DA CONSTRUÇÃO DO LIVRO E SEUS CÂNONES FATAIS I
Os
redatores da Torah de fato se preocupavam em zelar pelo povo, dando-lhes
torrentes de sabedoria hebraica. Pretendiam que o povo alcançasse uma vida
plena de alegrias, mas isso só seria possível através da fuga da idolatria.
Na visão judaica clássica do sofrimento, a
conduta iníqua produziria para o povo um sofrimento perpétuo. Portanto, pecou,
pagou. Havia o perdão, em meio a uma série de complicações restauracionistas e
sacrificiais para os hebreus. Sobrevinha-lhes a complacência divina de quando
em quando, mas castigos também faziam parte do cardápio, de acordo com o
mau-humor divino... O imprevisível em Yahweh era chocante: a exata correspondência
de atitude no ser humano. Fica, portanto, o triste aforismo: “E o homem criou
Deus a sua imagem e semelhança”...
Os profetas, assim, mantinham o povo
debaixo da instabilidade e do medo, através da visão clássica do sofrimento. A
má sorte, a doença e os demais infortúnios, eram decorrentes da impiedade do
homem. A desobediência era o ponto nevrálgico. Lógico! Por isso, foi redigido
um livro de regras ditadas pelo todo-poderoso. Mas arrazoemos como cidadãos
honestos e até com uma pitada de equanimidade: o que é melhor para o ser
humano, a libertinagem do politeísmo, com as nuances de devassidão, ou a
restrição monoteísta às concupiscências? Não é um aspecto de fácil análise. Em minha
opinião, sou partidário das restrições monoteístas, pois o resultado final é de
muito mais sabedoria para a sobrevivência, longevidade e enlevo espiritual dos
humanos. Se fosse tão simples assim, o monoteísmo seria a melhor solução, só
que veio com ele a dogmática, que falsificou o que poderia dar certo.
Então, um casal de irresponsáveis é
inventado para dar início ao gênero homo,
há seis mil anos. Ora, há milênios, até que soava bem essa história de sete mil
anos, um tanto romântico e crível. Mas hoje, como sabemos que a proposta ficou
ridícula, por que fugirmos de discussões sobre esse espaço de tempo tão curto
para a história do mundo? Pior ainda, por que passamos a reputá-lo de
metafórico como desculpa esfarrapada? Porque sabemos que a ciência, em nenhum
dos seus ramos, se ocupa de bobagens. Muito menos a filosofia do hoje, pois a
religião já esgotou os seus meios.
Existe um festival de lendas, mitos e
baboseiras na história dos hebreus. Mas existem também histórias paralelas
sobre grandes enchentes que destruíram povos agrícolas vizinhos dos hebreus.
Outras mitologias. Assim, é fácil percebermos a concomitância das situações,
como essas semelhantes ao dilúvio de Noé, pois os povos registravam suas lendas
como verdades. Os acontecimentos são os mesmos, só mudam as doutrinas... Sobre
essas técnicas e farsalhões eclesiásticos, tratei no meu livro A indústria da fé, onde desnudo os
abutres do púlpito que usurpam a dignidade do povo crédulo, sempre utilizando
mitologias de boteco para emocionar.
Seus autores são os monstros profissionais dos
púlpitos, que ficaram ricos à custa dos ingênuos que povoam as igrejas. Aliás,
toda igreja local se divide em três blocos: os ingênuos recuperáveis, os irrecuperáveis
e os vampiros da fé. Mas o presente trabalho se volta com um foco mais preciso
para o Livro canonizado. A religião do livro e suas múltiplas contradições.
Então, veja-se que exemplo curioso e
conveniente: Moisés diz no Livro que “Se obedeceres de fato a lei do Senhor teu
Deus, cuidando de pôr em prática todos os seus mandamentos que eu hoje te
ordeno, o Senhor teu Deus te fará superior a todas as nações da terra. Estas
são as bênçãos que virão sobre ti e te atingirão. Bendito serás tu na cidade, e
bendito serás tu no campo! Bendito será o fruto do teu ventre, o fruto do teu
solo, o fruto dos teus animais, a cria das tuas vacas e a prole das tuas
ovelhas! Bendito será o teu cesto e a tua amassadeira! Bendito serás tu ao
entrares e bendito serás ao saíres!”[1].
Mas e se outros povos vizinhos ou
distantes, que não hebreus, quisessem seguir um bom caminho, simplificar tudo
nas questões da Lei: buscar a paz, o amor e as outras coisas que conduzem à boa
moral e convívio pacífico com o próximo? Não poderiam. Não seria possível, pois
teriam que pertencer ao “povo-raça” eleito e, ainda por cima, extirpar o
prepúcio.
Agora, veja-se: monstros da indústria da fé
do nosso século (pastores que preservaram os seus prepúcios) criaram a
“teologia da prosperidade”. Baseados em centenas de passagens bíblicas, como
essa de Moisés, prometem aos idiotas coletivos do século vinte e um a multiplicação
dos bens materiais; o paraíso, sem, ao menos, pertencerem à “raça” judaica. Na
Antiguidade, o povo hebreu se preocupava em adorar a Deus corretamente. Atualmente, a massa de cristãos preocupa-se em
conquistar a prosperidade...
A mentira chegou a público. Descobriram o
que acontece nos seminários. Lembremo-nos que, desde crianças, ouvimos por
várias vezes alguns adultos comentarem: “Não acredito que os padres, tão estudiosos, não saibam que a religião é
uma mentira...”.
Mas, nos dias de hoje, os seminários, as
faculdades teológicas, nem diria as mais liberais, mas as efetivamente inseridas
no contexto pedagógico atual, expõem em uma bandeja a realidade terrível da religião
através da história. Contam como seus livros foram construídos a partir das
cópias de manuscritos antigos forjados e a canonização desses mesmos livros.
Expõem, também, a distância entre a visão devocional e a metodologia científica,
na formação do profissional da fé. Esse é o método histórico-crítico.
Muitos seminaristas ou estudantes, quando frequentam
esse tipo de instituição, empalidecem diante das verdades inesperadas,
desestabilizam-se por completo, pois não estão prontos para enfrentar um
cenário tão “diabólico”... Às vezes, abandonam os estudos que, equivocados,
decidiram seguir. Alguns abandonam tudo: fé, igreja e Deus. Perdem-se no
deserto ou se encontram nele. Outros se voltam para a vida estritamente
devocional das igrejas, que mantêm a fantasia-modelo alienante dos séculos
passados, “esquecem” o que aprenderam na faculdade de teologia e adotam o princípio
do pior cego é o que não quer ver. Já os determinados – por saberem o que
querem, entendem que tudo é consumo e a fé não foge à regra –, concluem a
graduação. Depois, ingressam no promissor mercado de iludir as almas, para
tomar conta do corpo das ovelhinhas... É evidente que muitos desses
profissionais, queremos crer, nunca deixam de lado as suas boas intenções de
servir à humanidade.
As faculdades de teologia que pretendem
conduzir a grade curricular compatível com a metodologia de ensino aplicada às
instituições de ensino seculares têm que se enquadrar, de forma aproximada, a
um approach científico. Por essa
razão, as instituições teológicas citadas não mantêm compromisso com qualquer
tipo de devoção e acabam chocando os estudantes mais ingênuos.
Essas instituições, entretanto, pela sua
natureza, jamais perderão o status
acanhado de conhecimento, pelas tentativas de usar a ciência com a finalidade
de firmar o improvável, se comparadas às instituições de outras áreas não
teológicas. De que adianta correr contra o vento? Teologia é algo que jamais
poderá pertencer ao universo científico, embora force todas as portas para
tomar posse dos instrumentos da cientificidade na busca sôfrega pela sua
própria produção de “provas”. Teologia é puro artesanato mal costurado de
retalhos, em que concorrem várias matérias, como homilética, oratória, teologia
sistemática, línguas antigas e outros adereços para “ajudar” o homem no ponto
em que a ciência ainda não conseguiu dar suas respostas. No curso da história,
porém, as respostas surgirão como consequência natural.
Mas, por citar a História, felizmente,
essas instituições de ensino teológico já adotam o método histórico-crítico nos
seus currículos mofados. Isso marca uma nova era no ensino da teologia e cria
grandes mudanças até o esvaziamento final. Sim, porque a Bíblia passa a sofrer
outro tipo de leitura, metodológica. De uma abordagem de leitura vertical, isto
é, corrida, sequencial, ela toma outro aspecto: a leitura horizontal – a
análise por equivalência e a comparação temática. Tome-se, como exemplo, um
mesmo tema tratado estilisticamente, de forma histórica, num evangelho.
Compare-se, em termos de construção frasal e cronológica em outro evangelho,
isto denota sérias discrepâncias. O inesperado acontece: as descobertas da
religião do Livro, inquestionáveis até então, abalaram os santos já aposentados
que, sem rumo, entraram em completo desespero... Mas esconderam a depressão.
Novas perguntas surgiram: “Quem escreveu a
Bíblia e como? Em que época cada livro foi escrito? De que forma? E certas
histórias que, a cada dia, se tornam mais estranhas, ridículas e incríveis? E o
dilúvio, que jamais aconteceu? Quais os verdadeiros autores da Bíblia? Por que
tantas coisas desconexas, confusas e contraditórias? E quanto aos textos
pseudoepigrafados? Moisés de fato existiu? E o Moisés histórico? A própria
história do Egito e da Mesopotâmia nada registra sobre a fuga do povo hebreu, nem
praga alguma teria ocorrido. Onde estão os relatos? Tampouco, o Abrahão
histórico existiu. Será que é forte demais mencionarmos o Jesus histórico? A arqueologia
nega o desabamento das muralhas de Jericó. E Josué, existiu também? Que fontes
os autores da Bíblia utilizaram, já que eram analfabetos? Que história é essa
de registros históricos feitos décadas e até séculos depois dos supostos fatos
terem acontecido? Tudo a partir de tradições orais? De boatos? E as centenas de
constatações de textos adulterados? E as trinta mil variações de textos contraditórios
encontrados por John Mill? E o pior de tudo: onde estão os originais da Bíblia?
Não existem originais da Bíblia, mas sim cópias apresentadas como originais. O
que existem são cópias das cópias, das cópias, das cópias, das cópias, das cópias,
até os dias de hoje”...
As pesquisas mais recentes da filologia,
também da arqueologia, apresentam provas incontestáveis de que Mateus, Marcos,
Lucas e João jamais escreveram os evangelhos que lhes são atribuídos. É triste
para a maioria, mas há evidências em abundância que provam que tamanha
coletânea de livros – biblos – jamais
poderia ter sido ditada ou inspirada por Deus. Tal ser reuniria em si a
perfeição absoluta, não deixaria “seus filhos” sem os originais diretamente das
mãos dos próprios profetas ou discípulos e, muito menos, legaria ao ser humano,
por mais rebelde, um livro tão cheio de contradições. São Jerônimo declarou ao
traduzir a Vulgata: “Não pode existir
verdade em coisas que divergem”. Foi um desabafo contra os desafetos do papa Dâmaso
I, que lhe impusera a tradução da Bíblia para o latim, a duras penas.
O lado infeliz dessa novela é que todo
padre que se preze, também me refiro aos pastores com formação acadêmica, sabem
disso até de cabeça para baixo. Aprenderam todas as deformações teológicas nos
seminários e faculdades de Deus. Entretanto, depois de formados, em plena
atividade ministerial, jamais transmitem essas verdades ao povo! É exatamente
nesse tipo de conduta hipócrita que reside a maior prova do grau de
profissionalismo aplicado na atividade pastoral. A defesa já é prévia, pois o
emprego precisa ser mantido: “Para que tirar a ilusão do símplice, do humilde,
do ingênuo?”. Exatamente para que ele fique cada vez mais ingênuo. É chegado,
então, o melhor momento: o da antropofagia sacra. O estupro da espiritualidade
ingênua. O cerco ao óbolo da viúva. Por fim, à espera das presas mais opulentas
que chegam distraídas para beber no regato.
Aquele que atravessou a existência, mas chegou
à maturidade preservando a lucidez que a religião quase lhe decepara, porém
carregando cicatrizes dolorosas, só tem uma lamentação: “Por que não vi isso
antes?”. Quando se descobre, mesmo tardiamente, a fraude cativante da religião,
as sequelas permanecem. Mas só atina para a fraude aquele que realmente
mergulhou fundo nas coisas da fé e que foi honesto a cada degrau na busca do summum bonum[2].
Mas os que não se veem dessa forma enganam a si mesmos e tornam-se reféns do
engodo eclesiástico.
Bem, a temida questão do método
histórico-crítico. Não é algo que tenha surgido agora, pelo contrário, há quase
dois séculos, existe uma aceitação consensual entre sacerdotes de que vários
livros da Bíblia não foram escritos pelas mesmas pessoas de quem se espera a
autoria declarada. É, ficaram quietos, sim. O método histórico-crítico assumiu
uma importância avassaladora na atualidade, apenas pelo fato do questionamento
e descrença cada vez maiores nas Escrituras bíblicas, diante de um mundo em
desconcertantes transformações.
Mas, então, quem escreveu os livros da
Bíblia? Não importa quem os tenha redigido. Foi importante até agora manter os
nomes que aí estão desde os tempos remotos. É, até agora. Doravante, não sei.
Mas, mesmo que a Bíblia seja menos lida daqui para frente, os seus “autores”
permanecerão fixados na mente do povo, porque não há outros para substituí-los.
Os que iniciaram os relatos, as lambanças das tradições orais – por décadas e
séculos –, eram analfabetos. Esses foram os verdadeiros autores! Mais tarde, os
copistas semianalfabetos começaram a dar nomes aos bois e a registrar os
relatos, filtrados por séculos, em documento escrito. Alteravam os textos à
vontade, usando sempre dois critérios: o da burrice e o da fraude. O da burrice
embutia a incompetência na forma de escrever, na grafia equívoca – lapsus calami[3]
–, na interpretação estúpida e inepta de fatos entendidos como verídicos da
maneira mais mirabolante possível. Até firulas esquizoides e dementes que nem
todos ignoram.
O critério da fraude não precisa de
explicações: a finalidade está implícita nos “ajustes” com intenções teocráticas,
ao priorizar ideias falsas, teologias obscuras, dogmas doentios e a propagação
clássica da culpa. Invariavelmente, a serviço do poder eclesiástico. Mais tarde
surgem os copistas profissionais, já cultos, mas com os mesmos critérios
anteriores. Fizeram apenas algumas “correções necessárias” para ajudar os fiéis...
Na realidade, a religião do livro começa
com o judaísmo. A fé dos hebreus era diferente, visto que o Egito, a Grécia e o
Império Romano eram politeístas. Os hebreus, então, projetaram a ideia de um
deus pessoal que os favorecia. Era o Deus dos ancestrais, dos patriarcas – temperamental,
vingativo, benévolo, senhor da guerra; que punia, recompensava, elevava,
humilhava e perdoava o seu povo. Mas era um tipo de fé que apresentava grande
vantagem sobre o politeísmo licencioso dos outros povos: a obediência às leis
de Yahweh. Era o culto à pureza e à retidão. Uma ideia que precisava ser
registrada em livro. Por quê? Para ser respeitada, logo, obedecida. Palavra que
não variava, estando em constante disponibilidade de consulta. Era algo para
ser repetido. Aceito às cegas. Firmado, plantado. Introjetado. Seguido em coletividade
e hierarquia. Aval do alto. Com a assinatura de Deus e ameaças de profetas.
Tinha que servir de controle social, de conceito básico para a construção do
“povo-raça” eleito... Tinha que ser sagrada!
Desse modo, a Torah já se tornara sagrada
de uma forma natural. Foi aceita desde o início como sagrada para os judeus.
Com o advento do cristianismo, a Torah tornou-se para os cristãos o Antigo
Testamento, como consequência, pois os ensinamentos de Jesus eram oriundos do
judaísmo, portanto, não havia como a Lei ser descartada. No início do cristianismo,
a Torah era o único instrumento de culto a ser seguido.
Antes, porém, de tratarmos do cristianismo,
ficamos com uma questão muito forte no começo do novo século: como encararmos o
Novo Testamento se alguns vislumbram o Antigo como uma construção puramente
humana? A invenção do povo judeu e de um deus semelhante ao homem... A religião
do livro, um conceito demasiado humano.
Duas são as visões mais conhecidas sobre
Jesus Cristo. Na primeira, ele é considerado um personagem imaginário, que foi
inventado para fundar uma nova religião. Na segunda visão, ele é interpretado
como o Messias, o filho de Deus, com a missão de salvar os homens – essa é a
ótica devocional, bíblica.
Para dar prosseguimento a este trabalho,
que busca expor a religião do Livro, não farei a defesa de nenhuma das duas
visões. Pretendo adotar a análise expositiva dos fatos históricos, o método
histórico-crítico, para tornar meu propósito consistente, digno de um público
que cresce vertiginosamente dia a dia. Um público que não aceita mais as
histórias de antigamente, questiona a religião – não se satisfaz com prognósticos,
lendas, mitos ou promessas ilusórias –, mas quer a verdade pelos meios da razão.
Assim como acontece com a figura do
patriarca Abrahão, a de Moisés também não corrobora como prova histórica para a
existência de Jesus. Não há relação. No sentido de “comprovação” da existência
de Cristo, somente o Novo Testamento contém os relatos da sua vida. Mas, para a
História enquanto ciência, a Bíblia não é suficiente, pelo fato de ser um livro
devocional, com o fim primeiro de dar sustentação a crenças. Nesse caso,
instrumento dialético sujeito a milhares de interpretações. Portanto, não há
prova do Jesus histórico.
No ano 112 d.C., o governador de uma
província romana, Plínio, o Jovem, envia uma carta ao imperador Trajano, como
relato sobre um grupo estranho, conhecido como cristãos, que adorava um homem
chamado Jesus como ao próprio Deus.
Outro caso foi o de um historiador romano,
amigo de Plínio, Tácito, que escreveu sobre o incêndio de Roma, em 64 d.C.,
quando o imperador Nero acusa aos cristãos de tal feito. Eram os seguidores de
“Christus (...) que foi executado
pelas mãos do procurador Poncius Pilatos
no reinado de Tiberius”.
Por fim, o historiador Flávio Josefo faz
vaga menção sobre Tiago, como “irmão de Jesus, que é chamado de Messias”, na
sua obra Antiguidades judaicas.
Tempos depois, aparece algo muito suspeito: dizem que Josefo teria se tornado
cristão, mas, segundo seus outros trabalhos, fica bem claro que isso jamais acontecera.
Talvez pela querela, os judeus, depressa, tenham-no considerado um traidor do
judaísmo, penalizando-o ao deixar de copiar suas obras subsequentes por toda a
Idade Média. Aí, então, seus textos passam a ser copiados pelos cristãos, mas
cheios de suspeitas sobre sua autoria, onde constam algumas referências a
respeito de Jesus, embora não haja relatos do que ele tenha feito ou dito.
Josefo caiu em descrédito quanto à historiografia por causa dessas variações
com suspeição de fraude posterior.
Então, a partir de tais premissas, não se
pode fundamentar a existência de Jesus com rigor histórico, mas podemos,
adotando o princípio da admissibilidade, aceitá-la hipoteticamente. Na pior das
hipóteses, entendê-la como existência conceitual. Porém, o que ele teria feito
ou dito, o método histórico-crítico não tem como sustentar sem comprometer o
escopo histórico. Menos ainda se podem obter bases na questão dos milagres ou
da própria ressurreição, pois isso jamais estará situado no âmbito histórico. Trata-se
de matéria improvável e a ciência não se ocupa do vago.
A questão da fé, além de ser individual in totum, é pegar ou largar, crer ou
não. É algo que tem base nas intuições ou desvios cognitivos. Não sendo a fé o
instrumento de trabalho adotado para discorrer sobre a religião do Livro, prossigo
com a análise histórica expositiva para chegar ao destino.
A difusão escrita do cristianismo começou
através das cartas do apóstolo Paulo, dirigida às primeiras comunidades
cristãs. Assim, pelo menos, os historiadores afirmam-se unânimes. As epístolas,
que eram o gênero literário usado na Antiguidade, foram redigidas por Paulo nos
anos 50 d.C., muito antes dos evangelhos terem sido escritos. A primeira carta
aos Tessalonicenses foi escrita em 49 d.C., dezesseis anos após a morte de
Jesus.
Foram treze as cartas atribuídas a Paulo,
canonizadas, que marcaram o início das querelas, pois o apóstolo antecipou-se à
grafia do Novo Testamento. Isso representa as primeiras bases dogmáticas
registradas, uma vez que sabemos sobre a falta de unicidade teológica da
Bíblia, as epístolas paulinas tornaram-se o primeiro passo na direção da
pluralidade... Sim, pois essas cartas também defendem princípios dogmáticos que
diferem de outros escritores da Bíblia. Os pontos de vista divergem, porque
cada um faz parte de momentos históricos desiguais e, sobretudo, de visões
pessoais altamente contrastantes. Concluímos que Deus, portanto, não escreveu a
Bíblia, mas os homens.
O que digo é contestado com fúria interior
pelo clero, sob a afirmação de que Deus conduziu
seus servos escolhidos para que, ao dar-lhes inspiração, registrassem tudo no
Livro. Muito bom, mas acho que esses servos não foram bem escolhidos, pois
fizeram um “festival literário” de ambiguidades que repercutem até hoje. A
prova é que, como mamíferos humanos, os autores da Bíblia disseram que o Livro
fora enviado dos céus, mas isso os levou ao descrédito. Caíram em contradição, movidos
por sentimentos de vaidade, ótica pessoal e interpretação de mundo individualizada
ao extremo. Ainda mais na Antiguidade... Prevaleceram preconceitos, radicalismos,
paixões, revanches, sombras do medo e a busca do poder, ao programar os seus
iguais para crer nas coisas que não existem... Para que um inventor de
escrituras possa iludir o público com êxito e usar conceitos fortes que dão
impressão de conteúdo, é preciso que antes iluda a si mesmo cinicamente.
Quase a totalidade do povo daquela época
era analfabeta. Então, Paulo, que fundou muitas comunidades cristãs, teria
enviado às mesmas suas epístolas para que fossem lidas pelos líderes locais
mais preparados, instruindo na doutrina aqueles cristãos menos favorecidos
intelectualmente. Formava-se, alhures, um processo em cadeia, pois as mesmas
cartas seguiam para outras mãos, em diferentes comunidades, e cimentava as
conversões ao longo das províncias do império romano ou fora dele.
É provável que Paulo tenha escrito um
volume muito maior de epístolas do que as contidas no Novo Testamento. Até
mesmo, não seja o autor das conhecidas por nós. Ou de fato não escrevera nada,
apenas ditado suas epístolas para o seu dileto amanuensis[4].
Talvez não tivesse ditado nada e tudo não ter passado de uma belíssima
construção, como o resto da Bíblia...
Tratando-se de Escrituras Sagradas, aceitamos
pela fé, que é irracional, ou presumimos pela História, abordando a metodologia
científica. De fato, há especialistas, adeptos do método histórico-crítico, que
admitem a existência de sete cartas originais de Paulo, do próprio punho. Mas
como fazer prova de tal coisa? Então, onde estão os originais comprovadamente escritos à mão?
Assinaturas podem ser falsificadas, assim como
qualquer caligrafia ou lenda antiga, por mais fantástica ou convincente que
possa parecer. Tome-se o dilúvio de Noé por exemplo. Tudo isso não excede o
nível de conjecturas, uma vez que as cópias mais antigas dos pergaminhos
bíblicos, em geral pequenos fragmentos, montados como quebra-cabeças, estão
espalhadas por vários museus do mundo – Bristish
Museum, Museu do Vaticano, etc. –, entre centenas de outros que fazem parte
das suas “catalogações” museológicas e classificações baseadas em datações
duvidosas, individualistas, discordantes entre as próprias instituições. O caso
é que não há como produzir provas de originais (do próprio punho) dos
escritores da Bíblia, até mesmo de Paulo, com toda a sua boa cultura na época,
inclusive no domínio do grego.
Se, entretanto, não temos os originais das
mãos dos autores da Bíblia, conservamos o direito de duvidar da sua autenticidade
e de admitir também as fraudes, que são da natureza do próprio homem. Para ser
mais preciso, as cópias que temos das Escrituras foram feitas de cópias
anteriores e, por sua vez, de outras anteriores, ao retroagir séculos, mas sem nenhum
original que prove nada. Só assim o mito pôde ser mantido – sem provas...
Todos sabem que Paulo é a semente que
provocou, muito mais tarde, a eclosão do protestantismo. A razão é que Martinho
Lutero se concentrou tanto nos escritos do apóstolo, que os adotou como mola-mestra
no empreendimento da Reforma. O fradinho Lutero criou um movimento importantíssimo,
mas, diante do estopim que ele acendera, deu-se a explosão de um movimento de
divisões na fé cristã que não parou mais até os dias de hoje. Isso é ou não
ganância do homem? No início da cristandade, houve grupos que combateram os princípios
postulados por Paulo.
Dezoito séculos depois, o terceiro
presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, escreveu que Paulo foi o
“primeiro que corrompeu as doutrinas de Jesus”... Até hoje, portanto, o homem
não consegue chegar a nenhuma conclusão sobre a verdadeira religião, pois ela
simplesmente não existe.
Diante do que foi exposto neste livro até
agora, reforço minha teoria em relação à dogmática das religiões, principalmente
as que se proliferam como cupins. É minha a proposição: “Em qualquer época da
história, todas as divergências dogmáticas causadoras de cisões, dentro de
qualquer religião, devem-se, sem refutação, aos interesses políticos na busca acirrada
do poder e não às questões doutrinárias de per
si. A ruptura não advém por amor a Deus e sim pela sede de poder”. Ao longo
do presente trabalho, vou trazer este princípio à tona ainda por algumas vezes,
a título de tornar mais claro para o leitor meu axioma proposto.
Com
uma pausa nas questões paulinas, avancemos para discutir os Evangelhos e demais
livros do Novo Testamento. É preciso, antes de tudo, que se entenda a situação
do cristianismo nos seus primórdios. Pairava no ar, naquelas regiões
cristianizadas, uma total confusão doutrinária sobre princípios, regras e o ethos cristão a ser adotado depois da
morte de Jesus. Pareciam baratas tontas nas províncias do império ou até onde
se estendiam as investidas da nova doutrina cristã.
Concomitante, começou um festival de
autores desconhecidos, que escreviam uma infinidade de evangelhos estranhos.
Eram muitos, mas apenas quatro entraram na Bíblia e grande quantidade deles se
perdeu nas cinzas do tempo. Outros ficaram conhecidos e sobreviveram, como o
Evangelho de Filipe; de Judas Tomé; de Maria Madalena; dos Ebionitas; o
Evangelho Copta de Tomé; os Atos de Tecla; a Terceira Carta aos Coríntios; a
Epístola de Barnabé; o Apocalipse de Pedro; o Apocalipse Copta de Pedro, etc. Especialistas
dizem que houve um relato primitivo, perdido, que deu origem aos discursos de
Jesus, presentes nos Evangelhos de Mateus e Lucas. Esse documento recebeu o
nome de Quelle[5].
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