num semideus com a missão suprema de dar um jeitinho nas Escrituras. Eis que o santo salva o texto grego de permanecer degenerado... Beneplácito da santa madre Igreja.

Os textos da Antiguidade não merecem mais confiança? Não, decididamente. Precisamos de um santinho, por isso, Simon pegou uma carona oportunista e engenhosa, mas que balançou as colunas do protestantismo com sua declaração de que “não existe escritura que não tenha sido alterada”. Entretanto, não devemos tomar esse argumento como universal, porque ele é católico romano.

Um novo pesquisador, nascido em West Yorkshire, Inglaterra, Richard Bentley[15], usa de outro artifício para derrubar a tese de Mill das trinta mil variações do Novo Testamento grego: todas as variações anunciadas por Mill não teriam sido inventadas, mas somente trazidas à tona por ele. Bentley reforça a ideia de que elas estavam ali desde o começo e que Mill seria apenas responsável por criar escândalo com as Escrituras...

Bentley recebeu, logo depois da ordenação, o maior título honorífico de mestre do Trinity College, em Cambridge e o primeiro assento da Catedral de Worcester. Depois, envolveu-se em conflitos no Trinity, sendo perseguido e punido pelo bispo de Ely. Bentley então firmou seu propósito, que era de restaurar, após tantas cópias corrompidas, o texto do Novo Testamento como na época do Concílio de Niceia. Ingênuo completo, que acreditava num texto “original” das Escrituras... Achou que poderia conjugar a Vulgata latina com o antigo Códice Alexandrino. Acontece que esse códice do século V inclui dois livros que não fazem parte do cânone, que são I e II Clemente. Esse sujeito, Clemente, teria sido o segundo papa, sucessor de Pedro e indicado pelo mesmo.

A razão primeira dessa “restauração” do Novo Testamento era mostrar as variações de texto que já existiam nas primeiras cópias da Antiguidade. Só que, ao basear-se na Vulgata como viga de sustentação para o seu trabalho, Bentley concorda com Jerônimo e dá aval ao autor que a traduziu para o latim à sua própria maneira, com ajustes de texto aqui e ali, até priorizar a interpretação pessoal.

Bentley confiou em Jerônimo para fundamentar a obra, crédulo de ter reduzido as trinta mil variações textuais de John Mill. Por circunstâncias naturais, Bentley envolveu-se em conflitos com colegas e concidadãos, desgastando-se com o público. Isso tudo por conta da ilusão de reproduzir o Novo Testamento na “pureza do texto original”, o que não poderia passar, lógico, de um completo fracasso. Mas ele se recuperou com a releitura dos clássicos – helenista que era – e morreu aos oitenta anos de pleurisia, entre as muitas xícaras de chá.

O século XVII produziu outro pesquisador que, desencantado com a teoria de Mill das trinta mil variações, atirou-se ao trabalho extremo para provar a segurança da “palavra” de Deus. Era Johann Albrecht Bengel[16], teólogo rígido de pedra, com empenho doentio no ensino literal das Escrituras. Estudou na Universidade de Tübingen; deu um mergulho profundo nas obras de Aristóteles e Spinoza, tornando-se doutor em divindade.

Essa posição inflexível e extremista, de rigor teológico bruto, causou prejuízo ao trabalho de Bengel, que não conseguiu separar a fé da razão, ao preterir uma leitura histórica e racional do Novo Testamento. Sua atitude restrita e de implacável dogmatismo é resultado do que já tratamos antes – o desvio cognitivo de grande proporção. É por isso que, a partir dessa posição míope, tendemos a demonizar as crenças que se distanciam da nossa e adotamos um viés comportamental mais próximo dos babuínos.

Bengel era um sujeito por demais criativo, dono de um dos grandes feitos paranoicos que marcou a história: conseguiu, cem anos antes, profetizar o fim do mundo para 1836. Sobre o dia e a hora, não tenho maiores informações... Pena ele não ter visto o resultado. Sua tese era um complicador teológico, pois primava pelo texto complexo e admitia alterações bíblicas, feitas pelos copistas, com o objetivo de “aperfeiçoar” as Escrituras.

O visionário Bengel não queria mais do que Bentley: a abordagem para estabelecer o texto original do Novo Testamento. Como o outro, ele só alimentava ilusão. Bengel terminou caindo no mesmo lugar comum dos seus contemporâneos – não tocou mais do que notas desafinadas – e, ainda por cima, usou o Textus Receptus na edição do Novo Testamento grego.

Entre tantos pesquisadores das Escrituras no século XVIII, Johann Jakob Wettstein[17], nascido em Basel, foi um dos mais destacados. Teve como orientador em teologia o grande Samuel Werenfels, que trouxe à luz o novo princípio de exegese científica, que reforçava a busca de Wettstein para estabelecer o “texto original” do Novo Testamento grego.

Em 1716, na Universidade de Cambridge, tornou-se amigo de Richard Bentley, que tentou persuadi-lo a ir para Paris a fim de fazer pesquisas no Códice Ephraemi. Entretanto, a amizade entre os dois não prosperou por muito tempo – é uma lei invariável – as divergências se instalam com muita facilidade no universo do intelecto. Desde então, lançou-se à produção febril de um Novo Testamento grego. Wettstein defendia a tese de que, por mais variantes e alterações existentes no texto do Novo Testamento, isso não poderia comprometer a autoridade da Bíblia, uma vez que a sua essência é o que importa.

Wettstein criou impasses com relação à figura de Deus Pai e Cristo, propondo uma diferença maior, já que chegara à conclusão de que não incorporavam o mesmo ser. Isso resultou em querelas com outros teólogos em função do dogma da divindade de Cristo. Wettstein, ao pesquisar o Códice Alexandrino, descobriu em I Timóteo 3-16 um ponto polêmico sobre a natureza de Jesus, que o levou a ser acusado de socinianismo[18], por dizer que os textos foram alterados com a única intenção de manter o dogma trinitário. Imputaram-lhe, então, a suspeição de heresia por parte do clero e culminava com a perda dos seus cargos, mais a expulsão de Basel. Foi um golpe quase mortal para ele.

Wettstein mudou-se para Amsterdam depois de tanta confusão. Através de um parente, dono de editora, obteve a chance de iniciar a impressão do seu Novo Testamento, mas as coisas não foram adiante por razões desconhecidas. Por fim, consegue editar o Novum Testamentum Graecum numa publicação magnífica, mesmo usando o Textus Receptus. A diferença do seu trabalho dos demais contemporâneos foi a adição dos textos consultivos em grego, hebraico e latim. Isso enriqueceu a edição do Novo Testamento. Logo depois, Wettstein foi convidado a assumir a cátedra de filosofia no colégio dos remonstrantes – teólogos da Escola de Leyden –, Holanda, o que lhe permitiu sobreviver do magistério até ao fim dos seus dias, em Amsterdam.

Nessa fileira de intérpretes da Bíblia, agora no século dezenove, deve ser mencionado o crítico e filólogo alemão Karl Konrad Friedrich Wilhelm Lachmann[19]. Nos últimos séculos, cresceu rapidamente o número de manuscritos das Escrituras encontrados aqui e ali e, como resultado, a necessidade entre os pesquisadores de estabelecer o texto mais antigo do Novo Testamento. Uma vez que, a cada cópia encontrada, mais e mais variações surgiam, essa penosa tarefa tornou-se algo doentio entre eles. Devoravam-se os calcanhares, à medida que a competição aumentava entre os doutos obstinados missionários da pesquisa...

Lachmann estudou filologia em Leipzig e Göttingen; assim, obteve formação impecável. Comprometido por inteiro com a brilhante carreira acadêmica, tornou-se professor extraordinarius de filologia clássica na Universidade de Königsberg, especializado em gramática alemã antiga. Foi nomeado professor de filologia alemã na Universidade Humboldt, em seguida, membro da Academia de Ciências da Alemanha. Colecionava, na área da filologia, os mais importantes títulos acadêmicos. Por conta de tal carreira, seu método de pesquisa era extremamente rigoroso e destacado na época, embora hoje, diante da crítica moderna, estejam obsoletos.

Lachmann criou assombro entre os colegas e revolucionou a crítica textual adotada pelos seus predecessores. Abandonou por completo o Textus Receptus e deu lugar às suas interpretações pessoais. Seria o princípio de Jerônimo ao organizar a Vulgata?...

Lachmann adotou um cânone pessoal para agrupar os textos com hierarquia: “um erro comum implica numa origem comum”. Apesar das complicações atreladas a esse princípio filológico, ele ainda é visto como fundamental. Qualquer abordagem ao priorizar a leitura de um texto após outro tende a antecipar a teoria dos “textos locais” de Streeter.

O princípio de Lachman, utilizado para organizar a leitura de manuscritos, viu-se reduzido à escrita de várias maneiras: “Nada é mais bem confirmado do que aquilo em que as autoridades textuais concordam entre si; a concordância tem menos peso quando as autoridades se calam; a evidência de um texto é maior quando testemunhas são originárias de regiões diferentes, do que testemunhas de alguma região menor; os testemunhos textuais devem ser olhados como duvidosos quando as testemunhas, separadas por regiões distantes entre si, ficam em oposição às outras que são vizinhas lado a lado; leituras são incertas quando ocorrem habitualmente de diferentes formas em diferentes regiões e as leituras perdem autoridade quando não são universalmente aceitas numa mesma região”.

O importante é que Karl Lachmann, apesar de ser acusado de plagiar Richard Bentley, pelo menos foi o primeiro exegeta a preterir por completo o péssimo e embromador Textus Receptus, atitude que Bentley não adotou. Mas qual seria o caminho mais confiável, prosseguir no embromativo Textus Receptus ou adotar uma linha metodológica individualizada onde há mais riscos? O fato é que, se existiram originais, foram totalmente alterados na essência ao longo dos séculos. Isso poderia vir de algum deus?

No cenário dos biblistas do século dezenove, temos o seu mais ilustre e pitoresco representante: Lobegott Friedrich Constantin von Tischendorf[20]. Em 1840, esse intelectual aventureiro que não parava de viajar por vários países, nas pesquisas em todas as bibliotecas possíveis. Decifrou o Codex Ephraemi Syri Rescriptus, um manuscrito do Novo Testamento grego do século V. A exemplo dos seus antecessores loucos devotos, ou oportunistas intelectuais, Lobegott interpretou sua vida análoga a uma missão para recuperar o texto original do Novo Testamento... Isso tudo soa mais como uma jogada recorrente entre todos eles: devolver a “palavra” de Deus ao mundo. É uma febre que já tem vários séculos – a busca dos originais. Parece que, infelizmente, só agora compreendemos as palavras de Nietzsche sobre o edifício de escombros que ele chamou de cristianismo: “a mentira de séculos”.

Mestre em uma escola perto de Leipzig, Tischendorf completou sua tese de doutorado em 1838. Tornou-se, então, um grande viajante, empreendendo pesquisas no sul da Alemanha, na Suíça, Holanda, Inglaterra e Itália. Em 1844, foi para o deserto até ao sopé do Monte Sinai, porque seu objetivo era fazer pesquisas no mosteiro de Santa Catarina. Lá, ele encontrou, numa velha cesta, quarenta e quatro páginas da mais antiga cópia conhecida da Septuaginta[21], pois as demais páginas já tinham sido usadas pelos monges para acender as lareiras do mosteiro... É apenas um ato de submentes religiosas. Imaginem-se, então, quantos originais foram queimados ao longo dos anos como buchas de lareiras... Lobegott, horrorizado, implorou aos monges que lhe dessem os manuscritos restantes, mas só conseguiu levar uma parte. Depois de nove anos, Tischendorf voltou ao mosteiro, mas não progrediu em nada. Na sua terceira viagem ao mosteiro de Santa Catarina, em 1859, patrocinada pelo Czar da Rússia, na busca por textos antigos da Bíblia, encontrou o valor maior que perseguia: o precioso Codex Sinaiticus – um manuscrito grego completo do Novo Testamento do século IV –, ainda com partes do Antigo Testamento! O códice, então, foi para as mãos de Alexander II, na Rússia, que o vendeu para o British Museum de Londres por cem mil libras esterlinas. Isso me lembra do filme Os caçadores da arca perdida...

A produção deixada por Lobegott foi importantíssima no campo do estudo textual das Escrituras e forneceu imensa fonte de pesquisa para os estudantes até os nossos dias. Legou-nos uma regra básica: “A busca de um texto só pode ser justificada por uma evidência antiga, especialmente a partir de um manuscrito grego, mas sem negligenciar os testemunhos das versões e dos Pais da Igreja”. No fim das contas, Tischendorf foi acusado pelos monges de ter roubado os manuscritos do mosteiro de Santa Catarina para enriquecer ilicitamente... Mas, por ter vivido no século dezenove, quando as Escrituras não eram questionadas, o pesquisador Lobegott ainda estava preso à credulidade e devoção cega nas tradições orais, base inequívoca da Bíblia: o “telefone sem fio”.

Embora o século dezenove tenha colocado freio naqueles que vislumbravam o desmoronar do castelo bíblico devocional, muitos foram os homens de brilho que enfrentaram os tormentos da perseguição do clero para tornar a realidade evidente: a fraude nas cópias e a desconstrução da religião do Livro. Ainda que a maioria desses pesquisadores tenha ligações com a Igreja, homens devotos muitas vezes, alguns até clérigos, com o trabalho que realizaram, simplesmente abriram caminho para o método histórico-crítico. Deu-se o início da crítica textual da Bíblia como é interpretada hoje. Entre todos, dois deles contribuíram de maneira decisiva com a crítica textual moderna, pois seus métodos continuam vigendo até hoje. Foram Brooke Foss Westcott[22] e Fenton John Anthony Hort[23], pesquisadores da Universidade de Cambridge. A mais importante obra de suas vidas foi The New Testament in the original greek[24], publicado em 1881.

Westcott foi brilhante nas letras clássicas, destacando-se de tal forma que, ainda jovem, recebeu a nomeação de diretor da Westminster School. Depois da graduação pelo Trinity School, em 1849, foi ordenado diácono e iniciou uma longa amizade com Hort, que passou a assessorá-lo em suas pesquisas. Com um talento eclético, era músico e poeta, chegando a declarar que, se não tivesse sido ordenado para o ministério, seria arquiteto. Não ficou só na teologia – o desenho também era uma de suas paixões.

Westcott conseguia se dividir com maestria, mesmo sendo casado, entre as atividades clericais, como as literárias, a ponto de ser consagrado bispo. Depois, agraciado com o alto canonicato de Peterborough, recebeu diplomas honorários das universidades de Oxford e Edimburg. Como resultado de uma trajetória ímpar, foi nomeado Regente Professor da Divindade da Universidade de Cambridge. Dando prosseguimento às honrarias, Westcott recebeu da coroa britânica o canonicato na catedral de Westminster. Em 1890, foi nomeado bispo de Durham.

Hort, parceiro de trabalho de Westcott, também estudou no Trinity College e seguiram amigos por toda a vida. A publicação do seu trabalho do Novo Testamento no original grego, em parceria com Westcott, foi sucesso gigantesco com o público e, também, nos meios acadêmicos.

O princípio adotado por Westcott e Hort foi semelhante ao de Johann Albrecht Bengel: “dividiram os manuscritos em famílias e se basearam fortemente no que classificaram de ‘texto neutro’, em que estava incluído o Códice Sinaítico e o Códice Vaticano, ambos do século IV d.C.”.

Minha tentativa ao expor essas biografias dos editores-teólogos do Novo Testamento grego foi, tão somente, mostrar aos leitores as possibilidades de alteração dos textos bíblicos ao longo dos séculos, principalmente quando nas mãos de homens tão capazes de “brincar” com as palavras como uma criança brinca com a bola. Só que esses homens, ao achar que faziam a vontade de Deus, plantaram suas opiniões próprias no meio dos textos antigos, mas não levaram em conta que os cristãos dos séculos I, II e III já praticavam esse tipo de alteração textual, para “melhorar” o conteúdo das respectivas cópias anteriores...

O que de fato chegou às mãos dos nossos heróis editores, com o caminho aberto por Gutemberg, foram centenas de pergaminhos que eles imaginavam incólumes, mas haviam sido falsificados aos borbotões na Antiguidade... O homo sapiens é absolutamente inviável em todos os sentidos, sobretudo nos valores morais.




[1] Salas de mosteiros destinadas às cópias das Escrituras e iluminuras das mesmas.
[2] Comum – edição comum, popular.
[3] Do latim “à mão” – escrita manual.
[4] Humanista holandês de expressão latina – (1469-1536).
[5] Primeira edição a ser publicada.
[6] Cardeal da Igreja Romana (1437-1517), nascido na Espanha.
[7] Robert Estienne – tipógrafo francês (1503-1559).
[8] Tipógrafo real
[9] Texto do povo – recebido e aprovado pelo povo.
[10] Textum ergo habes nunc ab omnibus receptum, in quo nihil immutatum aut corruptum damus.
[11] Teólogo inglês (1638-1726).
[12] Grupo de 43 teólogos protestantes que formaram um documento na Escola de Leyden, Holanda, em 1610.
[13] “Somente as Escrituras” – de forma literal, poderiam fornecer as bases da fé cristã.
[14] Padre, exegeta, filósofo e historiador francês (1638-1712).
[15] Teólogo inglês fundador da filologia histórica (1645-1742).
[16] Ministro luterano-pietista alemão (1687-1752).
[17] Teólogo protestante alemão (1693-1754).
[18] Doutrina antitrinitária que afirma ser Deus de natureza única, sendo Jesus uma pessoa independente. Sustenta que a Bíblia é a única autoridade, mas tem que ser interpretada pela razão; rejeita a doutrina do pecado original; os mistérios; a unidade, eternidade, onipotência, justiça e sabedoria de Deus.
[19] Pesquisador alemão (1793-1851).
[20] Erudito e pesquisador alemão (1815-1874), nome que significa louva-a-deus.
[21] O Antigo Testamento em grego.
[22] Clérigo e teólogo inglês (1825-1901).
[23] Teólogo e editor irlandês (1828-1892).
[24] O Novo Testamento no original grego.


ATENÇÃO: todos os direitos reservados. 

quinta-feira, 28 de maio de 2015

DA CONSTRUÇÃO DO LIVRO E SEUS CÂNONES FATAIS II

Os pesquisadores afirmam unânimes, desde o século dezenove, que o Evangelho de Marcos foi o primeiro a ser escrito, em torno de 65 ou 70 d.C.; Mateus e Lucas, por volta de 80 a 85 d.C. e João entre 90 e 95 d.C. O Evangelho de Marcos foi escrito, mais ou menos, quinze a vinte anos depois das cartas de Paulo e trinta e sete anos depois da morte de Cristo. Mas, quanto ao de João? Aproximadamente, setenta e dois anos depois da morte de Jesus... Céus! O que teria acontecido depois de tanto tempo de relatos verbais de todo tipo, conflitos insidiosos mantendo um grande jogo de interesses, distorções descaradas dos fatos originais, até que os evangelhos fossem grafados no papel, tudo em nome da construção da religião que salvaria os homens? No mínimo, o que vemos no cenário político internacional de hoje com as mesmas nuances da Antiguidade, ou seja, a mentira. Só que nesse passado distante construíram as falácias que nos serviram de herança.

É preciso, para continuar, entender o seguinte: o cristianismo não era visto doutrinariamente como hoje. A compreensão era bem outra, totalmente diversa do nosso entendimento presente. Ainda não existia uma Bíblia em forma de livro. Eram epístolas múltiplas, centenas circulando, dezenas de evangelhos de vários autores, apocalipses diversos, enfim, todo tipo de literatura aceita em nome de Jesus e dos apóstolos! A canonização das Escrituras não acontecera no início do cristianismo, portanto, tudo que surgia era “verdadeiro” e tido como sagrado. As doutrinas variavam de uma província para outra e a falta de entendimento era total. Cada um com sua história e devidas variações.

Vale a pena uma análise da situação cristã dos séculos I e II, quando as novidades apareciam. Sem pé nem cabeça, na base do achismo, “do que me contaram, do que meus pais viram, do que minha avó ouviu, do que José relatou a Silas, que contou a João e depois à Marianinha, que disse a Matusalém”...

É preciso pensar nessa tradição, sim. É possível mesmo que esses textos nunca tenham sido escritos por apóstolos ou companheiros próximos! Qual a prova em contrário? A fé? As testemunhas oculares? Será que relataram na íntegra o que viram? Ou será que viram de fato? Ou que existiram mesmo? Como confiar na existência de alguém que seja apenas baseado no relato de uma testemunha ocular? Se fosse tão fácil assim, não haveria dificuldades para um juiz chegar a uma decisão num tribunal, baseado num crime relatado por uma testemunha ocular. Inquirida outra testemunha ocular, ela apresenta uma versão diferente diante do mesmo juiz, tornando mais complexa a apuração do fato.

Se já é difícil para um magistrado apurar a verdade poucos dias depois de um fato acontecido, como apurar a verdade baseada em relatos da Antiguidade, narrativas com lapso de dezenas ou centenas de anos dos fatos supostamente ocorridos? Pela fé? Ora, o homem do século XXI não tem mais na cabeça a mesma geringonça neural daquele do século dezessete! Repito que é de suma importância a reflexão sobre isso, pois apenas por essa via poderemos entender como o cristianismo foi construído.

Os Evangelhos foram escritos anonimamente. Mateus, Marcos, Lucas ou João não foram os seus autores. Isso aconteceu para que os Evangelhos existissem! Era necessário obter credibilidade da massa de ignorantes da época e, então, ganhar a força da tradição, pois ninguém alteraria mais nada. Moeda corrente. E assim foi.

Aqueles homens como pescadores, operários braçais, tecelões de redes, pedreiros, agricultores, camponeses e afins, porventura teriam condições de escrever em aramaico, ou em grego? Como, se eram quase todos analfabetos?

Quanta ingenuidade daqueles que acreditam nessas lendas antigas. Muito tempo depois das possíveis andanças de Jesus pela Galileia, que, segundo indicações, não teve escolaridade e apenas sabia ler (não há provas de que soubesse escrever), sem deixar nada registrado do próprio punho. Na realidade, os Evangelhos foram elaborados e escritos em grego. Aproximadamente, de trinta a noventa e cinco anos depois da sua morte.

Se, de fato, os apóstolos existiram e faziam discursos, pregando as doutrinas de Cristo, faziam-no de forma absolutamente intuitiva com os meios do senso comum, do jeito que o mundo da época se comunicava. Precariamente, pois nem dez por cento do povo de todo o império romano sabia ler e escrever. Mais ainda, falavam mesmo em aramaico e não em hebraico. Em grego, nem pensar.

Como no final do século I alguém poderia saber, em meio a dezenas de evangelhos que rolavam no império, quais seriam os evangelhos genuinamente apostólicos? Como os cristãos poderiam identificar os ensinamentos de Jesus e o que ele verdadeiramente falara? Que monumento de insanidade e oportunismo! Os quatro Evangelhos só foram canonizados no século IV e por critérios falaciosos! Nenhum deles foi escrito na época de Jesus e, muito menos, por qualquer um dos seus seguidores. Os que conhecemos, foram escritos dezenas de anos depois de Jesus, por indivíduos que não o conheceram, falavam outro idioma e viviam em províncias muito distantes... Pior: deram interpretações totalmente diferentes dos fatos que teriam acontecido, seguindo informações a posteriori, com entendimento diversificado e acrescido de outras ações. Os teólogos que tiveram formação em instituições de peso sabem disso, mas se calam por conveniência.

As falsificações textuais da Bíblia foram um consenso a partir da sua canonização. Antes, nos séculos I, II e III, não havia consenso nenhum. Imaginemos, por mais de trezentos anos, um verdadeiro engenho de criações teológicas sobre Jesus e seus discípulos... Como esses sujeitos descarados, que se intitulavam pais da igreja, poderiam saber o que foi dito por Jesus ou escrito pelos apóstolos tanto tempo depois dos primeiros anos do cristianismo? A farsa montada por séculos, segundo Nietzsche “a mentira de séculos”, exala seus últimos suspiros diante da globalização e das violentas transformações sociais que presenciamos atualmente.

Foi dessa maneira que o cristianismo se propagou: cada um conta uma história, que repassa para o outro já com um tom diferente. Depois, de outro para outro, com uma interpretação “mais clara”. Então, repete-se: outro para outro, já com tendências a uma visão pessoal. Assim, mais outro “melhora” a história para dignificar as coisas que o último absorve. Desta feita, outro já tem uma compreensão inadmissível de um fato e conta para outro, alterando o fato. Isso com a melhor das intenções, “engrandecer” o próprio Deus e por aí vai, ad infinitum...

Imaginemos essa prática depois de dez anos. De vinte anos. De trinta anos. Depois de três séculos, até esse monte de lendas e contos serem canonizados. Por isso, foram obrigados a canonizar as Escrituras às pressas para acabar com a proliferação das ficções desenfreadas, reduzindo-as à essência aceitável para o consumo balanceado das nossas refeições espirituais do dia a dia.

No momento da leitura deste livro em que nos encontramos, faço um apelo aos religiosos, principalmente aos que se mantêm inflexíveis nos dogmas, que tentem analisar o período de cento e setenta anos após a morte de Jesus. Apenas por uma questão de honestidade, admitamos a nossa distância do senhorio de qualquer tipo de verdade. Sejamos reflexivos.

Arrazoemos, então. Depois da morte de Cristo, a Bíblia nos traz um quadro sugestivo de que as coisas, dali em diante, andaram de uma forma absolutamente resolvida em termos doutrinários e com a expansão pacífica do cristianismo. Às mil maravilhas? Nada pode ser mais equivocado. Era exatamente o oposto.

Nos primeiros três séculos do cristianismo, as coisas ferveram em dissensões, interesses e conflitos de todo tipo. Cada grupo do cristianismo das origens reivindicava para si as palavras que Jesus teria de fato pronunciado, assim como os escritos autênticos deixados pelos apóstolos... As divergências se multiplicavam e as inimizades também. Os primeiros grupos cristãos entravam em conflito por pontos de vista totalmente contraditórios entre si. Exatamente como hoje, cada um sustenta ser o detentor da verdade dogmática e fim de conversa.

Eram dezenas de grupos em batalha teológica nos primórdios da cristandade, porém, vou fazer comentários de apenas quatro deles, que foram mais os importantes: ebionitas; marcionitas; cristãos gnósticos e proto-ortodoxos.

Os ebionitas eram judeus convertidos ao cristianismo, tinham um foco obsessivo em Moisés e seguiam a obediência integral à Torah, por se considerarem descendentes diretos dos hebreus das tribos do Sinai. Estudiosos afirmam que o nome do fundador da seita era Ebion. Outros já dizem que o nome vem de ebyon, que significa “pobre”, porque os mesmos da seita haviam feito voto de pobreza ao decidirem seguir a Cristo.

Mas essa maneira de crer em Jesus significava, para o ebionita, manter o vínculo com a lei judaica e buscar o próprio Messias prometido aos hebreus. Portanto, para seguir a Cristo, o ebionita teria que ser judeu e, se um gentio se convertesse ao judaísmo, seria submetido inexoravelmente à circuncisão.

Infelizmente, os ebionitas deixaram poucos escritos, e nenhum registro de doutrinas ou hierarquias. As informações que temos sobre eles são relatos feitos por outros grupos cristãos da época. Os ebionitas divergiam das doutrinas de Paulo, pois eles só viam como possível a salvação através dos requisitos da lei.

Por razões de não terem conhecido o Evangelho de João, a formação teológica dos ebionitas não considerava o nascimento de Jesus na forma virginal de Maria. Então, para eles, Jesus fora fruto da união sexual entre José e Maria. É preciso que se entenda a visão dos tais, uma vez que não conheceram os Evangelhos do jeito que vemos hoje. Jesus fora, apenas, o resultado da adoção por Deus, como filho, mas de carne e osso, por ter guardado a lei na íntegra. Deus, então, o abençoara com a adoção. Por isso, os ebionitas eram chamados de “adocionistas”. Jesus não era filho de Deus desde o início dos tempos – foi adotado na ocasião do seu batismo –, quando teria ouvido a voz do Pai: “Tu és meu Filho, hoje eu te concebi”.

Os ebionitas eram inimigos da teologia de Paulo, acusando-o de heresia por facilitar o acesso a Deus sem o cumprimento das leis, apenas pela graça. Lógico, aceitavam acima de tudo a Torah, com acréscimos de alguns documentos cristãos se estivessem fixados na lei de Moisés. O principal documento, para eles, era um livro um tanto diferente de Mateus. Um “Mateus antigo”, em aramaico, que não continha os dois primeiros capítulos, omitindo a narrativa do nascimento de Jesus por Maria na condição de mulher virgem.

Dizem alguns especialistas que o Mateus antigo que eles usavam era uma mescla do que seriam, mais tarde, Mateus, Marcos e Lucas do Novo Testamento. Uma curiosidade nos ebionitas é que eles, fiéis à prática dos rituais do Antigo Testamento, opunham-se a qualquer tipo de sacrifício de animais e eram vegetarianos... O porquê do radicalismo dos ebionitas em relação à guarda da lei era, simplesmente, pelo fato de não existir ainda o Novo Testamento como o conhecemos hoje. Mas eles tinham os próprios livros sagrados e a Torah como regra maior.

Foram os marcionitas o segundo grupo importante na formação do cristianismo, seguidores de Marcion, um pregador e “teólogo” do século II, que nasceu em Sinope, no Ponto, ao sul do Mar Negro. Ainda jovem, foi para Roma, onde inevitavelmente causou divisões e conflitos nas igrejas, sendo banido da cidade.

Marcion escreveu a obra Antitheses. Nela, estabeleceu a invenção de dois deuses, ao dividir o pressuposto já existente no Deus do Antigo Testamento e no de Jesus. O antigo, Deus dos judeus, era um carrasco, irado por natureza, vingativo; enquanto que o outro era bonzinho, afetivo e criador. Essa teologia esquizoide mexeu com a cabeça daquele povo; perturbou o clero ao extremo, por ser “perigosa” e ofensiva às doutrinas até então elaboradas.

Por ser Paulo o herói de Marcion, ele mudou os ensinamentos do apóstolo e ainda afirmava que o cumprimento da lei não traria a salvação a quem quer que fosse. Nesse ponto, nasce a teoria de Marcion: como poderia o Deus do Antigo Testamento, irado, vingativo, ser o mesmo Deus que enviou Jesus ao mundo? Marcion, demente, concluiu que existem dois deuses diferentes.

Parece que essa teologia atendeu às expectativas de muitos cristãos vazios de raciocínio. Marcion afirmava que o Deus dos judeus não era perverso, mas se via obrigado a exercer o controle sobre a maldade dos homens, castigava-os, enquanto que o Deus de Jesus, súbito surgiu por aqui, por pouco tempo, apenas para mostrar Jesus como o salvador da humanidade. Esse deus “bom” não se considerava pai dos judeus, portanto tinha que tirar os cristãos das garras do deus do furor.

Tudo veio de surpresa: o deus bonzinho enviou ao mundo um Jesus que não era de carne e osso, era só a aparência de ser humano, tipo fantasma, pois um ser perfeito não poderia assumir a forma humana. Era a nova dicotomia: um Cristo que parecia humano, mas não era de carne e osso. Fingiu sofrer na cruz, mas na realidade era só a aparência de Jesus...

É lógico que Marcion não era demente. Era um grande ator e farsante da Antiguidade. Mas, como o povo adora ideias tolas e novidades, a doutrina de Marcion foi um sucesso marcante. Ainda usava um termo grego para definir a situação do fantasma divino: dokeo[1], uma visão docética. Os marcionitas ficaram conhecidos como cristãos docéticos.

O Jesus de Marcião não teria subido à cruz em carne, mas de mentira, sem sofrer, porque era só aparência do real. O engodo contraditório não ficou oculto e, então, sobrou o questionamento: um fantasma não tem sangue, logo, como iria derramá-lo em favor dos homens, segundo as Escrituras? O espectro messiânico que o pseudodeus-pai apresentou aos homens evaporou-se.

Marcion foi mais um golpista cristão da história antiga, porque organizou o primeiro concílio informal da Igreja romana e lançou a primeira tentativa de cânone cristão para a massa ignara engolir. Nesse rumo, reuniu os líderes da igreja no tal “concílio” para expor a sua doutrinalha, mas levou um escorregão vexatório, sendo expulso da Igreja romana. Então, o dinheiro que doara para subornar o clero, foi devolvido a Marcion de forma humilhante. No entanto, de volta à Ásia Menor, sua terra, abriu muitas igrejas e seu credo foi acolhido com sucesso por idiotas de outras bandas...

Marcion compôs um cânone próprio com onze livros; as epístolas paulinas e ainda incluiu outros livros de Paulo, que ele, sem escrúpulos, falsificara. De qualquer maneira, como quase tudo na história é falsificado, Marcion foi o primeiro líder esperto a dar o golpe da canonização. Um inimigo seu, Tertuliano, heresiólogo proto-ortodoxo, usou de um sarcasmo que ficou marcado: “Eu vos asseguro, que se pode mais facilmente encontrar um homem nascido sem um coração e sem cérebro, como o próprio Marcion, do que sem um corpo, como o Cristo de Marcion”.

O terceiro grande grupo, nos primórdios do cristianismo, foram os gnósticos[2]. Defendiam que o mal já estava inserido na própria vida desse mundo e não era o resultado do pecado dos homens. Nessa ótica, o requisito para a salvação não seria a fé, mas o conhecimento de si mesmo, da origem do mundo, da missão cristã gnóstica aqui e dos meios de retorno à esfera celestial de origem.

Em 1945, foi encontrado no Egito um verdadeiro tesouro de documentos históricos – por um pequeno grupo de beduínos –, a biblioteca de Nag Hammadi. O líder do grupo era Mohammed Ali, responsável pela descoberta de vários papiros da Antiguidade. Um suposto evangelho perdido, fragmentos que continham passagens da vida e morte de Jesus. Era o Evangelho Copta de Tomé com outros relatos. Caracterizaram-se como a base doutrinária dos cristãos gnósticos. Talvez a descoberta filológica mais significativa do século vinte, responsável pelo conhecimento que hoje temos do gnosticismo e cristianismo primitivos. Hipotéticos evangelhos de Filipe, João e Tiago foram achados, extremamente místicos no todo. Entretanto, uma visão inconcebível para nós, se comparados aos Evangelhos canônicos que conhecemos hoje. Na época em que esses relatos gnósticos foram escritos, nenhum Evangelho dos que conhecemos tinha sido canonizado.

Os gnósticos acreditavam na existência de apenas um Deus no começo do mundo e ele era perfeito, o Pleroma[3]. Esse princípio maior, depois da criação da matéria, desequilibrou-se e causou o caos no universo. Isso gerou uma doutrina permeada de mitos estranhos, com uma “revelação” vinda de um deus, o “Um”, fora do conhecimento humano, que traria aos cristãos o entendimento oculto necessário à salvação. Esse Um, produziu vertentes, braços, interpretados como entidades secundárias chamadas de Aeons, que representavam poderes. O desequilíbrio causador do caos foi um Aeon, a representação de Sofia[4], que decidiu gerar uma deidade sem copular com Pleroma, portanto, de forma oculta. O deus foi gerado e seu nome conhecido como Yaldabaoh, nada mais, nada menos, que Yahweh, o Deus dos judeus!... Só que esse deus, devido à sua geração através de um ato oculto, era interpretado como um deus inferior, mas que se considerou o Um, não havendo outro além dele. Teria, assim, esse deus secundário, tomado o lugar do Eterno anterior, desconhecido dos homens.

Esse Yaldabaoh, foi o responsável pela criação do mundo e das forças do mal. Desta feita, também criou Adão e Eva, logo, tudo que temos por aqui. Ficou o homem sujeito à busca de um tipo de entendimento especial para obter a salvação, deixando esse mundo considerado irrecuperável. Por isso, a necessidade da gnosis para sair do mundo, ter um encontro final com o Pleroma, que seria o “grande pai” e viver com ele por toda a eternidade...

Cristo, para os gnósticos, era visto à maneira dos marcionitas: não era de carne e osso. Esse tipo de Jesus fantasma, traria a gnosis ao mundo e permitiria aos homens o retorno ao “pai de verdade”, o Pleroma. Toda essa história tem um pouco da cultura grega, algo estoico, um tipo de ataraxia. De fato, os gnósticos desprezavam o corpo para não se prenderem à matéria, já que o corpo fazia parte desse mundo – a prisão material. Por incrível que pareça, os gnósticos até reconheciam alguma divindade no Deus dos judeus, como, por exemplo, os Dez Mandamentos e algumas partes das Escrituras. Mas o verdadeiro deus era o Pleroma.

Desse terceiro grupo, auferimos algo importante: foram eles os responsáveis pela herança deixada para muitas seitas de hoje, que ainda cultivam um cristianismo místico, considerado herético pela maioria, de suspeito intelectualismo elitista, restrito a sociedades secretas e grupos efetivamente herméticos.

Bem, chegamos ao quarto grupo, os proto-ortodoxos. O mais importante deles, pois foi o grupo que escolheu os evangelhos, cartas e demais escritos que deveriam ser incluídos no Novo Testamento. O que temos hoje foi definido por eles. Selaram o destino das Escrituras, porque eram fortes politicamente e mais contidos com a propagação das lendas iniciais do cristianismo.

Foram denominados proto-ortodoxos, porque fizeram parte da pré-ortodoxia[5]. Construíram o que achavam certo, ou melhor, “enxugaram” as múltiplas opiniões dos seus oponentes, que tinham disponíveis há dois séculos, ordenando-as num livro. Esse grupo se encontrava robustecido desde o início do século III e dispunha dos autores mais eruditos da Antiguidade cristã, os que melhor cimentaram seus textos teológicos, obviamente com bases na confecção mitológica anterior, desde os tempos abraâmicos...

No início do século IV, Roma, como capital do império, era o centro das atenções do mundo existente. Esse império tornava-se problemático com a descentralização crescente do poder. Suas províncias se enfraqueciam e o povo ansiava por mudanças, devido à complexidade da expansão do próprio império. É nesse momento máximo da história que se desenvolve a mais brilhante estratégia de marketing político vista até agora: Constantino se converte ao cristianismo, recontextualizando a cristandade.

Caius Flavius Valerius Aurelius Constantinus, Constantino I, o Grande. Nome de alta envergadura, de imperador. Um talentoso líder que tirou o cristianismo de uma enorme confusão e fez dele um clichê. O cristianismo estava na moda, um sinônimo de status. As pizzas, então, foram encomendadas, pois o solo era italiano.

Constantino teve um conveniente desvio cognitivo: a visão de uma cruz no céu, com a inscrição In hoc signo vinces[6], às vésperas da batalha contra Maxêncio, na ponte Mílvia. Constantino venceu a batalha e se converteu àquele tipo de cristianismo. Ainda disse que Jesus lhe falara em sonho, ensinando-lhe a fazer o sinal da cruz antes de entrar em qualquer batalha... Desse jeito, tudo daria certo para a unificação do império.

O imperador apoia o concílio de Niceia, em 325 d.C. e faz uma monumental celebração: proclama-se o décimo terceiro apóstolo! Politicamente, Constantino ainda realiza outro grande feito, só que já no leito de morte, em 337 d.C., ordena que um bispo considerado hereje o batize, visto que entrara em conflito com os bispos da Igreja de Roma, devido às suas imposições no concílio de Niceia. Com essa atitude, além de ter mandado canonizar sua mãe Helena, ele consegue juntar heréticos e ortodoxos em prol da unidade do império. Convém ressaltar que o conceito de heresia veio a existir a partir da canonização das Escrituras, pois o que estava fora delas tornou-se erro absoluto. Tempos depois, em 380 d.C., o imperador Teodósio decreta o cristianismo religião do Estado. Nasce o catolicismo romano e todos os que o rejeitam, são agora barbaramente perseguidos... Principalmente, os judeus.

Nesse cenário favorável aos proto-ortodoxos, o imperador Constantino como aliado teológico, o grupo triunfa sobre seus rivais ebionitas, marcionitas e gnósticos. Hoje, podemos identificar a torpeza do jogo político por trás desses acontecimentos, não as ideologias dogmáticas como imaginávamos. Isso traz meu axioma à tona: “Em qualquer época da história, todas as divergências dogmáticas causadoras de cisões, dentro de qualquer religião, se devem aos interesses políticos na busca pelo poder e não às questões doutrinárias em si. A ruptura não advém por amor a Deus e sim pelo poder”.

É preciso analisar, através da crítica histórica, o caminhar da religião para entendermos a malícia e a maldade dos homens. Pela argúcia dos seus autores, os cristãos proto-ortodoxos intuíram a necessidade de estabelecer uma “prova” maior, que determinasse a derrota dos cristãos gnósticos. Qual seria essa prova? A vida. Dar a vida por amor a Cristo, coisa que os marcionitas e, muito menos, os gnósticos jamais fariam, devido à natureza dos seus princípios doutrinários fantasiosos. Os primeiros, porque não dariam a vida por um espectro que nem chegou a conhecer o sofrimento. Os segundos, porque interpretaram a figura de Cristo demasiado simbólica e pseudointelectualizada.

Foi plantado um conceito na mente dos proto-ortodoxos: valia realmente a pena oferecer a vida por Cristo, jamais negá-lo em qualquer circunstância, mesmo diante das feras do Coliseu. Surgiu, a partir daí, a cultura do sacrifício como lucro e investimento na eternidade com Deus. Aliás, o próprio apóstolo Paulo introduzira esse conceito através dos seus relatos. Para ele “o viver é Cristo e o morrer é lucro”. Na sociedade em que vivemos isso pode ser entendido como severo desequilíbrio mental e um delírio análogo ao mito abraâmico de imolação da prole.

No século II, essa ideia encontrava abrigo na mente dos proto-ortodoxos. Esses cristãos obcecados começaram a produzir martirológios: relatos textuais de terríveis sacrifícios humanos, como no caso de Inácio de Antioquia, Policarpo e o próprio Estevão, que serviu para que Paulo fosse induzido pela emoção a se tornar apóstolo. Ora, se bem que não podemos saber, nem de longe, quantos cristãos foram martirizados na Antiguidade. Pelo menos, existem dados históricos indicativos de milhares, nos dois primeiros séculos da cristandade. Há, também, no universo desses martirológios, os relatos mais desviantes possíveis da realidade. Por exemplo, o de Inácio de Antioquia, quando anuncia “o desejo de se tornar pão para as feras selvagens, como trigo de Deus; ser moído pelos dentes das feras e triturado por inteiro para se tornar o puro pão de Cristo”... Isso mais me parece o comportamento da esquerda caviar no Ocidente, que repete o “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

O que mais me chama a atenção em tudo isso, é a posição matreira e maldita do Estado romano, no silêncio da espreita, para o endosso na propagação dos martírios. Foi o jeito encontrado para perpetuar a religião ligada ao poder. Uma vez estabelecida a “prova” para diferenciar os cristãos proto-ortodoxos dos demais grupos, ficou fácil estabelecer o cânone das Escrituras e construir uma Bíblia que não mudasse jamais. Pois, que se constate, não mudou. O cristianismo deu certo desde então. Mas e agora que descobrimos o enredo, como vê-lo através da crítica histórica? O que fazer? Fingir que não sabemos, como há dois séculos, o que poucos sabiam? Hoje, a cada instante, sabemos mais. Temos a globalização, a desesperança e o esgotamento.


[1] Do grego “parecer”; parecido – que deu origem ao uso corrente do termo “docetismo”.
[2] Do grego gnosis  – “conhecimento”.
[3] Termo grego que representa o Um, o Singular, o Eterno.
[4] Palavra grega que significa Sabedoria.
[5] A palavra grega orthos significa certo / correto. A palavra doxa significa opinião. Portanto, ortodoxo significa a crença certa – a opinião correta.
[6] Do latim “Com este signo vencerás”.


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