POR QUE CREMOS EM ALGO?
Somos uma máquina de superstições no dia a
dia. É claro que muitos conseguem atingir o estado ilusório de superação desse
mal através de certos princípios de fé. No cristianismo, por exemplo, ser supersticioso
significa falta completa de libertação espiritual diante da própria comunidade
de irmãos. Na tentativa interior para ocultar dessa mesma comunidade qualquer
traço de sentimento supersticioso, o crente dissimula seu pânico íntimo. Finge uma
atitude de autodeterminação para não transparecer suas figuras imaginárias e
monstros do subconsciente.
Todos os medos agora estão bem
administrados, escondidos e entregues
ao Eterno. Mais uma vez, a opção se repete: o mundo da fantasia ocupa o lugar
da realidade. A Igreja combate a superstição grosseira com a superstição de
refino, lapidada, pasteurização de tudo. O que Deus pasteuriza não é discutível
– acta est fabula![1]
Nossa natureza anseia por fantasmas. Somos
sonhadores natos, inclinados à fantasmagoria. Conferimos valores e significados
às coisas sobrenaturais como algo imprescindível a nossas vidas. Para os
fideístas, esses fatos originam-se no sobrenatural e são projetados no mundo. Para
a ciência, têm fluxo na mente e não passam de ilusões aleatórias, geradas em
bruto pelo cérebro.
A crença em duendes, espíritos e fenômenos
paranormais são produtos da inferência paradigmal injuntiva. Assim, esse tipo
de ocorrência “sobrenatural” assume um aspecto de verdade, pois o crente
considera a proposição das ocorrências transcendentais uma certeza absoluta.
Entretanto, essa “certeza absoluta”,
fabricada na mente do fiel, é abalada pela dúvida, uma vez que as fontes das
nossas certezas permanecem falíveis. O princípio fundacionalista do
conhecimento busca pilares para alicerçar as crenças. Assim como os intrincados
processos cognitivos são responsáveis pela consciência e pelo conhecimento,
nesses processos há desvios cognitivos, que vamos encontrar na esfera das
crenças especialmente.
O crente acaba por sucumbir à esteira do
solipsismo, que nada mais é do que chegar ao ponto extremo de se convencer de
que o conhecimento se baseia em situações de experiências interiores e pessoais.
Assim, a tendência do crédulo no além é valorizar apenas suas experiências
espirituais como verdadeiras, porque, para o religioso solipsista, só a sua
experiência é autêntica.
Constrói-se esse tipo de comportamento
apoiado na muleta dos dogmas, na intransigência e no fundamentalismo.
Comportamento que resulta da mistura de um solipsismo contumaz e uma atitude farisaica
de subserviência para bajular a clericalha. Toma lugar, assim, a consciência
coletiva dos grupos religiosos.
Temos um desvio congênito: a necessidade de
venerar algo em resistência aos princípios da racionalidade. Essa medida
imposta pelo cérebro estabelece paradoxos: quanto maior a absurdidade do fato
espiritual, mais forte será a nossa crença nele e o sectarismo vira uma máquina
ontológica de moer carne...
Nosso cérebro constrói aquilo que se
conhece como mente, portanto, essa coisa falaciosa de priorizar a ideia de
mente isolada da atividade cerebral é uma peça da religião pregada nos crédulos,
que vivem nas nuvens cor de rosa. A mente é apenas o resultado das conexões
neurais em atividade.
A crença sectária pretende anular esse
princípio, já assentado pela neurociência, para distorcer o cientificismo
legítimo, abrindo um imenso leque de embromações amparadas pela fé. Um festim
religioso com os truques do custo-benefício oferecido pela Igreja. A convicção
sectária é pior: escraviza, subverte e faz o sentido inverso, passa pela mente
para retornar ao cérebro. Esse estágio só acontece quando se define a
confirmação emocional da crença.
A dopamina é um neurotransmissor presente
na suprarrenal e indispensável para a atividade normal do cérebro. Essa substância
química transmissora é chamada por Michael Shermer de “a droga da crença”. O doutor
Shermer expõe assim a atuação da dopamina no cérebro: “A conexão de dopamina e
crença foi estabelecida por experimentos que Peter Brugger e sua colega
Christine Mohr conduziram na Universidade de Bristol, na Inglaterra. Explorando
a neuroquímica da superstição, do pensamento mágico e da crença na
paranormalidade, Brugger e Mohr descobriram que pessoas com altos níveis de
dopamina têm maior probabilidade de encontrar sentido nas coincidências e
descobrir significados e padrões onde eles não existem. Em um estudo, por
exemplo, eles compararam vinte pessoas que afirmavam acreditar em fantasmas,
deuses, espíritos e conspirações, com vinte pessoas que se declararam céticas em
relação a esses fenômenos. Exibiram a todos os sujeitos uma série de slides com rostos de pessoas, alguns
normais e outros com certas partes embaralhadas, como olhos, ouvidos ou nariz
trocados. Em outro experimento, palavras existentes e misturadas foram
exibidas. Em geral, os cientistas descobriram que os crentes tinham muito mais
probabilidade que os céticos de avaliar um rosto deformado e uma palavra
embaralhada como normais”.
Pelo fato de não sermos monistas por
natureza e sim dualistas, entendemos (por cognição desviante) que nossa mente
existe de forma independente do cérebro. Lógico, é o meio que temos para
perpetuar nossa mente (como alma) no céu futuro, independente do corpo. Essa é
uma tendência difícil de ser dissipada.
Quase todos nós precisamos da ideia de
paraíso, por essa razão o cérebro ajuda a nossa mente a produzir o que queremos
para estabilizar as emoções. Mas, deixando de lado a ilusão, os desejos e
ideais, quando o cérebro acaba a mente também se extingue. A mente é apenas o que
o cérebro construiu em vida. Se não há conexões neurais, não existe mente.
Não podemos culpar o cérebro por “dar” à
mente religião. Nosso instinto é de rebanho e a mente “pede” ao cérebro a
fantasia, por isso o cérebro, como pai protetor, atende a exigência biológica
em prol do equilíbrio orgânico, para que se vislumbre a felicidade do paraíso
almejado.
Não sei o porquê, mas a seleção natural nos
brindou, de forma paradoxal, com a crença nas coisas que não existem – fomos programados
para tal com a catarse psicorreligiosa. Mesmo que não acreditemos em Deus,
existe o lado biológico da crença: a ideia da figura de um ser superior latente
plantada em nosso cérebro. Por essa razão, as crenças afloram facilmente,
embora como cognições desviantes, em um processo de confirmação que o próprio
cérebro corrobora.
O cérebro participa desse processo porque
seu objeto é o equilíbrio da mente – das emoções –, num sentido biológico
construtivo. De novo, podemos observar a constante da inferência paradigmal injuntiva
na fabricação dos modelos que precisam
ser confirmados. O último degrau no reforço da crença, portanto, é a sua
sustentação através de argumentos considerados racionais.
São os desvios cognitivos os responsáveis
por adaptar as referências que chegam através dos nossos sentidos, moldando a
interpretação do que queremos do mundo e não as dores que a realidade do mundo
nos apresenta. Este é o modus operandi
do cérebro: pinçar as referências da crença que possam dar equilíbrio emocional
e biológico ao indivíduo. Ao confirmar as convicções ideológicas no córtex
orbital frontal, que processa as emoções do indivíduo, o cérebro terá cumprido
a sua tarefa protetiva.
Na religião há um efeito produzido pela inferência
paradigmal injuntiva, que é o instinto de rebanho quando se torna tendencioso
no âmbito da fé: esse instinto natural se deforma, ao evoluir para interesses
mais complexos, como, por exemplo, a construção do espírito da secta. Constata-se o já citado princípio
da presunção da inequivocidade fideísta, que nada mais é do que a execração de
todos os que estão fora do nosso contexto de fé. Ou seja, todo aquele que não
pertencer ao nosso grupo religioso, filiado ao mesmo livro sagrado, não é filho
de Deus, portanto, tem que ser
demonizado... Isso acontece de forma bruta ou sutil, mas é factual.
Para resumir, o cérebro identifica as
possibilidades de convicção ideológica em uma determinada crença, confirmando-as
como verdade absoluta. O que importa para o cérebro não é a verdade da crença,
mas o estado de convicção do indivíduo na obtenção do equilíbrio biológico. O
cérebro não se preocupa em nos dar a vida eterna, mas em promover a nossa
sobrevivência.
A seleção natural programou-nos como seres
gregários, por isso o instinto de rebanho. As pessoas, constituídas em grupos,
juntas podem alcançar o que sozinhas não conseguem realizar. O grupo protege,
representa o indivíduo e promove o corporativismo, tão necessário ao sucesso de
uma comunidade religiosa. A corporação religiosa é uma forma de empresa social
que cria os dogmas para regular o intercâmbio do indivíduo com Deus, sob a
aprovação irrestrita e unânime dos seus componentes.
Então, veja-se. A crença é acionada não só
pelo cérebro, mas no plano social, pelo Estado. A ideia da “crença na crença” é
de autoria de um governo geral – um governo secreto do mundo. O investir na
crença constitui enorme força social em si mesma e, para que haja a democracia
conhecida, é imprescindível que a crença exista. Não importa a forma. É análogo
aos processos neurais: para o cérebro a veracidade de determinada crença não é
significativa e, sim, que a crença vigore para conferir segurança ao sujeito.
Da mesma forma, para o Estado, o que importa é que haja crença para que a
estabilidade social seja garantida.
A manutenção da crença religiosa, portanto,
é tarefa indireta do Estado, que a protege como instrumento da democracia. Temos um exemplo claro: é preciso
que o homem sustente a sensação de liberdade, logo, a crença no livre-arbítrio
deve manter-se em larga escala. É apenas uma questão de estratégia do poder,
que tem o dever de sobrepujar a inclinação individual da busca pela verdade, vetando
ao indivíduo desmascarar os mitos, sustentados a todo custo através dos
responsáveis pelos pilares político-sociais.
Devemos crer em algo? Lógico! No vento, nas
borboletas, no trabalho, no amor, no dinheiro, em deuses, ou no que quisermos.
Mas no que quisermos de fato – por nós mesmos –, porque crer na religião é crer
em normas, dogmas, doutrinas, que os outros escolhem para que creiamos dentro
da visão deles e para eles. Sobretudo, para o bolso deles...
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