domingo, 24 de maio de 2015

POR QUE CREMOS EM ALGO?

Somos uma máquina de superstições no dia a dia. É claro que muitos conseguem atingir o estado ilusório de superação desse mal através de certos princípios de fé. No cristianismo, por exemplo, ser supersticioso significa falta completa de libertação espiritual diante da própria comunidade de irmãos. Na tentativa interior para ocultar dessa mesma comunidade qualquer traço de sentimento supersticioso, o crente dissimula seu pânico íntimo. Finge uma atitude de autodeterminação para não transparecer suas figuras imaginárias e monstros do subconsciente.

Todos os medos agora estão bem administrados, escondidos e entregues ao Eterno. Mais uma vez, a opção se repete: o mundo da fantasia ocupa o lugar da realidade. A Igreja combate a superstição grosseira com a superstição de refino, lapidada, pasteurização de tudo. O que Deus pasteuriza não é discutível – acta est fabula![1]

Nossa natureza anseia por fantasmas. Somos sonhadores natos, inclinados à fantasmagoria. Conferimos valores e significados às coisas sobrenaturais como algo imprescindível a nossas vidas. Para os fideístas, esses fatos originam-se no sobrenatural e são projetados no mundo. Para a ciência, têm fluxo na mente e não passam de ilusões aleatórias, geradas em bruto pelo cérebro.

A crença em duendes, espíritos e fenômenos paranormais são produtos da inferência paradigmal injuntiva. Assim, esse tipo de ocorrência “sobrenatural” assume um aspecto de verdade, pois o crente considera a proposição das ocorrências transcendentais uma certeza absoluta.

Entretanto, essa “certeza absoluta”, fabricada na mente do fiel, é abalada pela dúvida, uma vez que as fontes das nossas certezas permanecem falíveis. O princípio fundacionalista do conhecimento busca pilares para alicerçar as crenças. Assim como os intrincados processos cognitivos são responsáveis pela consciência e pelo conhecimento, nesses processos há desvios cognitivos, que vamos encontrar na esfera das crenças especialmente.

O crente acaba por sucumbir à esteira do solipsismo, que nada mais é do que chegar ao ponto extremo de se convencer de que o conhecimento se baseia em situações de experiências interiores e pessoais. Assim, a tendência do crédulo no além é valorizar apenas suas experiências espirituais como verdadeiras, porque, para o religioso solipsista, só a sua experiência é autêntica.

Constrói-se esse tipo de comportamento apoiado na muleta dos dogmas, na intransigência e no fundamentalismo. Comportamento que resulta da mistura de um solipsismo contumaz e uma atitude farisaica de subserviência para bajular a clericalha. Toma lugar, assim, a consciência coletiva dos grupos religiosos.

Temos um desvio congênito: a necessidade de venerar algo em resistência aos princípios da racionalidade. Essa medida imposta pelo cérebro estabelece paradoxos: quanto maior a absurdidade do fato espiritual, mais forte será a nossa crença nele e o sectarismo vira uma máquina ontológica de moer carne...

Nosso cérebro constrói aquilo que se conhece como mente, portanto, essa coisa falaciosa de priorizar a ideia de mente isolada da atividade cerebral é uma peça da religião pregada nos crédulos, que vivem nas nuvens cor de rosa. A mente é apenas o resultado das conexões neurais em atividade.

A crença sectária pretende anular esse princípio, já assentado pela neurociência, para distorcer o cientificismo legítimo, abrindo um imenso leque de embromações amparadas pela fé. Um festim religioso com os truques do custo-benefício oferecido pela Igreja. A convicção sectária é pior: escraviza, subverte e faz o sentido inverso, passa pela mente para retornar ao cérebro. Esse estágio só acontece quando se define a confirmação emocional da crença.

A dopamina é um neurotransmissor presente na suprarrenal e indispensável para a atividade normal do cérebro. Essa substância química transmissora é chamada por Michael Shermer de “a droga da crença”. O doutor Shermer expõe assim a atuação da dopamina no cérebro: “A conexão de dopamina e crença foi estabelecida por experimentos que Peter Brugger e sua colega Christine Mohr conduziram na Universidade de Bristol, na Inglaterra. Explorando a neuroquímica da superstição, do pensamento mágico e da crença na paranormalidade, Brugger e Mohr descobriram que pessoas com altos níveis de dopamina têm maior probabilidade de encontrar sentido nas coincidências e descobrir significados e padrões onde eles não existem. Em um estudo, por exemplo, eles compararam vinte pessoas que afirmavam acreditar em fantasmas, deuses, espíritos e conspirações, com vinte pessoas que se declararam céticas em relação a esses fenômenos. Exibiram a todos os sujeitos uma série de slides com rostos de pessoas, alguns normais e outros com certas partes embaralhadas, como olhos, ouvidos ou nariz trocados. Em outro experimento, palavras existentes e misturadas foram exibidas. Em geral, os cientistas descobriram que os crentes tinham muito mais probabilidade que os céticos de avaliar um rosto deformado e uma palavra embaralhada como normais”.

Pelo fato de não sermos monistas por natureza e sim dualistas, entendemos (por cognição desviante) que nossa mente existe de forma independente do cérebro. Lógico, é o meio que temos para perpetuar nossa mente (como alma) no céu futuro, independente do corpo. Essa é uma tendência difícil de ser dissipada.

Quase todos nós precisamos da ideia de paraíso, por essa razão o cérebro ajuda a nossa mente a produzir o que queremos para estabilizar as emoções. Mas, deixando de lado a ilusão, os desejos e ideais, quando o cérebro acaba a mente também se extingue. A mente é apenas o que o cérebro construiu em vida. Se não há conexões neurais, não existe mente.

Não podemos culpar o cérebro por “dar” à mente religião. Nosso instinto é de rebanho e a mente “pede” ao cérebro a fantasia, por isso o cérebro, como pai protetor, atende a exigência biológica em prol do equilíbrio orgânico, para que se vislumbre a felicidade do paraíso almejado.

Não sei o porquê, mas a seleção natural nos brindou, de forma paradoxal, com a crença nas coisas que não existem – fomos programados para tal com a catarse psicorreligiosa. Mesmo que não acreditemos em Deus, existe o lado biológico da crença: a ideia da figura de um ser superior latente plantada em nosso cérebro. Por essa razão, as crenças afloram facilmente, embora como cognições desviantes, em um processo de confirmação que o próprio cérebro corrobora.

O cérebro participa desse processo porque seu objeto é o equilíbrio da mente – das emoções –, num sentido biológico construtivo. De novo, podemos observar a constante da inferência paradigmal injuntiva na fabricação dos modelos que precisam ser confirmados. O último degrau no reforço da crença, portanto, é a sua sustentação através de argumentos considerados racionais.

São os desvios cognitivos os responsáveis por adaptar as referências que chegam através dos nossos sentidos, moldando a interpretação do que queremos do mundo e não as dores que a realidade do mundo nos apresenta. Este é o modus operandi do cérebro: pinçar as referências da crença que possam dar equilíbrio emocional e biológico ao indivíduo. Ao confirmar as convicções ideológicas no córtex orbital frontal, que processa as emoções do indivíduo, o cérebro terá cumprido a sua tarefa protetiva.

Na religião há um efeito produzido pela inferência paradigmal injuntiva, que é o instinto de rebanho quando se torna tendencioso no âmbito da fé: esse instinto natural se deforma, ao evoluir para interesses mais complexos, como, por exemplo, a construção do espírito da secta. Constata-se o já citado princípio da presunção da inequivocidade fideísta, que nada mais é do que a execração de todos os que estão fora do nosso contexto de fé. Ou seja, todo aquele que não pertencer ao nosso grupo religioso, filiado ao mesmo livro sagrado, não é filho de Deus, portanto, tem que ser demonizado... Isso acontece de forma bruta ou sutil, mas é factual.

Para resumir, o cérebro identifica as possibilidades de convicção ideológica em uma determinada crença, confirmando-as como verdade absoluta. O que importa para o cérebro não é a verdade da crença, mas o estado de convicção do indivíduo na obtenção do equilíbrio biológico. O cérebro não se preocupa em nos dar a vida eterna, mas em promover a nossa sobrevivência.

A seleção natural programou-nos como seres gregários, por isso o instinto de rebanho. As pessoas, constituídas em grupos, juntas podem alcançar o que sozinhas não conseguem realizar. O grupo protege, representa o indivíduo e promove o corporativismo, tão necessário ao sucesso de uma comunidade religiosa. A corporação religiosa é uma forma de empresa social que cria os dogmas para regular o intercâmbio do indivíduo com Deus, sob a aprovação irrestrita e unânime dos seus componentes.

Então, veja-se. A crença é acionada não só pelo cérebro, mas no plano social, pelo Estado. A ideia da “crença na crença” é de autoria de um governo geral – um governo secreto do mundo. O investir na crença constitui enorme força social em si mesma e, para que haja a democracia conhecida, é imprescindível que a crença exista. Não importa a forma. É análogo aos processos neurais: para o cérebro a veracidade de determinada crença não é significativa e, sim, que a crença vigore para conferir segurança ao sujeito. Da mesma forma, para o Estado, o que importa é que haja crença para que a estabilidade social seja garantida.

A manutenção da crença religiosa, portanto, é tarefa indireta do Estado, que a protege como instrumento da democracia. Temos um exemplo claro: é preciso que o homem sustente a sensação de liberdade, logo, a crença no livre-arbítrio deve manter-se em larga escala. É apenas uma questão de estratégia do poder, que tem o dever de sobrepujar a inclinação individual da busca pela verdade, vetando ao indivíduo desmascarar os mitos, sustentados a todo custo através dos responsáveis pelos pilares político-sociais.

Devemos crer em algo? Lógico! No vento, nas borboletas, no trabalho, no amor, no dinheiro, em deuses, ou no que quisermos. Mas no que quisermos de fato – por nós mesmos –, porque crer na religião é crer em normas, dogmas, doutrinas, que os outros escolhem para que creiamos dentro da visão deles e para eles. Sobretudo, para o bolso deles...


[1] Acabou-se a história; terminou o assunto!


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