A ILUSÃO DAS MASSAS
Pourquoi y a-t-il quelque chose au lieu de
rien?[1]
A pergunta foi grafada em francês por ser feita em proporções maiores do que
nos idiomas restantes, sendo conhecida universalmente por todos na língua
francesa. Ora que bem, tem-se no núcleo da questão a resposta para algo que
ecoa desde os tempos em que, comprovada e simultaneamente, os ovos surgiram
antes das galinhas. Nada nasce pronto. Todavia, o entrave, partindo da nossa
compreensão ególatra, é a identificação com um dos dois grupos cognitivos ao
qual pertencemos: os que querem crer e os que querem saber. Contudo, já que
existe algo, os valores vêm tomar lugar ao nosso lado na longa jornada de
entendimento deturpado em que nos arrastamos, como resultado da sujeição
imposta ao povo pela classe sacerdotal.
Como eu, na
segunda metade da existência, consegui pular do primeiro para o segundo grupo
social, ou mesmo que não seja social o termo certo, que sejam distintas massas
humanas, livrei-me da condenação à permanência eterna na idade mental de uma
criança. Por ser a crença em fábulas religiosas uma das razões do egoísmo humano,
os valores teriam, obrigatoriamente, sua origem nos propósitos construídos por
alguma divindade inquestionável, para que possamos temê-la, amá-la e
obedecê-la, com seus valores bem assentados. Sim, egoísmo, pois “umas tais
escrituras”, segundo Nietzsche, vêm a ser algo como um salve-se quem puder. Porém, ainda que tenhamos por natureza uma profunda
necessidade de crença, mas portadores de um cérebro como uma máquina de
superstições, ainda assim, podemos pular o muro da libertação. Porque, de fato,
qualquer divindade é questionável e o bonito da história é que sabemos disso,
mas precisamos da hipocrisia para sobreviver e cimentar a História com a nossa
contribuição no palco.
Diga-se de
passagem, por nos recusarmos a ver o realismo da existência, optamos por
realidades paralelas e mesmo alternativas bem pessoais. Nem tanto no foco da
nossa estupidez, nem tanto holística, já que somos fadados a ver as partes e
não o todo, entretanto, é algo que não conseguimos vencer com facilidade. Basta
voltarmos o olhar para a customização divina que empregamos na nossa vida
reservada, onde, para uns, Deus é assim, para outros é assado. "Mas para mim
Deus é como eu o entendo", diz o fulano da flauta. E cada um customize seu Deus
como bem entender, porque é assim mesmo que se lida com fantasmas. O cinismo da
nossa espécie se mostra cada vez mais. Enquanto nosso ego nos defender de tudo
à nossa volta, a ideia de Deus precisará ser mantida, custe o que custar e, na
medida em que a divindade for preservada como persona, menos será percebida como ela é realmente – apenas uma
ideia.
De novo
Nietzsche, que profere e registra a morte de Deus no século dezenove, mas nos
adverte da necessidade de suplantar a ideia do Deus innatus, pois sem isto é impossível perceber a realidade. E tudo
vem da grande manobra das religiões: a sacralização. Acontece que o sagrado é
uma invenção humana, onde está implícito o medo, a covardia e a culpa. Por
isso, surge no Iluminismo a tese da dupla verdade, “cada macaco no seu galho”, onde
o ceticismo dos aufklärer² não
interfere nas crendices dos ignorantes, embora, sustentada pela hipocrisia em
que vivemos. Todavia, a recíproca é real, os ignorantes também são alijados com
rigor do convívio social dos eruditos. Hoje, mais do que nunca, valemo-nos da
conveniente assertiva: nós não cremos em
deuses ou teologias, mas, pelo Estado e o controle social, é necessário que o
populacho se mantenha crédulo – precisamos disso. Sabemos que Deus está
morto, mas nem tivemos a decência de acompanhar o seu enterro. Cometemos o
deicídio e deixamos a divindade insepulta, justamente por admitirmos várias
moldagens e customizações de uma entidade que nem temos ideia do que seja, mas
repetimos “vai com Deus, fica com Deus”. Cometemos toda sorte de mentiras
sinceras do nosso interesse, entretanto, com o alívio de que prestamos um contributo à vileza consensual bem
dosada. O secularismo social de fato apagou Deus do contexto, mas considera fundamental
que o cenário não seja desmontado em benefício dos interesses desse
multissecularismo irremovível. O que é isto senão um contrato social fideísta-desmitologizado?
Sacralização,
o grande marketing que deu certo. Assim, cada Deus capricha na sua manufatura,
um livro aqui para criar uma religião, outro lá, para equilibrar as diferenças
e agradar a todos. Aqui no Ocidente, é o bastante falar só da Bíblia, isto já inclui
judeus e cristãos. Daí, então, faz-se necessária a distribuição de livros para
o povo, afinal, como assentar os dogmas e doutrinas com a palavra e
recomendações indiscutíveis que vêm lá de cima? No boca a boca a coisa se perde,
pois só os tais escritos ficam, mas desde que se tornem sagrados. Na
Antiguidade, começaram a confeccionar os escritos que, mais tarde, seriam
encadernados e impressos para atender ao povo de Deus. Mas curioso e estranho é
que não se tenha, em nenhum museu do mundo, fundação ou biblioteca, um original
sequer de tudo o que foi escrito na Bíblia... Porém, de nada adianta debater
com os cegos de coerência, porque é impossível convencer pela razão àqueles que
insistem em crer em contos através das emoções.
Se algo é
sagrado, está posto. Não é para ser questionado. Mas por quê? Enfim, vivemos no
século vinte e um, o mundo mudou e os perceptos religiosos não podem sobreviver
à onda de informações que nos chegam a cada minuto. O maior desespero de
qualquer crente hoje é o desmoronamento das fés e do descredenciamento dos Livros
de todas as religiões, que se mostram ainda contumazes, apesar da morte de Deus,
admitida há mais de duzentos anos. Os crédulos sustentam afirmações em defesa
da fé que já se tornaram pueris para o nosso tempo. Discursos deslocados em
favor de divindades ausentes. Cada vez mais turrões, os crentes nos
significados se refugiam, mais e mais, no fundo da caixa que escolheram,
reagindo em nome da promessa de moradas eternas.
Hoje,
conceitos mudam rapidamente. Na Antiguidade, mais lentamente, ainda assim, em
constante evolução. Basta que se reflita, por exemplo, sobre a questão da alma.
Na verdade, o conceito de alma se desenvolveu no Egito, Índia, Mesopotâmia e no
mundo grego, mas sempre com formas diferentes de interpretação. A alma nunca
foi matéria unívoca na sua forma de entendimento, pois a maior prova disso está
na base do raciocínio de que a alma é, tão somente, uma invenção da linguagem.
Com as devidas equivalências, no hebraico néfesh;
no sânscrito atman; no grego psykhé, pneuma; em latim anima. No
pensamento grego, já encontramos em Sócrates, Aristóteles e, sobretudo, Platão,
o desenho básico para a questão da alma. Mais tarde, a Igreja Católica,
apropria-se do que foi mastigado pelos gregos, para aplicar o maior engodo
teológico de todos os tempos. A invenção consensual da alma, criada e reforçada
através dos vinte e um concílios da Igreja, foi o caminho aceito pela massa
míope com a finalidade única de criar uma sensação de eternidade abraçada pelos
bilhões de pobres através da teocracia. A articulação da Igreja, ao impedir que
a verdade prevaleça, substituído-a pela ilusão, ao abarrotar os cofres
eclesiásticos nos oculta a única coisa que temos: a vida aqui, hoje. Isto
sonega a verdadeira finalidade da nossa vida, que é deixar de existir.
Enfim, todas
as fábulas da religião pressupõem um significado. Quanto mais significados,
melhor. Mais lucro para o clero, sendo a alma a fundação de toda a falácia.
Ora, o significado da vida é a própria vida. Não há significados como a fé
impõe. O que é significante para um não é o mesmo para outro, portanto, os
significados existem apenas para cada um, pois se trata de algo absolutamente
individual. A família, o trabalho, as aventuras na vida, os estudos, os ideais
e o que mais se quiser priorizar para atravessar a existência assombrosa. Somos
formatados pela evolução para inventar significados. Com essa tese, Deus passa
a ser um completo absurdo. Então, a situação que assistimos é um festival
completo de pseudorreligiões mantido pela nossa falta de reflexão com uma
pitada de cinismo. Deus começou sua carreira como um ser antropomórfico e
depois foi diluído aos poucos para criar suas adaptações.
Depois do
que Nietzsche andou declarando, dizem que Deus ainda respira na UTI, mas se
mantém vivo somente pela antiga questão dos valores morais, consensualmente
admitidos como que advindos dele mesmo e de maneira incontestável. Diante desta
ficção pia, cabe minha ferrenha contestação: jamais a origem da Moral, oriunda
da divindade, poderia ter fundamento científico algum. Se a Moral fosse oriunda
de Deus realmente, não existiria esse brutal relativismo de fundamentos morais
no planeta – haveria um só princípio moral universal. Engraçado é que cada povo
tem seu próprio conjunto de normas morais derivado, é lógico, dos seus próprios
livros sagrados... Tal atoarda estúpida não passa de escravidão da mente após
séculos de doutrinação religiosa. Mas, para os que se preocupam em sair do
estado mental de letargia do passado, é necessário compreender o mundo em que vivemos.
Ora, os valores morais estão, logicamente, ligados aos estados cerebrais e
mentais do indivíduo. Nessa ordem exata, sofrendo influências sociais,
geográficas, biológicas e físicas. Mas esses valores não guardam relação com a
ciência, porque é na ciência que encontramos respostas para tudo e não nas
afirmativas tresloucadas de qualquer pressuposto metafísico. Se existem
propostas para que religião e ciência ocupem diferentes áreas do conhecimento,
portanto, passíveis de ser niveladas como epistemologia, ou como algo dentro da
mesma estatura, é impossível que tais propostas sejam levadas a sério. Religião
não é conhecimento. Não é ciência. É adivinhação, palpite, presunção e má fé
com o objetivo de sujeitar a mente das pessoas fracas ou sonsas através dos
recursos emocionais. A religião foi criada para os que precisam dela. Ressalte-se
que a religião começa onde a ciência ainda não resolveu uma determinada questão
no tempo da abordagem correta. Isto significa, tacitamente, que discursos enganadores
da religião não podem ser levados a sério no universo científico. Às vezes
desconfio que essa alienação tenha origem na nossa acomodação intelectual.
Se a ciência
aponta o relativismo como um non sequitur⃰[2],
então, todo relativismo deveria ser repensado. Os fatos científicos não podem
se distanciar dos valores. Mas os valores não representam comportamento, ética
e conduta que visam a benevolência? Entretanto, é óbvio que qualquer cientista
sabe da incompatibilidade entre religião e ciência, mas alguns fingem que isto
não existe, pois são vítimas dos conflitos de interesses que ocultam nos
bolsos. E esses tais são atores antes de serem cientistas. Sabemos no fundo que
os adultos religiosos se devoram mundo afora na disputa para ver quem tem o
melhor amigo imaginário, enquanto os egoístas vão à igreja porque se sentem
bem.
Cheguei à
honesta conclusão de que fatos precisam estar juntos de valores, então, deduzo
com clareza que só através da experiência direta, a empeiria dos gregos, fica possível a compreensão dos sentimentos.
As consequências no mundo sem perquirição de nada valem. Para que valores sejam
dimensionados, é necessário experimentar a alegria, o medo, tristeza, a dor, a
traição, a raiva, o amor, etc., para que possamos inferir nas criaturas os
resultados de tudo isso. Melhor dizendo, é através da análise das consequências
e dos estados conscientes que se estabelece a fundação de todos os valores.
Aliás, por que não mencionarmos a base de tudo isto, advinda de filósofos utilitaristas
como John Stuart Mill e Jeremy Bentham, que nos mostraram o próprio caminho do
consequencialismo? A ética da virtude produz as melhores consequências e visa o
bem estar de todos. Para isto, é preciso entender que um agente seja
responsável tanto pelas consequências intencionais de uma ação, como pelas não
intencionais quando previstas e não evitadas. Logo, as consequências têm que
ser levadas em conta quando se estabelecem juízos sobre o certo e o errado.
Há tempos, não
entendo porque devo associar valores a Deus, até porque, muitos desses valores não
se harmonizam às coisas boas que meus pais me ensinaram e, por certo,
fizeram-me feliz, não tendo relação direta com essa ou aquela divindade. E
mesmo, são muitos os dogmas estabelecidos em diferentes credos, que colidem uns
contra os outros de forma violenta, para serem justificáveis na construção da
minha vida interior. Diga-se de passagem, essas questões de divindades é algo
que interessa somente a cada um de nós. A menos que, para os que querem erguer
os olhos com coragem, surjam os necessários argumentos por amor ao debate, mas
são poucos os que não fogem dele. As violentas e inelutáveis mudanças sociais
fizeram de Deus uma massinha de modelar, vítima da customização, adaptando-o
aqui e ali aos caprichos humanos. Desta feita, o postulado Vox populi, Vox Dei[3],
torna-se realidade sob o ponto de vista populista. Ora, só os mitos não morrem,
pois são amamentados pelo clero para a sedução das massas ajustadas. Como Deus
não pode ser separado do dogma, ou abstraído da própria teologia, faz-se a
prova inconteste do seu destino na fábula. A tão esperada finalidade pelo
entusiasmo dos crédulos é pulverizada pelo próprio dogma, que colocou o todo
poderoso numa máquina de moer, não sobrando nada consistente nos livros santos
sobre ele. Digo mais, pelo fato de tantas construções dogmáticas e
aventureiras, produzimos o deus do
absurdo. Isto porque, nesse processo pluripartido, o deus não pode ser abstraído nem descartado, como pensara
Nietzsche, já que descobrimos se tratar de um produto destinado a todos os
níveis de compreensão, em que pese a finalidade restante. Ao que nos parece,
enquanto houver um mendigo no mundo, essa construção
deplorável continuará existindo nas mentes desniveladas, por isso, a
miséria das massas sobrevive. Infelizmente, perder tempo com tolos, é chutar
cachorro morto.
Assim
aclarada a sustentação, tem-se dito o resumo. Porém, se o presente texto não
vier a cumprir o destino certo? Alguns, rangendo os dentes, ainda podem rotular
meu texto de “uma ceia com o diabo”, mas buscarão textos correlatos quando se
cansarem das baboseiras sacras e sairão em busca da realidade, nada
esperançosa, mas inevitável. Pelo menos, compreenderão de vez o que significa o que é, e o que deveria ser.
Simples assim: aos que têm um mínimo de coerência é sempre tempo para a
reflexão diante do espelho: “Ora, ‘meu Deus’, por que não vi isso antes?”. Religião
é teimosia de pensamento, que pretende mover as leis do universo para dar
respostas às orações dos iludidos, mas que nunca abrangem os sentimentos do
outro. Religião é manter convicção sem razão suficiente.
São Paulo,
18 de agosto de 2022
Ronaldo Antunes
© Todos os direitos reservados na forma da lei