sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O MITO ADÂMICO
O que pode ser tão ameaçador para o ser humano no campo das ideias, que não mereça a análise honesta por parte de cada um de nós? Tomemos a questão do evolucionismo como a ideia tão ameaçadora.

Em qualquer momento do cotidiano, seja nas relações de lazer, de trabalho, seja no convívio familiar, quando o nome de Charles Darwin é mencionado, torna-se bastante para o começo de incômodo social e fim do diálogo. É desconfortável, pois sentimos um processo de desafino em movimento. Ar constrangedor. Por que o nome de tão nobre cientista sempre é motivo de incômodo para o senso comum?

A partir de Darwin, a história foi dividida espontaneamente, não por convenção. Chegou-se a uma redutibilidade do estudo do ser humano. A abordagem redutiva, biológica, como método científico, mostrou que o homem não passa de um mamífero falante e a religião ficou de mãos vazias. A metafísica foi desfocada em detrimento da visão científica. Ora, a ideia central de Darwin é que, no processo de seleção natural, os organismos que se adaptam melhor ao seu ambiente do que outros produzem mais descendentes. Já os que não conseguem se adaptar não vão sobreviver.

Quando ocorre o processo de modificação sobre os organismos na natureza, é sempre de forma muito lenta, às vezes até em uma sucessão de eras. Se os seres vivos não se empenharem em luta ferrenha pelos lugares ainda não ocupados na economia da natureza, serão extintos em função dos seus concorrentes em escala da seleção natural. Em suma, é a persistência do mais apto nesse processo de organização natural. É uma ordenação cumulativa de variações na corrida do aperfeiçoamento desse progresso gradual e lento.

Darwin demonstrou que o homem descende de uma forma de organização inferior, de um ancestral comum, o que deixa os religiosos em desespero. E o mais impressionante nesse contexto é que a ciência não deixa mais dúvidas sobre a evolução das espécies. Na prática, é só pensar em nossas inclinações, reações e imprevisibilidades. Cada um de nós carrega o seu chimpanzé interior invariavelmente...

Parece que, depois de Darwin, a religião lançou mão de um recurso contumaz para rejeitar o óbvio. Um tipo de imperativo ético que fecha os olhos para o evolucionismo, que precisa ser afirmado acima de tudo, apesar das descobertas da ciência durante os últimos 150 anos. Esse imperativo “ético” criacionista pretende ignorar a razão. Para os que ainda sustentam tais ideias decadentes, não importa o quanto a ciência evolua e apresente ao mundo as provas mais convincentes. O que importa é a canonicidade dos livros... É preciso alimentar histórias miraculosas para que a sensação deificante nos preencha a mente.

A ideia de “ancestral comum” foi formulada em base às semelhanças entre grupos e registros de fósseis. Justamente nesse ponto surgiu a reação da sociedade da época, induzida pelo clero, que já temia perder o seu mercado de trabalho... Foi a Igreja que espalhou a ideia de Darwin ter declarado que o homem teria a sua origem nos macacos, mas ele jamais disse tal coisa. Apenas declarou que o homem é originário de um ancestral comum dos hominídeos e hominoides, um elo perdido no tempo.

Isto abalou a fé dos ingênuos e mais devotos. Aliás, a fé só é abalada quando a mente é abalada antes. Se a fé é um subproduto da mente, sendo ela afetada, apesar da contumácia biológica em continuar existindo, pode melhorar bem como subproduto. Pode ser lapidada e tornar-se até religião. A fé insiste em dizer que somos um imperativo do cosmo, mas no fundo pressentimos que não passamos de um acontecimento biológico aleatório. Assim, como vemos nos Estados Unidos, a resistência ao evolucionismo permanece fincada nos próprios currículos escolares do ensino médio, que tentam suprimir o assunto “evolução das espécies”. Para tal, inventaram uma saída para a questão: um contraposto curricular que vem com o disfarce intitulado de design inteligente ou “ciência da criação”. Isso tudo para conferir ares científicos ao ensino do criacionismo bíblico... Esse “design inteligente” nem de longe encontra base científica e não é, senão, teologia de péssima carpintaria... Um contributo à desinteligência dogmática.

Em um capítulo autobiográfico de suas cartas, Darwin demonstra honestidade e coragem de expor suas opiniões tão divergentes da sociedade tacanha do século dezenove: “O antigo argumento do design na natureza, criado por William Paley, anteriormente com aparência de algo tão conclusivo, desaba pelo fato do princípio da Seleção Natural. Não temos argumentos de que a articulação de uma concha bivalve possa ter sido criada por um ser superior, como a dobradiça de uma porta pelo próprio homem. Parece que há tão pouco design na variabilidade dos seres orgânicos e na seleção natural, quanto na direção em que os ventos sopram”...

Darwin era convicto sobre as questões científicas serem obrigatoriamente embasadas em provas e jamais se deixava levar por opiniões sem o devido fundamento dos fatos. Com seu espírito livre, mantinha-se independente para refutar as hipóteses pseudocientíficas, sempre que provocado pelos seus adversários.

Recentemente, cientistas falavam da presença do homo sapiens sapiens por aqui há 40 mil anos. Agora, falam que o homo sapiens já estava por aqui há, no mínimo, 120 mil anos. De certa forma, isto significa que os humanos evoluíram como qualquer outro animal sobre a face da Terra. Todo o empirismo de Darwin significava a própria natureza como cenário máximo, em particular, o mundo animal. Foi daí que concluiu que o que ocorria com os tentilhões, de forma diferente, também acontecia com os humanos.

Sempre há fortes postulados na história que dão origem a outras ideias e princípios geniais. Um desses casos foi o clérigo inglês, interiorano, Thomas Robert Malthus, 1766-1834. Mais tarde, escreveu o Ensaio sobre o princípio da população. Malthus apresentava uma linha de descenso quando a população atingia o seu auge numérico, devido ao início inevitável, cíclico, da escassez de alimentos – por decorrência óbvia do aumento populacional. Malthus foi o primeiro pesquisador a explicar como era mantido o equilíbrio entre as populações humanas. Se, por razões adversas, um determinado país fosse agredido pela fome, catástrofes e epidemias, e acontecesse uma explosão demográfica inesperada, sobreviria o desequilíbrio total nesse país. Se ainda continuasse o crescimento populacional, mais fome e miséria tomariam conta do cenário, logo se multiplicaria toda sorte de epidemias, misérias, com a consequente perda do controle social.

Malthus percebeu, concomitantemente, esses fatos aplicados ao mundo dos insetos: se as moscas se reproduzissem sem controle, sem os seus predadores, logo estaríamos com larvas até ao pescoço... Ora, em tudo é necessário o equilíbrio que a morte promove, através de um processo seletivo natural. Para Malthus, as populações cresciam geometricamente. Foi no ensaio de Malthus que Darwin encontrou o mecanismo para desenvolver o princípio do evolucionismo. Os organismos que conseguiam se reproduzir, não eram beneficiados pela sorte – eram fortalecidos pelas suas próprias condições de adaptabilidade às circunstâncias vitais. Malthus, na verdade, foi o primeiro pesquisador a explicar como era mantido o equilíbrio entre as populações humanas. Resumindo, a teoria "malthusiana" relacionou o crescimento da população com a fome, reiterando a tendência do crescimento populacional na forma de progressão geométrica e do crescimento da oferta de alimentos em progressão aritmética.

Darwin aplicou as ideias de Malthus aos animais e plantas e, em 1838, já tinha um esboço da teoria da evolução através da seleção natural. Durante os vinte anos seguintes, ele trabalhou com esse pensamento sobre sua teoria e outros projetos de história natural. Ele percebeu que Malthus tinha quebrado de alguma forma, as aspirações iluministas do século dezoito, nos ideais de possibilidade ilimitada de progresso, com o devido aperfeiçoamento humano. Sim, pois Malthus trouxe à tona os desequilíbrios naturais do planeta, como as epidemias, a fome, o desemprego, as crises sociais atípicas, que decompunham as ideias um tanto utópicas dos iluministas franceses.

Decompunham as ideias sim, uma vez que as populações se expandem geometricamente com mais rapidez que os recursos restritos às áreas disponíveis. As políticas embasadas nas pretéritas teorias econômicas de Malthus, hoje não se demonstram efetivas, pois para sanar crises de fome de uma determinada população, formam-se projetos para gerações subsequentes, que já contarão com populações muito mais numerosas... De qualquer maneira, em todas as épocas da história, o elemento regulador é o extermínio natural dos organismos vivos.

Darwin encontrou em Malthus, no estudo das populações adultas dos organismos vivos, diferentes possibilidades de sobrevivência de descendentes de várias espécies, que de per si propunham explicações da evolução natural dessas várias espécies... Desta feita, por alguma analogia, Darwin propôs o seguinte: “Se entre tantas condições inconstantes da existência, os seres organizados apresentam diferenças individuais, em quase todas as partes de sua estrutura e este ponto não é contestável; se há, entre os indivíduos, em razão da progressão geométrica do aumento de indivíduos, uma encarniçada luta pela existência numa certa idade, numa certa estação, ou durante um período qualquer da vida, e isto não é certamente contestável; tendo, então, em conta a infinita complexidade das relações mútuas de todos os seres organizados e das suas relações com as suas condições de vida, o que causa uma diversidade infinita de estruturas, de continuações e de hábitos, seria deveras extraordinário que jamais tivessem sido produzidas variações úteis à prosperidade de cada indivíduo, da mesma forma como se produzem tantas variações úteis ao homem. Mas, se de fato se apresentarem algumas vezes variações úteis a um ser organizado qualquer, seguramente os indivíduos em que se apresentam têm maior probabilidade de vencer na luta pela existência; e, em virtude de tão poderoso princípio da hereditariedade, tendem a deixar descendentes caracterizados da mesma maneira. Dei o nome de seleção natural a este princípio de conservação ou de persistência do mais apto. Este princípio conduz ao aperfeiçoamento de cada criatura relativamente às condições orgânicas e inorgânicas de sua existência; e, por conseguinte, na maior parte dos casos, aos que podem considerar como um progresso de organização. Todavia, as formas simples e inferiores persistem muito tempo quando são bem adaptadas a condições pouco complexas de sua existência”. [Darwin, vida e pensamentos – Martin Claret, 1997].

Depois de lançadas bases do evolucionismo no século dezenove, o mundo virou de ponta cabeça. O princípio da seleção natural solapava inexoravelmente a narrativa mirabolante do Gênesis, que descreve a criação do homem. O bispo de Oxford, Samuel Wilberforce, foi o representante da Igreja com mais empenho em desmoralizar Charles Darwin na sua teoria da seleção natural. Mas em todas as investidas reptílicas, nos debates era sempre exposto à vergonha, pelos argumentos anêmicos e sem base científica alguma. A esposa do infeliz bispo de Oxford chegou a comentar com as senhoras da igreja local: “Essa agora... Espero que essa teoria não seja nada verdadeira... Mas se for, vamos correr e rezar para ninguém descobrir”...

Desde a morte de Darwin, o desespero dos religiosos católicos e protestantes se espalhou pelo mundo. O que fazer agora, que a ciência provou por todos os meios que o homem não nasceu sapiens? O que fazer do boneco de barro e todo o romantismo construído em torno dele? Descobrir lá pela terra santa alguns pergaminhos que mude a história do casal do Éden? Não dá! Já foi tudo bem canonizado... Não pode surgir mais nem um palito. Não foi preciso mexer com coisas perigosas desde a Idade Média. Agora, surge um obstinado inglês do século dezenove para encher sempre o saco dos devotos... Para que sabermos verdades, se temos tantas ainda desconhecidas? Ciência demais enjoa – deixai vir as Alices. Estava tudo caminhando mais ou menos harmônico, bem resolvido, mas em cima do palco.

Bem, surgiu uma primeira ideia de acomodação. Em 1998, o papa João Paulo II, apertado pelos cientistas do mundo, admitiu a possibilidade da evolução darwiniana vinculada ao cristianismo. Ora, mas desde que a primeira bactéria surgida no planeta tenha sido criada por Deus.

Para a abordagem de um assunto tão polêmico, é necessário entendermos que o criacionismo só pode ser sustentado, ipsis litteris[i], sobre uma base de crença absoluta na Bíblia. Melhor dizendo, hiperdogmática.
Teria, assim, o mundo “seis dias” para ser elaborado e o dilúvio precisaria ser encarado como fato histórico. Contudo, há grupos religiosos que não interpretam a Bíblia de forma tão rigorosa: admitem que não haja muitos conflitos entre a criação divina e a evolução das espécies. Bem, a mensagem foi enviada pelo papa João Paulo II, conforme comentado. Para a Pontifícia Academia de Ciências de Roma e declarou que a teoria de Darwin “é bem mais do que uma hipótese...”, admitindo que “se o corpo humano é originário de substâncias preexistentes, a alma tem que ser imediatamente criada por Deus”. Com essa, o pobre Darwin se debateria no caixão... Mas, pelo menos, não deixou de ser um recomeço. Para os dogmáticos, a comprovação de fósseis de milhões de anos e as datações radioativas pouco importam. Não servem para nada, pois o argumento é que não existia ninguém naquela época para comprovar qualquer fato... É a cegueira do sectarismo fossilizado.

Qual o propósito, então, da teoria evolucionista? Simplesmente, demonstrar como algo se desenvolveu a partir da sua origem e não como esse algo começou. Veja-se que o papel do criacionismo está subordinado à dogmática: o fato explicado através dos princípios fideístas, onde jamais se encontrará base científica alguma. A exposição de um fato pela fé é sempre extraída de um mito ou de um livro convencionado santo. Totalmente concebido para não ser discutido. É autoritário, por isso vai encontrar na dogmática o seu imperativo absoluto.    Existe um imenso abismo entre a verdade e a mentira; a ciência e o senso comum. Sendo a verdade a relação de conformidade entre o conhecimento e o objeto conhecido, ela se torna lógica quando os conceitos são verdadeiros, ao corresponderem de forma completa à realidade. Mas se torna ontológica quando as coisas concebidas são verdadeiras ao corresponderem de forma completa às nossas ideias. A verdade lógica, ou do pensamento, é o conceito adequado ao real e a verdade ontológica é a realidade adequada ao conceito.

Para a Escolástica, o summum bonum[ii] é a própria verdade, o objetivo precípuo de todo pensador. Uma atitude de culto à verdade, como a dos judeus a Adonai ou, até mesmo, a dos muçulmanos a Alá. Entretanto, o reconhecimento do primado da verdade supera qualquer tipo de fé e isso é prerrogativa de poucos.

Nós humanos somos a única espécie que sabe que vai morrer e que descobriu a dúvida. Portanto, a única espécie que lançou mão da fé, pois descobriu a mentira. A fé dos filósofos, entretanto, não é cega, é de resultados. Então, não é fé? Porque fé é, apenas, crer no que não se vê, nas histórias inventadas pelos outros? Crer no que se prevê? Mas não é necessária a comprovação para que a fé se solidifique? Se for só na razão que o filósofo crê, sendo a verdade o objeto maior, ela permanece soberana. Por que não repensar a fé? A verdade está à disposição de vários métodos para ser atingida, não é para uns apenas, e cada qual descobre o que pode. É absoluta? Em que termos? É o primado da verdade que importa.

Nem todos têm medo de Deus, mas todos temem a verdade. Ela não requer defesa, pois é pétrea e imutável. Quando oculta, não deixa de ser verdade. Ela é, pois o tempo não a altera. O que significa que, mesmo que não houvesse ninguém para testemunhar certo degelo catastrófico na pré-história, em algum lugar, uma vez havendo os indícios científicos, sabemos que este degelo ocorreu simplesmente. A verdade que aquele degelo constituiu no tempo não pode ser alterada. Os milênios passam, mas nada pode desfazer a expressão da verdade daquele determinado degelo. Um registro inconteste no tempo. Um fato consumado em verdade.

Só a partir do século dezenove, a Bíblia deixou de ser a única explicação ocidental para a origem da vida. Quero, então, abordar o princípio evolucionista para, depois, falar sobre o criacionismo. A ciência entende uma datação para fixar a existência da Terra de 3.5 a 4 bilhões de anos, enquanto que, para os teólogos cristãos, a idade do planeta estaria na casa dos sete mil anos...

Infelizmente, a maioria das organizações protestantes fecha os olhos para qualquer tipo de consideração sobre o evolucionismo: não aceita evidências nem provas científicas. Com o avanço do saber científico, torna-se inexequível a conciliação da ciência com qualquer tipo de escritura religiosa, mormente quando interpretada ao pé da letra.


Embora a minha abordagem seja filosófica, farei uma análise, em seu aspecto símplice, da história geológica, sem a qual será inviável tecer considerações sobre o evolucionismo.

A era geológica inicial foi a Primitiva, ou Pré-Cambriana. De certo, o primeiro período foi o Hadeano, época da constituição do nosso sistema solar: um imenso conjunto de gases e poeira sideral. A formação do Sol ocorreu dentro de uma nuvem de gás, ao processar uma grande fusão nuclear e, depois, emitir luz e calor.

A poeira orbitante ao Sol, ao se agregar, formou planetésimos, que por sua vez compuseram planetas maiores. A Terra, envolvida por milhares de vulcões, propiciou uma atmosfera primitiva composta por gases de nitrogênio e dióxido de carbono. Nos primeiros oitocentos milhões de anos, a superfície da Terra se transformou do estado líquido ao sólido. Gases como o sulfeto de hidrogênio, metano e amônia, compuseram as atmosferas primitivas do planeta, anaeróbicas[iii], até que, a priori, os primeiros organismos iniciassem o processo de fotossíntese, passando a produzir o oxigênio.

O segundo período foi o Arqueano, quando a crosta terrestre então esfriou e as placas continentais principiaram sua formação. Absolutamente tóxica, a atmosfera compunha-se de gases de amônia e metano. A abordagem de um modelo evolucionista se dá a partir desse cenário dos primórdios.

Correntes científicas têm como base o surgimento de moléculas orgânicas na Terra. A princípio, os procariontes, seres unicelulares, grosso modo conhecidos como bactérias, foram formas de vida mais simples aqui encontradas como fósseis. Eram fotossintéticos e com datação de mais de três bilhões de anos. Fato curioso é que a vida primitiva no planeta, num processo lento, foi representada apenas por bactérias por mais de um bilhão de anos.

De acordo com Oparin[iv], o acúmulo de moléculas em águas lacustres ou marinhas passou a compor o “caldo primordial”. Nesse composto, já se formavam os coacervatos[v], moléculas orgânicas agrupadas que foram os primórdios das células nos oceanos primitivos. Após a ocorrência de evolução química, apareceram moléculas orgânicas ainda mais complexas que em condições próprias vieram a configurar as primeiras células. Essa é uma das teorias científicas básicas sobre a origem da vida.

O período seguinte, Proterozoico, foi muitíssimo longo. Os continentes se estabeleceram e a vida se desenvolveu com a presença do oxigênio na atmosfera. Um período que vai de 2.5 bilhões a 540 milhões de anos.

Tem início a respiração aeróbica. As etapas de evolução celular até aqui ocorreram sem oxigênio, debaixo d’água ou bem distantes das radiações solares. O surgimento do oxigênio na atmosfera ou nas águas veio, na realidade, exterminar muitas formas de vida e criar adaptações para outras. Dessa maneira, os organismos mutantes passaram a povoar as águas oxigenadas.

Como o oxigênio surgiu dos seres fotossintetizantes, chegaram seres unicelulares que evoluíram dos procariontes, os eucariontes. Houve, então, a primeira grande extinção no globo terrestre, pois os recentes organismos não se adaptaram ao aparecimento da nova atmosfera. Inicia-se, devido à oxigenação, a reprodução sexuada.

O assunto evolucionismo, hoje, é repensado de uma maneira a serem considerados os bilhões de anos que foram documentados cientificamente. Fora isso, permaneceremos na visão do senso comum, criacionistas sem argumentos sólidos, científicos.

Seguiu-se ao Proterozoico, o período Ediacarano, último da era Pré-Cambriana, onde encontramos os fósseis macroscópicos mais antigos. Passado o tempo primitivo, assentou-se a era Paleozoica, responsável pela aceleração evolutiva dos seres multicelulares. Seu primeiro período foi o Cambriano (de 540 a 490 milhões de anos), que o caracteriza pela descoberta do maior número de registros fósseis de pequenos seres mineralizados: braquiópodes, trilobitas, archaeocyatideos, equinodermos, etc. O clima, regra geral, era ameno sobre o planeta, sem nenhuma glaciação. Então, aparecem os seres com conchas, carapaças – os agnatos[vi]; abundantes algas marinhas e os primeiros vertebrados.

Seguiu-se o período Ordoviciano (de 490 a 440 milhões de anos), quando o hemisfério norte era quase oceano e houve a definição do primeiro continente no hemisfério sul, o Gondwana. Existem indícios de invasão de plantas aquáticas sobre a superfície terrestre e de evolução de vegetais primitivos para plantas vasculares. O continente Gondwana se deslocou um pouco para o sul, permitindo o aparecimento das grandes geleiras maciças, de seres marinhos agigantados e diversificação, agora em maior escala, da vida oceânica.

Veio, então, o período Siluriano (de 440 a 410 milhões de anos), havendo o degelo das calotas polares, tornando a terra mais úmida e favorecida à reprodução dos artrópodes[vii], que conquistaram a vegetação rasteira dos continentes. Aparecem, ainda, os peixes com mandíbulas e plantas sobre toda a área terrestre.

O período Devoniano (de 410 a 360 milhões de anos) dá origem às plantas com sementes e às árvores, através da fertilização, ao propiciar a formação de florestas. Ocorre, então, o desdobramento evolutivo dos insetos, dos primeiros anfíbios tetrápodes[viii] e dos peixes com couraça e ossos, os ancestrais do tubarão que hoje conhecemos.

O período Carbonífero (de 360 a 280 milhões de anos) se tornou o responsável pelo início da glaciação no hemisfério austral e, também, pela consolidação das grandes florestas tropicais com a formação dos primeiros depósitos significativos de carvão. Adveio o ovo com líquido amniótico em certas espécies, permitindo que o embrião não ficasse mais dessecado, o que aumentou muito a possibilidade de êxito na geração dos mesmos. As florestas ficaram cada vez mais densas, com vegetação agigantada de esporos e tecidos vasculares, chamadas de pteridófitos.

O período Permiano (de 280 a 245 milhões de anos) foi o último da era Paleozoica. Houve a expansão das gimnospermas[ix], a extinção dos corais primitivos, a propagação dos insetos, uma copiosa diversificação dos répteis primitivos e a extinção das trilobitas[x]. Assim, através dos fósseis, registra-se a maior cessação de seres marinhos e terrestres desde a formação do planeta.

O Paleozoico deu lugar à era Mesozoica ou intermediária. Seu primeiro período foi o Triássico (de 245 a 208 milhões de anos), quando os pterossauros e os dinossauros apareceram sobre o globo terrestre. A grande extinção dos seres do Permiano estendeu-se ao Triássico, época do predomínio do supercontinente Pangea, quando apresentou sinais de fragmentação. Como a atividade vulcânica era formidável, transformava enormes áreas em deserto. As coníferas, em toda parte, se espalharam profusamente, sob um clima quente e úmido, ao permitir a multiplicação de samambaias gigantes, porém sem flores.

Os primeiros animais do período foram anfíbios, crocodilianos e rincossauros[xi]. Já a fauna marinha não oferece muita variação, devido ao vasto extermínio no final da era Paleozoica. Na Terra, por fim, surgiam os dinossauros. Nesse período, encontramos três categorias de rochas: o arenito fluvial vermelho, o calcário marinho fossilífero e os arenitos continentais.

O continente Pangea unia todas as placas continentais e era cercado por um vasto oceano chamado Panthalassa (atual Oceano Pacífico) e por um pequeno mar a leste do Pangea, chamado Tethys (Mar Mediterrâneo).

O período seguinte, Jurássico (de 208 a 144 milhões de anos), teve a maior aceleração evolucionista até então. Os dinossauros, pterossauros, répteis aquáticos se diversificaram e surgiram as aves primitivas.

O Pangea se fragmentou de vez definindo melhor os outros continentes: Laurasia e Gondwana. O nível das águas subiu e invadiu as áreas baixas da Terra. Essa foi a causa do extermínio de grande parte dos seres vivos no planeta.

O Cretáceo, último período do Mesozoico (de 144 a 66 milhões de anos), marca o fim da era dos dinossauros. Houve o extermínio total dos sauriópodes pesados e dos estegossáurios, para dar lugar ao apogeu dos anquilossáurios, carnossáurios, e ceratópsios.

Apareceram sobre a Terra as angiospermas[xii], plantas com flores que passaram a colorir as florestas. No final desse período, houve a extinção massificada dos dinossauros, uma dinastia que durou perto de 150 milhões de anos.

A paleontologia identificou mais de 350 espécies destes monstros que aqui viveram. O seismossáurio, considerado o maior herbívoro conhecido, media em torno de quarenta metros de comprimento. O Tyrannosaurux Rex, um dos maiores carnívoros, tinha perto de doze metros de comprimento e pura voracidade.

Os dinossauros se dividem em dois grupos: os de pélvis de lagarto (saurisquios), que compreendem tanto herbívoros quanto carnívoros e os de pélvis de ave (ornistiquios), cujas espécies eram herbívoras. Há uma tese científica de que a extinção dos dinossauros se deve a impactos sucessivos de grandes meteoros sobre a terra. Quem, pois, conseguiria imaginar a existência desses animais, se não tivéssemos a prova de sua presença no planeta, através de milhares de fósseis autênticos?

Após a era Mesozoica, segue-se a Cenozoica, dividida em dois tempos: o Terciário (que vai de 66 milhões a 1.8 milhões de anos) e o Quaternário (de 1.8 milhões de anos até os dias de hoje).

O primeiro período do Terciário foi o Paleoceno (de 66 a 57 milhões de anos), início da propagação dos mamíferos, aves, insetos e flores. Ocasião do domínio dos mamíferos na vida animal, devido, é lógico, ao desaparecimento dos dinossauros.

Seguiu-se o Eoceno (de 57 milhões a 34 milhões de anos). Surgem os insetos polinizadores. Começa a diversificação nas formas e dimensões dos mamíferos, os quais passam a habitar toda a terra nos seus ambientes mais variados: rios, mares e continentes, em locais mais quentes ou frios. São os mamíferos primitivos que dão origem aos animais de hoje, circulando pela Terra.

No terceiro período, Oligoceno (de 34 milhões a 21 milhões de anos), acontece a ocupação total e desenfreada dos mamíferos em todos os continentes. Os animais atingem seu maior porte e causam a extinção de espécies mais antigas de mamíferos. O clima permanece quente e úmido, o que enseja o aparecimento das pradarias, assim como o das campinas.

O quarto período foi o Mioceno (de 21 milhões a 10 milhões de anos), momento em que surgem as grandes cadeias montanhosas como os Alpes, os Andes e o Himalaia. Houve o choque e a agregação de dois continentes: a placa africano-arábica com a placa asiática, causa da extinção do mar que as separava. A partir daí, as faunas se mesclaram, com novos confrontos e mudanças entre as espécies animais.

O último período do Terciário foi o Plioceno (de 10 milhões de anos a 1.8 milhões de anos), período em que surgem os Australopithecus. Houve um esfriamento global depois do Mioceno e despontaram braços de terra que ligavam os continentes, permitindo migrações em massa de animais e vegetais devido às intermináveis glaciações.

O Quaternário produziu seu primeiro período, o Pleistoceno (de 1.8 milhões a 11 mil anos atrás), auge das espécies animais e aparecimento do homem sobre a Terra. Tem início a idade glacial no Hemisfério Norte. Despontam o Homo erectus, o Homo sapiens e os primeiros traços culturais humanos: as pinturas rupestres.

No Pleistoceno, abundavam os mamíferos e aves de grande porte: os mastodontes, mamutes, tigres de dentes de sabre, búfalos gigantes, etc. Nesse mesmo período, todos eles foram extintos com a vinda do ser humano e as violentas mudanças climáticas. Configurava-se um tempo de intensas glaciações.

O segundo período do Quaternário é o Holoceno (de 11 mil anos até os dias de hoje). Caracteriza-se pelo fim da última idade glacial, com intenso desenvolvimento do homem e surgimento da civilização. É no Holoceno que temos o registro de toda a história da humanidade. Não pude preterir desta modesta e resumida explicação, pois os primórdios da vida no planeta não devem ser reduzidos a fantasias de livros infanto-juvenis. É preciso que se entendam todas as etapas que passamos para chegar até aqui. E não foi um “puf” instantâneo, como entendem os mais acanhados intelectualmente.


[i] Literalmente.
[ii] Supremo bem.
[iii] Atmosfera sem oxigênio.
[iv] Aleksandr Ivanovich Oparin (1894-1980) – bioquímico russo, influenciado por Darwin, desenvolveu a teoria evolucionista da “sopa prebiótica”.  
[v] Microgotas ricas em polímeros que ficam em suspensão na água.
[vi] Peixes primitivos sem mandíbulas.
[vii] Divisão do reino animal que compreende os invertebrados de exosqueleto quitinoso, providos de apêndices articulados pares: insetos, aracnídeos, crustáceos e miriápodes.
[viii] Animais com quatro patas ou nadadeiras.
[ix] Plantas dicotiledôneas de sementes nuas. 
[x] Espécime de crustáceo dos terrenos primários.
[xi] Lagartos com bicos.
[xii] Plantas que têm sementes revestidas de pericarpo distinto.

Se, realmente, a ciência é a única resposta para a humanidade, e de certo é, todas as religiões não passam de adereços. O pior é que sabemos disso! Mas somos hipócritas, esmolamos por lendas para suavizar o horror da existência – da seleção natural –, onde não existem Alices, tampouco o país das maravilhas. Mas, na hora em que as coisas ficam pretas, apelamos para os antibióticos com mais confiança do que nas orações. A reza sempre acompanha os horários dos medicamentos, mas eles é que não podem faltar... Optamos por tomografias, cintilografias, cateterismos e outras intervenções quando estamos em risco. Com certeza, antes das teologias de antanho. Por que, então, defendemos o universo das poções mágicas? Porque fugimos do mundo real – queremos os mágicos, os atores e os sacerdotes. São eles quem nos contam historinhas de ninar. Analisamos as eras geológicas; o bóson de Higgs; a escalada do genoma humano; a expansão do megaverso e outras descobertas. Será que depois disso vamos continuar chamando o primeiro homem de Adão?

Os criacionistas, que ainda ensaiam sair da Idade Média rumo ao iluminismo do século dezoito, dizem que os australopithecus; o homo erectus; o homo habilis; o homem de cromagnon e o homem de neanderthal não foram antepassados do homo sapiens... Foram meio-humanos, meio-animais, mas não guardavam nenhuma relação com o homem pronto, com o boneco de barro colocado no jardim das delícias.

Esse boneco de barro ainda precisa ser protegido politicamente durante um bom tempo. É ele quem nos faz culpados. É ele quem motiva um deus para que entre na carne humana e morra na cruz... “Ah... Mas Adão e Eva eram apenas simbólicos”... Dizem algumas facções cristãs mais hábeis. Então, o pecado também era simbolismo? “Credo”! Dizem outras facções com mais aparência de devoção. E completam: “As torturas foram reais e a ressurreição também”!... Mas como? Então, foi tudo motivado por um casal inexistente? Assim provam todas as teorias científicas sobre a origem da vida na Terra. Vamos sair do colégio? Da universidade? Vamos queimar os livros? Vamos colocar os verdadeiros professores, que ensinam ciência de fato, na fogueira da santa inquisição? Vamos ensinar nossos filhos a regar e colher mentiras plantadas por nós?

Sabemos que é um mito da Antiguidade o primeiro homem surgir pronto de um boneco de barro. Só se for uma existência conceitual, convencionada, que os medievos discutiam naqueles tempos. Eles não tinham inventado ainda o computador. E como seria esse deus que fez um boneco de barro, suposto praticante do pecado original? Todo mundo já tem na ponta da língua que Deus é um só. Fácil, não? Assim, aprendemos do senso comum e preferimos abafar a nossa mente, deixando de pensar. A Bíblia explica, mas Freud também. De uma coisa desconfio: talvez tenha sido esse deus que ensinou o tio Gepeto a fabricar o Pinóquio... Só que foi de madeira.

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quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A HUMANIDADE PEDE SOCORRO!
      
Existem momentos que penso em parar com esse tipo de debate. Única e exclusivamente pela cegueira intelectual das pessoas. Pela ingenuidade das mesmas. Fico absolutamente estarrecido com a falta de discernimento e bom senso das pessoas em não refletir sobre as verdades que a ciência expõe diante dos nossos olhos com a maior clareza possível! Como pode o ser humano insistir nos milhões de opiniões, mais diversificadas possíveis, que as religiões impingem às pessoas, uma vez que a ciência só tem uma versão para cada caso evidente e resolvido através das suas experiências claras? Como pode o ser humano preferir historinhas loucas à solidez da ciência que nos proporcionou a sobrevivência até os dias de hoje. Se somos felizes e prosseguimos vivos é pela ciência e não pelas fantasias religiosas, que cada um insiste em ter a sua... E são capazes até de arrancar as orelhas uns dos outros por causa da estupidez dos dogmas inventados pelo clero... Para isso mesmo: manter a humanidade dividida por completo, com medo, com ódio, pois é a única forma de sustentar o mercado de trabalho e a zona de conforto da turma dos religiosos profissionais... Para que continuarmos a perder tempo com religiões, num mundo em que, a cada instante, precisamos mais uns dos outros? De ajuda e de amor sem administrações religiosas!

Pois bem, aqui faço a postagem de mais um trecho do meu livro A indústria da fé, bem de acordo com o protesto acima... Temos que acabar com o conforto e o mercado de trabalho cínico dos religiosos profissionais, que manipulam nossas vidas para viver na zona de conforto nababescamente, enquanto na verdade não precisamos mais deles!

AS TRADUÇÕES, INTERPRETAÇÕES
E FRAUDES DA BÍBLIA...

A cada dia, o livro dos criacionistas perde terreno. Os teólogos percebem que já não sustentam mais a força dos argumentos de outrora, quando as pessoas não ousavam questionar o Gênesis.

Os religiosos adotam uma rede defensiva de total inconsistência com relação a uma dialética mais profunda. Limitam-se à sedução da fantasia dos fatos narrados pelo senso comum, alicerçados em registros bíblicos aleatórios. Na prática, misturam teologia com exemplos de fatos cotidianos da vida dos irmãozinhos... São meros ajustes infantis adaptados por grupelhos de compreensão acanhada que, normalmente, compõem o universo neopentecostalista.

Os sacerdotes jamais esclarecem nada aos seus seguidores sobre o evolucionismo, apenas se limitam a dizer que se trata de coisa do Demo. Preferem enganar os fiéis com histórias da criação. Esta é a tarefa do sectarismo, a mentira travestida de religiosidade.

“Façamos a Bíblia segundo os nossos propósitos e interesses...”, disse o clero. “Façamos Deus a nossa imagem e semelhança...”, disse o homem. Assim, foi construído um Deus semiperfeito, curiosamente com todos os “predicados”: virtudes, furor, ternura e reações temperamentais, como as do homem judeo-cristão.

Vejamos, então, um pouco sobre as escrituras concebidas como sagradas. Sua origem, conceitos, dúvidas, discrepâncias, cânones e seu lado “misterioso”.

Os livros proféticos da Bíblia são: Isaías, Jeremias, Lamentações, Ezequiel, Daniel, Ozéias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias. Os livros poéticos e sapienciais são: Salmos, Provérbios, Jó, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes, Ester e Rute.

Os católicos fazem o acréscimo de seis livros oriundos da Septuaginta[i]: Macabeus I e II, Baruch, Sabedoria, Eclesiástico, Tobias, Judite, e alguns episódios do livro de Ester e de Daniel. Esses livros são também conhecidos como Deuterocanônicos[ii].    São vinte e sete livros que formam o Novo Testamento: o Evangelho de Mateus, Marcos, Lucas, João; os Atos dos apóstolos; as cartas de Paulo, Tiago, Pedro, João, Judas e o livro do Apocalipse de João. Grande parte dos livros da Bíblia foi escrita em hebraico; aramaico e, finalmente, em grego.

Devido à linguagem literal que a tradução grega expressa, veio à luz mais uma adaptação inicial da Bíblia. O papa Damaso I fez a encomenda a são Jerônimo da primeira tradução das escrituras para o latim. A obra foi concluída no ano de 404 d.C., como modelo definitivo para a fé cristã e chamada de Vulgata[iii]. No Concílio de Trento, em 1546, a Vulgata foi oficializada pela Igreja Romana, sendo o texto revisado em 1592, com o nome de Vulgata Clementina, em homenagem ao papa Clemente VIII, o Viperino.

Abordando um assunto tão delicado como as traduções da Bíblia, é bom lembrar que o ponto mais sério de tudo situa-se no plano das adaptações e não das traduções propriamente ditas. As traduções são repletas de erros, mas é nas adaptações tendenciosas que atinamos a fraude. Nos milhares e milhares de cópias! Nos copistas malandros que, ao bel-prazer e segundo a visão pessoal, distorceram abusivamente o conteúdo das escrituras originais através dos séculos. Na verdade, nenhum texto original da Bíblia jamais chegou às nossas mãos... Nenhum original. Somente cópias das cópias, das cópias, das cópias, depois de séculos de distorções e desvios tendenciosos para perpetuar a teocracia que manteve a humanidade enganada até hoje. Foi exatamente isso o que aconteceu. Se realmente houvesse um Deus interessado em dar a sua palavra aos homens, por acaso teria usado centenas de escribas e copistas imbecis e mal-intencionados, através de séculos, para nos legar um texto tão duvidoso? “Desperta tu que dormes”...

Depois de passar trinta anos de crença cega na Bíblia, vírgula por vírgula, cem vezes mais no seu texto do que na minha própria certidão de nascimento, olhei para o espelho e disse: “Não posso mais crer em fábulas e fechar os olhos para o que sinto como realidade. Não tenho mais como virar o rosto para o grande vazio da existência humana, nem como trapacear minha razão. Outrora, minha personalidade era a soma das experiências, das alegrias e dos sonhos. Hoje, é uma colcha de retalhos do sectarismo. Preciso enfrentar meu solipsismo agora, curvando-me à realidade da vida”. Foi o momento em que as argolas que prendiam a pesada cortina de cores falsas que compõem o palco da nossa existência se partiram e fizeram com que a cortina viesse ao chão. O momento em que fiquei só, de verdade, no mundo. Estranho foi o que vi no fundo do palco, em meio à sombra, o infinito para ser decifrado, pairando no ar um indício de felicidade: Omnia Mea Mecum Porto[iv].

Trinta anos imerso na religião do medo, pela introjeção de um paradigma de angústia e culpabilidade, disfarce de contentamento para a anulação da vida. Esta é a razão do presente livro, a denúncia das metástases do sectarismo e da prisão do espírito, pois a religião da sacola de dogmas não se justifica mais. Sim, pois a pretensão de resolver uma questão dizendo-se que a resposta é um mistério deixa de ser uma resposta. Essa balela de “mistérios” que a religião continua a usar no mundo de hoje não basta, a não ser para os tolos ou ingênuos. Robert Pirsig disse que “quando uma pessoa sofre de um delírio, isso se chama insanidade. Quando muitos sofrem de um delírio, isso se chama religião”...

De tempos em tempos, o homem faz as suas revisões. Nossa visão de mundo é repensada aqui e acolá, uma vez que somos absolutamente mutáveis. Assim, de-parei comigo.

É sempre o temor que nos impede de navegar. Nesses trinta anos, sob o signo do medo. De pensar, sobretudo. De exercer a maior dádiva da natureza ao ser humano, a reflexão.

Comecei a pensar na ideia da benignidade total de Deus, pois esse foi o ponto de partida para todas as religiões. Entretanto, se admitirmos que Deus também possa ser o autor do mal, para que serve qualquer tipo de religião? Nosso conceito de verdade está ligado ao absoluto – é na religiosidade multíciple que a qualidade pela qual as coisas se apresentam como são tornam-se relativas.

Há muito, ouvimos a declaração: “A Bíblia é a palavra de Deus”. Por quê? Porque assim ficou assentado como segunda natureza. Não é matéria discutível pela massa. Os teólogos, os nossos pais, disseram tanto que virou refrão, cânone! Analisando, a Bíblia é tanto palavra de Deus quanto o papa é infalível, quanto Maomé é o profeta de Alá, ou quanto o partido político da nossa preferência é o que reúne mais predicados para preencher os anseios do povo.

Seria melhor admitirmos com honestidade que a Bíblia, apenas, poderia conter a palavra inspiradora de um momento espiritual. Que parte da sua essência se propõe a revelar coisas que estão acima e em oposição aos interesses materiais do homem, portanto, pode ser algo lucrativo para a degustação espiritual. Seria coerente, entretanto, admitirmos que todas as interferências tendenciosas daqueles que a escreveram, respaldados por grupos viperinos, têm como único objeto sustentar e tornar indelével a teocracia através dos séculos. O governo de um deus adaptado pelo governo secreto do mundo. Sabe-se lá o que é isso: governo secreto do mundo?...

Para que a massa ignara do passado tivesse em mãos um manual prático que apontasse soluções para todos os problemas familiares, gastronômicos, políticos, sexuais e econômicos, necessária seria uma cartilha montada pela igreja, com o aval do próprio Estado. Assim, tal coisa aconteceu de forma heteróclita e intencionalmente heterogênea. É pena que numa tentativa impossível de obter-se cadência estilística e inteligibilidade, pelo menos para a nossa época, em virtude dessa tentativa pretender dar aparência novelística a períodos históricos tão díspares. Entretanto, o brilhantismo da estratégia piomercadológia da época não se resumiu na iniciativa inevitável de compilar os livros considerados sagrados, mas, sobretudo, no ato de popularizar e tornar santa uma coletânea que, circulando no mundo como uma cartilha-bússola, jamais poderia ser questionada. O grande truque foi canonizá-la. Deu para entender? Canonização! Essa foi a jogada magistral da Igreja que o mundo não consegue ver: a criação de um código que nunca pôde ser discutido!

Quando os homens decidiram iniciar os registros dos seus primórdios, surgiu a dificuldade de criar a primeira história. Tinham que ser convincentes e férteis na imaginação. Foi preciso angariar a credibilidade dos primeiros agregados dos seus iguais.

Voltaire nos descreve várias histórias sobre as origens. Os helenos tinham Pandora como a primeira mulher da humanidade, agraciada com todos os dons pelos deuses. Zeus havia encerrado todos os males numa caixa. Pandora, como Eva na Bíblia, burlou a confiança de Zeus, abriu a caixa e todas as misérias recaíram sobre a raça humana. O fundo da caixa de Pandora ficou vazio, mas passou a representar uma esperança para a humanidade.

Os hindus já diziam que Deus, ao criar o primeiro homem, deu-lhe uma poção que seria uma garantia para a saúde eterna, mas esse mesmo homem guardou a poção na garupa do seu jumento. O quadrúpede, porém, teve sede e, ao procurar água, encontrou uma serpente que lhe indicou o caminho de uma fonte. O asno distraiu-se ao beber a água e a serpente deslizou até a garupa para roubar-lhe a poção. O homem perdeu tudo.

Para os antigos sírios, a coisa era um pouco diferente. O homem e a mulher foram criados no quarto céu. Eles se alimentavam de ambrosia[v], mas transgrediram as normas e resolveram comer um bolo folhado no lugar da ambrosia, que era eliminada pelos poros. Com o bolo, o processo foi diferente: deixou-os com os intestinos destrambelhados! Precisaram, então, de uma privada. De pronto, pediram a um anjo para mostrar-lhes o caminho da mesma. Aí, o ser celestial disse-lhes: “Estão vendo aquele ponto lá em baixo? Aquele pequeno planeta a, mais ou menos, sessenta milhões de léguas? Pois bem, é lá a privada do universo... Vão lá, mas não se demorem”. O casal desceu para sanar a necessidade, mas decidiu ficar no novo planeta. Desde então, o mundo se tornou o que é – uma colônia penal.

Fustel de Coulanges[vi], na sua obra La Cité Antique, dá-nos uma visão bastante clara sobre o início das crenças da Antiguidade, onde, curiosamente, encontramos uma analogia entre quase todas as crendices antigas. Os povos da Antiguidade, nas origens das populações gregas e latinas, alimentavam a crença de que, apesar da nossa breve existência, o homem jamais poderia terminar na sua morte física. Esperavam por outra existência além do mundo conhecido. A morte era vista apenas como mudança de vida e não como aniquilação do ser.

Hoje, nada tenho como definitivo. Nem como permanente, exceto as minhas lembranças. Não sejamos hipócritas: nossa indestrutível posição religiosa de antanho obviamente não é mais a mesma. Sabemos muito bem que nas sombras do nosso coração, nos cantos mais ocultos que tememos vislumbrar, não partilhamos tanto as mesmas supostas verdades com os demais da nossa seita, da comunidade religiosa, mas, simplesmente, preferimos não olhar para o espelho... Para que? Por que correr novos riscos? Um preço alto demais e quase insuportável. Quem, então, não puder se despir para a luz que se cubra ainda mais: margaritas ante porcum[vii]. É mais fácil permanecer acomodado, para que olhar as pérolas?

Voltando à problemática dos homens terem de explicar aos seus iguais sobre os primórdios da raça, de criar a primeira história, convém lembrar que teriam que relatar tradições impossíveis de serem constatadas e que pudessem ser fortemente plantadas no subconsciente dos homens obscuros da antiguidade. Os mitos são criados dessa forma, para, em seguida, serem adaptados com fins teocráticos. Primeiro a lenda, depois a cristalização da crença.

O que me fascina em Voltaire, é a sua compreensão clara como a água sobre a religião. Sarcástico, irreverente, mas, acima de tudo, genialmente arguto para o tempo em que viveu. Um mestre da antevidência. Suas considerações sobre o princípio desconcertam toda e qualquer manifestação do sectarismo. Vejamos.

“No princípio, criou Deus o céu e a Terra...”. Foi a construção que se propôs. Não há homem algum erudito que ignore o texto: “No começo, os deuses fizeram, ou os deuses fez o céu e a Terra”. Aliás, essa lição vai de encontro à velha ideia dos fenícios, os quais pensavam que Deus tinha o hábito de utilizar deuses inferiores para deslindar o caos, o chautereb.

Há muito, os fenícios integravam um povo poderoso, com teogonia própria, muito antes dos hebreus chegarem por lá. É, pois, de natural suposição que, quando os hebreus nômades se estabeleceram na região, tenham começado a absorver a língua fenícia. É óbvio, então, que os que escreviam se limitassem apenas a copiar a teologia dos seus senhores, engessando-se.
 
“A Terra era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo e o espírito de Deus se movia sobre a face das águas...”[viii]. Esse pensamento já existia nos fragmentos dos fenícios, registrado por Sanchoniathon, um autor da época. Os fenícios, como os demais povos, criam na eternidade da matéria, pois nunca se cogitou, entre os antigos, a matéria ser extraída do nada. Nem na Bíblia existe registro de que a matéria tenha surgido do nada. 

“E disse Deus: Haja luz. E houve luz. E viu Deus[ix] que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas. E Deus chamou à luz dia e às trevas chamou noite. E foi a tarde e a manhã o dia primeiro”. O conceito antigo era que a luz não vinha do Sol. Ela era interpretada como algo meio difuso que impregnava o ar e o Sol somente servia para torná-la um pouco mais intensa. Quem escreveu o Gênesis também partilhava deste princípio, pois, na narrativa, o Sol fora criado quatro dias depois da luz... Como se pode entender a existência de uma manhã e uma tarde antes de existir o Sol? Há uma conformidade do escritor do Gênesis com os falsos preconceitos da sua nação.

“E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança...”. A compreensão dos homens antigos era a mesma, assim como a dos judeus. Só de um corpo pode ser produzida uma imagem, um deus sem corpo, é inimaginável. Os hebreus concebiam Deus como corpóreo e, até, os primeiros padres da igreja, enquanto não aderiram às ideias de Platão.

“E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou”. Essa passagem do Gênesis nos leva a entender que os judeus consideravam Deus e os deuses como machos e fêmeas[x]. De repente, o escritor do Gênesis pode ter interpretado que a criação de Adão e Eva ocorreu no mesmo dia. Seria mais coerente, mas isso se opõe à criação da mulher, saída da costela do homem, bem depois dos sete dias... É preciso que o medo seja plantado no homem para que ele creia no mito.
     
“E havendo Deus acabado no dia sétimo a sua obra, que tinha feito, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito”[xi]. Os hindus, fenícios e caldeus diziam que Deus havia criado o mundo em seis tempos, designados por Zoroastro os seis gahambaris, famosos entre os persas. Não se pode negar que essas hordas já tinham uma teologia antes dos hebreus habitarem os desertos do Horeb e do Sinai. Conclui-se, então, que a história dos seis dias possa ter sido copiada da história dos seis tempos.

“E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida...” Essa é uma passagem que também parece calcada em relatos dos acádios, como por exemplo, “o deus Ea e Mami, sua adjutora, tomaram quatorze punhados de argila e moldaram sete homens e sete mulheres, dando origem à humanidade...”.

“E saía um rio do Éden para regar o jardim; e dali se dividia e se tornava em quatro braços. O nome do primeiro é Pisom: esse é o que rodeia a terra de Havilá, onde há ouro... E o nome do segundo rio é Giom: esse é o que rodeia toda a terra de Cusí. E o nome do terceiro rio é Tigre: esse é o que vai para a banda do Oriente da Assíria. E o quarto rio é o Eufrates”. Da maneira que aí está, o paraíso conteria em torno de um terço da África e da Ásia. O Tigre e o Eufrates têm suas nascentes a mais de sessenta léguas um do outro, em montanhas que, pela fealdade típica, em nada se assemelham a um jardim de delícias. O rio que margeia a Etiópia, com certeza o Nilo, começa a mais de setecentas léguas das nascentes do Tigre e do Eufrates. Isso nos leva a supor que o centro do jardim do Éden estaria situado na atual Armênia, antiga Urartu, próxima do lago de Van.

“E tomou o Senhor Deus o homem e o pôs no jardim do Éden para lavrá-lo e guardá-lo”. É bem sugestivo que Adão recebesse ajuda de outros jardineiros, uma vez que seria impossível o cultivo de mais de setecentas léguas de extensão... A verdade é que todas as histórias da antiguidade referentes às origens têm algo em comum, o exagero e o toque de fábula. Todas essas histórias pretendem a autenticidade e a inspiração divina. As lendas dos etruscos, fenícios, babilônios, caldeus e hebreus propõem dar ao homem a mesma coisa, a base para a interpretação da vida. O clero continua a achar que a humanidade hoje ainda é composta pelos imbecis da antiguidade... Resultado: para que essas coisas sejam ainda admitidas hoje, é necessário que os crentes um pouco mais letrados se espremam de vergonha e fiquem vermelhos como um tomate na hora de afirmar essas baboseiras antigas como crença vigente em pleno século vinte e um. Mas eles têm uma defesa – a boçalidade na ponta da língua –, dizem que você apostatou e cuspiu na cruz, não restando mais sacrifício por tal pecado. Vai para a grelha eterna e virar churrasco depois de morrer...

As contradições da Bíblia têm início no primeiro e segundo capítulos do Gênesis. Somente depois do cativeiro da Babilônia, no século VI a.C., é que o livro da criação foi inserido nos livros históricos. Faltava o mais importante: a explicação das origens como parte de um todo coerente e assim foi feito. Codificados os mitos populares, uma vez recolhidos os fragmentos que se apresentaram sobre o Deus de Israel, mesmo na falta das explanações sobre o princípio das coisas, conferiram unidade ao povo judeu. Parafraseando Nietzsche: “E criaram-se umas tais escrituras...”.

A versão do primeiro capítulo do Gênesis é conhecida como código sacerdotal, com maior peso teológico e vocabulário sacerdotal. A segunda versão já é oriunda de duas tradições: a jeovista[xii] e a eloísta[xiii]. Na primeira, os pássaros e as bestas foram criados antes do homem. Na segunda, tudo leva a crer que o homem foi criado antes dos pássaros e das bestas. Na primeira, subentende-se que as aves foram criadas a partir da água. Na segunda, fica claro que se originaram na terra. Na primeira, Adão e Eva foram criados juntos. Na segunda, Adão foi criado, depois as bestas e, por fim, Eva. Assim, temos o início das contradições mesopotâmicas e dos primeiros mitos, tão evidentes para qualquer um, mas raramente percebidos ou admitidos pela maioria.

A Bíblia diz: “Mas da árvore da ciência, do bem e do mal, dela não comerás...”. Então, revisitamos o genial Voltaire: “Assim como existem damasqueiros e pereiras, de que forma imaginar uma árvore que contém o bem e o mal? Também, quais seriam os motivos que Deus teria para que o homem se privasse do conhecimento do bem e do mal? Não seria, porventura, lógico da parte de Deus e útil ao homem permitir o conhecimento?”. Bem, as coisas do jeito que ficaram nos deixam divisas. O que realmente pode alcançar força literária com repercussão eterna, sem sombra de dúvida, é a criação mais forte possível dos modelos para a imaginação. O relato da tradição, repetido por gerações, tende a adquirir o cunho sacrossanto.

“Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o Senhor Deus tinha feito. E essa disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim? E disse a mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos; mas do fruto que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais. Então, a serpente disse à mulher: De certo não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal”. Em todo o texto não se faz a menor menção ao Diabo, pois tudo está contido no aspecto físico e a serpente era vista como o mais astuto entre os animais da terra. Existia uma fábula dos caldeus sobre uma disputa entre Deus e a serpente, citada, inclusive, no Livro Sexto de Orígenes. Eva não ficou admirada pelo fato da serpente lhe falar, já que em todas as tradições antigas os animais falavam. Tudo isso é tão físico, sem alegoria, que atinamos o motivo pelo qual a serpente rasteja desde então, o fato da serpente procurar morder-nos e de nós sempre procurarmos esmagá-la. Tanto é que Deus amaldiçoou a serpente mais do que todas as bestas e ordenou-a que rastejasse sobre o ventre pelo resto dos seus dias. Fica claro, mais uma vez, a corporificação dos entes entre os hebreus.

“E fez o Senhor Deus a Adão e à sua mulher túnicas de peles, e os vestiu”. Aí está a prova de que os hebreus presumiam um Deus corpóreo e com talento de alfaiate. O tal Eliezer, rabino por escolha, deixou escrito que Deus cobrira Adão e Eva com a pele da própria serpente que os tentara... Orígenes chegou a pretender que essa túnica de pele sugeria uma nova carne, um novo corpo feito por Deus para o homem. Se o rabino e Orígenes tivessem vivido na época da invenção do livro de Gênesis, criativos como eram, certamente teríamos este acréscimo ao livro.

“Então disse o Senhor Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal...” Os hebreus tinham inclinação a adorar numerosos deuses e isso sempre foi um fraco entre eles, apesar da ira de Yahweh. Alguns teólogos interpretam a expressão um de nós como sendo a Trindade, mas é fora de dúvida que a Bíblia não explicita a questão da Trindade, acrescentada mais tarde ao livro. Ela não representa um bloco de vários deuses, mas significa o próprio Deus trino. Os hebreus, até então, nunca tinham ouvido falar de qualquer entidade tripartível. Talvez os hebreus decodificassem a expressão um de nós como sendo os anjos que serviam a Eloim. Há, até mesmo, os que suspeitam de um diálogo entre o bem e o mal. E a metafísica se espalhou.

Se lançarmos um olhar através do mito adâmico, nosso primeiro ancestral teria vivido novecentos e trinta anos. O homem teria sido criado do barro em torno de seis a sete mil anos. Seria crível para os religiosos se não houvesse tantas provas (sem querer datar os Australopithecus e, até mesmo, o Homo habilis) da descoberta de dezenas de esqueletos fósseis nas grutas do Monte Carmelo, com datação de quarenta e cinco mil anos! Esqueletos pertencentes a um tipo humano em franca evolução com variações entre o Homo neaderthalensis e o Homo sapiens, que seria classificado de maneira plausível como o Homo sapiens mediterranensis.

“O Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado...” Curiosamente, mais uma vez, a tendência à corporificação das coisas: com a punição, também houve a mudança da atividade de jardineiro para lavrador...

“Viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas, e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram... Naqueles dias havia gigantes na Terra, e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens, e delas geraram filhos; esses eram os valentes que houve na antiguidade, os varões de fama”. Alegoria comum dos povos antigos. Excluindo a China, não houve uma nação sem que os deuses não tenham possuído e engravidado as moças daqui da Terra. Corporificavam-se e pronto! É lógico que escolhiam as mais bonitas, ficando clara a analogia de sentimentos dos humanos com os deuses. Nesse processo, pudemos ter uma bela safra de filhos privilegiados, híbridos, estabelecendo-se a primeira discriminação racial no nosso planeta.

Voltaire é indiscutível: há os tempos históricos, fabulosos, mas na história deveria haver uma distinção mais apreensível entre verdades e fábulas. O filósofo não se referia às fábulas entendidas como tal, mas àquelas que fazem parte dos fatos admitidos...

A origem de todos os povos está impregnada de fábulas. Pelo simples fato do homem ter vivido por longos períodos em grupo, tendo que aprender a fazer pão, tecer o vestuário e outras coisas práticas, para depois aprender a transmitir os pensamentos aos seus sucessores. A arte da escrita não tem mais de seis mil anos entre os chineses e os povos da Mesopotâmia, com certeza, ainda não dominavam os princípios dessa arte.

A história dos primórdios, sem sombra de dúvida, foi passada de geração para geração através das narrativas orais. Cada povo primitivo, então, com zelo paranoico, muita criatividade, resolveu apresentar aos seus iguais a própria história e, como não poderia deixar de ser, a história do mundo inteiro.

O que pode haver de mais fantasioso dentro das escrituras do que a história do dilúvio universal? O que é milagre, ou fábula, não pode ser visto através das leis físicas. Por isso, desde séculos, Voltaire é odiado e rebaixado por muitos da condição de filósofo para a de um simples cronista. Simplesmente, porque ele se empenha em tornar a verdade perceptível. A verdade vale não na medida em que representa valor conferido pelos homens, mas na medida da sua existência como realidade tangível, a verdade em si. Não é como valor que passa a ser verdadeira, mas como fato efetivo, pois apenas constitui valor para quem a ama, embora para quem não a ame constitua realidade inteligível.

Assim, o filósofo expõe que todos os fatos relacionados com o dilúvio são milagrosos. Os quarenta dias de tempestade que hipoteticamente inundaram as quatro partes do mundo, fazendo com que as águas subissem quinze côvados sobre as mais altas montanhas; os animais que compareceram diante de Noé, vindos de todas as partes do mundo; a provisão de alimentos para a bicharada durante tanto tempo; o fato fantástico dos bichos encontrarem comida logo que saíram da arca; de não terem se devorado durante o sacolejo do barco na tormenta e tantos outros incidentes da viagem... Qualquer milagre proposto precisa, antes, ter bases que inspirem a verdade admitida.

Ora, não dá para ensaiar nenhum tipo de explicação para a coisa mais miraculosa da Terra, digo, da água. É um desses mistérios só justificáveis pela fé inadequada, que gera um milagre ainda maior: o feito de se acreditar naquilo em que a razão não tem chance de expor com um mínimo de coerência. Por exemplo, todos os milagres que Jesus teria operado, na compreensão cristã, guardam relação com a verdade admitida. É a admissibilidade do fato de natureza não contestada. Mas isto também beira os sofismas.

A maioria dos povos, quanto ao relato das suas origens, não abre mão da sua própria novela de inundação que destruiu o mundo, o ciclo representativo que faz o renascimento relacionado com a agricultura. A água inunda a Terra, destrói tudo e, em seguida, brota uma folha verde espalhando a vegetação que simboliza o recomeço da humanidade. Não é de se estranhar, já que a Bíblia foi escrita por povos agrícolas. A interpretação atual do dilúvio é a atribuição a várias inundações, tendo como causa as cheias consecutivas do Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia. Um dilúvio parcial e não universal. Mesmo porque, há indícios de inundações violentas através de registros geológicos dos tells[xiv], que apontam para as catástrofes diluvianas.

Leonard Woolley[xv], ao realizar escavações na Caldeia, ficou convencido de ter encontrado indícios do dilúvio bíblico. Descobriu sepulturas reais, verdadeiros tesouros, mas à medida que prosseguiu nas escavações, em sítios mais altos, concluiu que a água não chegara a tais alturas. Deduziu, assim, que toda aquela região mesopotâmica sofreu intensas inundações, que alteraram todo o vale do Tigre e do Eufrates, o que veio confirmar uma situação de dilúvio parcial. Bem diferente do que os sobreviventes da Mesopotâmia imaginavam: o que seria a destruição completa de tudo. Dali em diante, a história do dilúvio universal, de geração em geração, passou a ter um cunho mitológico e, por fim, religioso.

Uma arca com apenas uma janela. Os vagalhões chicoteavam o barco por todos os lados. Como os animais ficaram organizados e contidos? Com uma janelinha para respirar? De um côvado[xvi], na verdade, nenhuma possibilidade para qualquer bicho respirar.

“E de tudo o que vive, de toda a carne, dois de cada espécie, meterás na arca, para os conservares vivos contigo; macho e fêmea serão”. Minha conclusão é que isto se trata de uma grande facécia feita pela Igreja com o povo sem letras. Aliás, a ilusão é o orgasmo dos ingênuos. No mesmo capítulo da Bíblia, dois animais de cada espécie seguem em direção à arca, enviados pelo Criador. Ele, então, recomenda que Noé junte toda a comida possível para que lhes sirva de mantimento. Agora, que tipo de comida? Carne também? Por quarenta dias e quarenta noites? Cala-te incréu! Bichos em tal situação seriam santos, jejuariam! Nada de encher o estômago no balanço das ondas. Você comeria durante o dilúvio?

As escrituras declaram que foram todos os tipos de animais viventes. Quanto aos insetos? Foram criados depois, ou já existiam? Como foram colocados milhões de espécies de insetos na arca? As pulgas foram para os cachorros? Os carrapatos para os bois? E com o sacolejo, será que os elefantes não pisavam nas baratas? Poupem-me os deuses de pensar nos insetos... Voltemos aos mamíferos, já que somente a girafa era privilegiada de poder alcançar e respirar através da janela de um côvado. O pior é que a janela permanecia fechada, causando odores, pois “aconteceu que, ao cabo de quarenta dias; abriu Noé a janela da arca que tinha feito”. Como é possível hoje, época em que o homem pesquisa os componentes do solo de Marte, a Igreja aterrorizar seus neófitos sob a ameaça de quem não crê nesses mitos possa estar vazio do espírito de Deus, ou, até mesmo, de ser usado pelo Diabo? É aí que sou obrigado a rever Nietzsche: “O início das escrituras encerra toda a psicologia sacerdotal. O sacerdote só teme um perigo: a ciência, a noção salutar de causa e efeito. Entretanto, a ciência não evolui senão à luz de boas condições; é preciso tempo, é necessário possuir espírito em excesso para que se alcance a evolução no conhecimento... Portanto, é necessário tornar o homem infeliz. Essa foi, durante todo o tempo, a lógica do sacerdote”. Tudo que herdamos do sectarismo é a infelicidade.

“Então, arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a Terra, e pesou-lhe em seu coração... E disse o Senhor: Destruirei de sobre a face da Terra o homem que criei, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até a ave dos céus; porque me arrependo de havê-los feito”. O que a Igreja pensa sobre a limitação reflexiva dos seus seguidores? Só os subestima como imbecis, ou lhes confere um mínimo de capacidade de julgamento em relação a um texto tão paradoxal? Non liquet![xvii].

Como admitir Deus comparado a uma criança temperamental que monta um intrincado quebra-cabeça e, depois, joga tudo no chão para fazer outra coisa? Está aí provado como os hebreus reproduziam sentimentos, reações humanas, depois os projetava em Deus, coisa que só é análoga à Antiguidade. A visão da Torah, construindo Yahweh...

Por um rompante, Deus deveria tornar-se infiel a si mesmo? Projeta o homem, a coisa mais conflitante e contraditória, para torná-lo inviável? Por que, então, pouparia Noé que carregava, como todo humano, a semente da imperfeição? Para infantilmente se arrepender? Bem, a explicação seria o amor desmedido...

Enfim, para que o dilúvio, se as coisas continuariam da mesma maneira? A primeira medida desastrosa do homem após a lenda do dilúvio, supostamente, foi tentar construir uma torre, a de Babel, para conversar com Deus. De novo a materialização das coisas. Os animais também foram punidos da mesma maneira que o homem, ou seja, afogados. Ainda bem que os casais foram logo para a arca, fugidos da chuva, para reconstruir toda a fauna sobre o planeta.

Deve ter sido extremamente difícil para Noé solucionar o impasse que se seguiu para prover a alimentação dos seus familiares. O problema da falta de água potável, já que tudo ficara contaminado e salgado. Comer o que? Pipocas? Nenhuma verdura, legumes, frutas, os peixes mortos, nada de carne, cadáveres por todo lado, a não ser que devorassem os bichos exaustos da arca... Não. Muito pouco ético, pois como ficaria o futuro do mundo? O jeito seria começar a plantar alguma coisa com urgência e esperar por dias melhores.

O Pentateuco[xviii], como já é sabido pelos mais esclarecidos, não foi escrito por Moisés. Curioso, por que nada foi escrito no Egito antigo sobre um homem tão poderoso como Moisés e seu Êxodo? Tanta conversa e nada registrado fora das escrituras... Como fica o Moisés histórico?

Há tempos, em certa aula de direito civil na faculdade, um professor, discorrendo sobre Moisés, disse-me que o legislador foi obrigado a tapear os hebreus. Moisés, que viveu no Egito, inteirou-se de todas as práticas do bem-viver da sabedoria copta, mas seria impossível a aceitação desses princípios pelos judeus. Foi aí que ele, ao retornar do Monte Sinai, recriou para os hebreus as regras a serem aplicadas na vida, sem revelar novas facetas e derivações de todos aqueles costumes egípcios como iniciativa ou adaptações suas. Ao contrário, disse-lhes que eram determinações de Yahweh, pois assim teriam crédito e aceitação... É possível? Observemos que o Pentateuco somente foi escrito muito tempo depois dessa época e, para conferir-lhe força e autoridade, afirmaram a autoria integral de Moisés. Sim, tudo é possível na fantasia fideísta.

Se na Bíblia existem erros, contradições, mitos e histórias falsas, como atribuir a um ser infinito a autoria de tudo isso? Seria mais fácil a atribuição a um ser finito, ou melhor, a milhares de seres finitos, ao longo de muitos séculos, compondo uma coletânea de livros na pretensão de conduzir toda a humanidade em direção à teocracia. O desabono maior, infelizmente, é o fato de a Bíblia ter gerado um mundo de divisões entre os cristãos, justamente pela imperfeição do seu conteúdo, com o desdobramento de um oceano de dogmas. A falta de clareza com que foi ordenada, pela disparidade e estilos irreconciliáveis dos livros que a compõem, não pode ter sido criada por qualquer ser infinito. Enquanto intenção de dominar os povos, mais parece obra de teólogos e gerontes[xix] mal-intencionados.

Vamos e venhamos: se nos dermos ao trabalho de analisar a fundo todo o processo de cópias das escrituras através dos séculos, cairemos para trás. Os copistas, no início, não eram profissionais, já que faziam as cópias nas horas vagas e erravam mais do que bois perdidos no pasto! Por acidente e por má-fé. Intencionalmente, para justificar a vertente teológica que lhes conviesse. Não são centenas, são milhares de erros de tradução, interpretação e falsificação que encontramos nas escrituras. Depois os erros foram copiados, copiados – recopiados...

Voltemos ao ponto sobre o arrependimento de Deus por ter criado o homem, em Gênesis capítulo seis, verso seis. Podemos inferir o processo dos redatores da Bíblia de projetar sobre Yahweh suas instabilidades, ao outorgar-lhe os deslizes que fazem parte da personalidade humana. Visavam à remissão dos graves sintomas dos altos e baixos emocionais que eram transferidos para Deus numa reação inconsciente. Então, exteriorizaram a natureza humana reprimida pelo processo religioso.

Em Números 23:19, eles escrevem: “Deus não é homem para que minta; nem filho do homem, para que se arrependa...”.

Em I Samuel 15:29, continuam: “E também aquele que é a Força de Israel não mente nem se arrepende, porquanto não é um homem para que se arrependa...”.

Em Ezequiel 24:14, prosseguem: “Eu, o Senhor disse: será assim, e o farei; não tornarei atrás, e não pouparei, nem me arrependerei...”.

Em Tiago 1:17, a contradição se nota de novo: “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação...”.

Claro está suposto que Deus não muda[xx], então, por que razão repete-se tanto que Deus se arrependeu de ter criado o homem? Bem, mas estamos de novo diante das contradições. Em Êxodo 32:14, o Criador se declara arrependido do mal que dissera que faria ao povo. Em Jonas 3:10, Deus se repete. Em I Samuel 15:35, o Senhor se arrepende de haver escolhido Saul como rei de Israel. O que é isso? São Jerônimo encerra a questão quando diz que “a verdade não pode existir em coisas que divergem, mesmo que tenham elas por si a aprovação dos maus”.

O problema da interpretação se torna grave a partir da intenção e aplicação religiosa dos textos históricos. A bem da verdade, felix qui potuit rerum cognoscere causas[xxi], a Bíblia é uma coletânea de linguagem tanto figurada como poética, típica da sua época e que não guarda relação com a história factual. São livros costurados com lendas e mitos dos judeus, embora permeados de mistérios. A gravidade e o absurdo são os pratos da balança. Mas lembremo-nos, em tempo, que a fé permanece irracional.

Quando Ló recebe os dois anjos em sua casa, fica outro grande exemplo de corporificação das coisas. Os anjos jantaram com ele e até comeram bolos cozidos. Houve o anúncio da destruição de Sodoma e Gomorra, terminando com a salinação da sua mulher[xxii]. Entretanto, o que mais me chama a atenção no texto é a ideia dos judeus na preservação da própria raça de forma obsessiva e inconsequente. Presunçosos varridos! Em Gênesis 19:32, na falta de homens que pudessem fazer a cópula com as filhas de Ló, elas resolvem dormir com o velho pai para conceber dele e dar continuidade à sua semente. Embebedaram-lhe com vinho e pronto. Diz a Bíblia que Ló, de tão bêbado, jamais as vira deitarem-se nem se levantarem ao seu lado. E aconteceu o inevitável: nasceram duas crianças. Lindo! Os judeus garantiram-se na perpetuação étnica. A ideia doentia de criar uma nação através de uma etnia, de uma historia suspeita com base exclusiva na Torah, quando se sabe perfeitamente que o “povo” judeu foi uma invenção megatendenciosa a partir de grupos autóctones da Mesopotâmia, aglutinados, que resolveram se autodenominar de “povo de Deus”... Ora, para que se confira força a qualquer texto, é necessária a criação de ilustrações fortes e polêmicas para alimentar a imaginação. Assim, deu-se a invenção do povo judeu.

O dia em que, estupefato, perguntei a um pastor desses que andam por aí sobre tamanha disparidade, fui informado que Deus tudo pode purificar. Assim, tudo é possível. Por essas e outras, sou partidário de Napoleão que tinha o hábito de introduzir os seus prelados onde quer que lhe fosse conveniente. O povo fanático merece a chibata nas costelas enquanto o mundo perdurar.

Se a verdade não pode existir em coisas que divergem, por que tantas divergências na Bíblia? Se representar a palavra de Deus não pode haver mentiras (pacto ou aprovação às mesmas), logo divergente, não pode ser a palavra de Deus, pois se supõe que Deus não minta, já que não é humano. Na essência das escrituras, a mentira é incompatível com o santo.

Em Isaías 45:7, vemos algo discutível dito por Deus: “Eu formo a luz e crio as trevas; eu faço a paz e crio o mal...” Muito bem, se o Diabo é o autor do mal, quem criou o Diabo? Pelo menos, quem permitiu que o mal existisse? “Crio o mal...”. Analisando, se a mesma natureza contém o bem e o mal, não há necessidade do mal ser criado, tampouco o bem, pois o pressuposto é de que já exista, concomitantemente, no mesmo ser desde sempre. Mas se Deus criou o mal, é porque tinha o conhecimento do mal, o que torna o mal exterior a Deus. Então, quem permitiu que o mal chegasse a ser criado? Logo, o Diabo não poderia ser o autor do mal, mas o principal praticante do mesmo, pois fora um anjo bom segundo a Bíblia. Apenas teria vislumbrado o mal na forma de cobiça ao pretender ser igual a Deus, o que não quer dizer que seja o autor do mal, porque o mesmo já existia. Fica somente com Deus a possibilidade da criação do mal. Se a mentira é parte do mal e até sua própria essência, a existência da mesma foi, então, permitida por Deus. Assim, de acordo com a Bíblia, a primeira mentira foi proferida pelo mal na forma de serpente, porque estava disponível tanto para a serpente como para o homem.

Nem todos os homens creem que Deus exista, mas todos sabem da existência do mal. Se Deus faz a paz e cria o mal, então o Diabo passou a ser necessário para colocar o mal em prática, o que nos leva à conclusão de que o mal é tão importante quanto o bem. Se o mal, entretanto, for exterior a Deus, é efeito, mas se Deus detém o mal na sua natureza, Ele é bipartido e o mal passa a ser incriado, pois é também Deus. Assim, o mal é perene. Para o bem ser entendido como tal, o mal é necessário e um só existe em função do outro. Para que o bem, se não houver o mal? Assim, já que os dois são imprescindíveis, prevalece a figura teratópaga[xxiii] inevitável: o tronco vai gerar figuras díspares e intrinsecamente necessárias. Pode um deus provável que sempre teria existido como a causa de si mesmo promover o equilíbrio entre o bem e o mal, segundo as circunstâncias? Que fundamento seria esse com figuras sempre coexistentes, ab aeterno, inserido num projeto divino supostamente antropocêntrico? Mas se é assim, o bem num prato da balança e o mal no outro, por que o prato do mal pesa mais a cada dia? Explosão demográfica? O mal estaria no Homo sapiens?

Através de outro prisma, temos Bossuet, no seu Tratado da concupiscência, quando declara que “é necessário que saibamos que todo o bem vem de Deus e todo o mal, proveniente de nós”. Tendo todo o bem nos sido ofertado, conservamos para nós a invenção do mal: mea culpa, mea maxima culpa[xxiv]. Contudo, ao admitirmos nossa culpa pela invenção do mal, permanece a pergunta que não quer silenciar: se o mal já existia antes de nós, quem foi o autor do mal? Ou o mal sempre existiu? Ou coexistiu?
       
Na hipótese de Deus haver reunido em sua própria natureza o bem e o mal, não nos resta alternativa senão olharmos na direção do gigantesco problema proposto pela aleatoriedade. Tentarmos, assim, compreender a cadeia do reino animal. Aceitar a vida como verdade ôntica, revisitando Schopenhauer na sua máxima “nós fomos condenados à vida...”. A existência fica vazia de sentido fora de si mesma, pois ninguém, como prisioneiro do próprio eu, pode escolher o ser si mesmo. Condenado não escolhe nada.

De retorno ao Pentateuco, Moisés teria subido o Monte Sinai e lá permanecido por quarenta dias. Segundo as escrituras, ele recebeu todas as orientações das leis de Yahweh e as tábuas de pedra contendo os Dez Mandamentos. Durante esse período, o povo se cansou de esperar e clamou ao seu irmão Arão, então sumo sacerdote, para que criasse novos deuses com o fim de serem adorados. Desse jeito, Arão viu-se cobrado pelo povo e ordenou que todas as mulheres lhe entregassem os brincos de ouro para que pudesse fundir a imagem de um bezerro-deus[xxv]. Assim, puseram-se à orgia. Moisés, ao descer do monte, contemplando tal festim, teria arremessado com furor as tábuas ao pé do monte. Antes, porém, diante da ira de Deus, Moisés já havia lhe pedido, em Êxodo 32:11-12, que se arrependesse de praticar o mal contra o povo. O Senhor, então, ouviu Moisés, perdoando o povo e se arrependendo do mal que pretendia fazer – Êxodo 32:14.

Logo em seguida, em Êxodo 32:27-28, foi Moisés quem mudou de ideia: concitou os filhos de Levi a matar pelo fio da espada, em nome de Deus, três mil hebreus aproximadamente! A manipulação religiosa atingiu o seu ápice: o grande legislador poupou a vida do arquiteto do bezerro de ouro, seu irmão Arão (que desfrutava de certo tipo de imunidade diplomática entre os hebreus), e ainda teve o desbriamento de pedir as bênçãos de Yahweh para os matadores do povo. A primeira quebra do mandamento “não matarás”.

Esse fato difere da simples mentira de um servo de Deus, como no caso de Abraão e Sara em Gênesis 12:10-20. O texto relata o medo no coração de Abraão quando vai para o Egito e teme que sua mulher seja cobiçada pelos egípcios, pois era muito bela. Sobreveio a Abraão o temor de ser morto e de se apossarem de sua mulher. Ele, então, pediu a Sara que se declarasse sua irmã e não esposa. E aconteceu que ela foi tomada para o palácio do faraó. Abraão recebeu em troca de sua mulher ovelhas, vacas, jumentos, camelos e muitos servos por um negócio patético.

Tempos depois, “Deus feriu o faraó” com grandes pragas por causa da violação de Sara. Estranho, nada houve com Abraão que mentiu e o pior aconteceu ao faraó que não sabia da verdade... Contudo, a Bíblia faz o relato da fraqueza de um homem que pretende nos servir de exemplo. Agora, a outra história de Moisés que exemplo nos lega? É um episódio que deixa certeza de fraude textual e tem como finalidade a manipulação religiosa. Para santo Agostinho, Moisés era um herói. Entretanto, olhemos para a época em que viveu. Sua apologia da Bíblia foi típica daquele tempo. Séculos se passaram e hoje é impossível ver as escrituras como Agostinho. Insistir no contrário é incorrer no erro do ditado popular “pior cego é o que não quer ver”.

Meu ponto de vista é inconcusso sobre o fato de muito dos relatos bíblicos serem incongruentes. Quisera não fosse assim, pois ainda esperaria pelas quimeras religiosas de outrora, com a vantagem da feliz estupidez dos que desfrutam dos arroubos do espírito. A feliz estupidez, de certo, é o produto da alienação, enquanto que o peso do conhecimento é factual. Mas, quem, de posse da epistêmê[xxvi], escolheria as águas turvas do obscurantismo?

Por feliz estupidez, pode-se descrever a proximidade do estado do sensus communis, não como scientia media[xxvii], mas como o estado médio entre a estupidez e a agudeza de espírito, não muito longe da condição de parvidade que é própria dos obscuros.

Esse estado médio contém o solo adequado para a fertilização sectária. Em Ezequiel 4:12, encontramos Yahweh ordenando ao próprio profeta que se alimentasse de pães cozidos com fezes humanas... Diante da reação de Ezequiel, Deus reconsiderou e permitiu que fossem trocadas as fezes humanas pelas de boi. E assim foi. Menos enjoativo na ingesta sem tempero...

É preciso que se explore a vaidade do senso comum para implantar as supostas verdades admitidas no iletrado. É no estado médio que o teólogo doloso conclui o seu feito: o ethos da porneia dogmática injuntiva.

Tudo isso soa estranho ao que se pode associar com a palavra Deus. Desde coisas como os pães cozidos em excrementos, aos atos de vingança determinados por Yahweh, através dos seus servos do Antigo Testamento. Pessoas executadas, decapitadas, para servirem de exemplo ao povo idólatra. Animais imolados em profusão para agradar, em “cheiro suave”, ao Deus de Israel e outras coisas estranhas que são impedidas de questionamento pela Igreja. Imolar seres? É preciso que haja uma profunda reflexão sobre o livro que rege a religião judeo-cristã. A religião do medo, da maxima culpa. A religião do deus do sofrimento e da vingança.

A Torah[xxviii], conhecida por nós como Pentateuco, é composta pelos textos jeovistas[xxix] (escritos no século IX a.C.) e os textos eloístas[xxx] (escritos por volta do século VIII aC.); o Deuteronômio (século VII aC.) e, ainda, os textos sacerdotais (século V aC.). A compilação desses textos estima-se que tenha se dado em torno de 400 aC. pelo profeta Esdras. Durante esse tempo, milhares de alterações foram feitas na Bíblia. Que esforço admiravelmente persuasório, o de criar a história da origem do mundo muito tempo depois do próprio Êxodo ser escrito. O livro de Gênesis só foi acrescentado aos livros históricos no século VI aC., depois do cativeiro da Babilônia! As escrituras já tinham um formato e fazia-se necessária uma história da criação do mundo o mais depressa possível... Ora, o princípio de tudo estava tão longe dos hebreus da época que foi preciso criar uma explicação impossível de ser constatada. Para tal, o único meio literário possível de ser aplicado era o do exagero e das fantasias. Uma coisa é fato consumado: as fantasias não incomodam a ninguém. É como Papai Noel. O máximo que pode acontecer é ele não descer pela chaminé com os presentes, mas fica sempre uma ilusão para nutrir o espírito. A religião é assim, a gente finge que acredita para poder ser premiado com a sensação de paz e vida eterna.

Os autores da Bíblia escreveram muitos textos centralizados na questão dos sacrifícios de sangue. Os animais eram sacrificados sobre um rochedo ou na base do mesmo; sobre o masseboth[xxxi] ou um altar de pedras. A dúvida permanece: por que um Deus tão poderoso, criador do universo e autor do amor, exigiria o sangue da sua própria criação? Os pecados do homem, então, podem ser transferidos aos animais. Realmente, Deus mancharia seu altar com o sangue de pombas, cordeiros e bois? Poderia ser o cheiro de carne queimada uma coisa santa? Tenho que me ver carnal ou herege por questionar tal coisa, o devir de Redenção pelo sangue?
     
Moisés, por ordem de Yahweh, teria legislado sobre o povo hebreu, recebendo a linha reguladora na direção da sabedoria da existência. Porém, é muito pouco provável que tenha existido um revolucionário dos mais elevados, um líder tão significativo, criado pela filha do faraó, sem nenhum registro no antigo Egito sobre o tal Moisés. Não há nenhuma prova do Moisés histórico, ou de que ele tenha escrito o Pentateuco. Mesmo porque, muitas são as divergências dentro do mesmo.

Em Êxodo 20:5, vemos: “Porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a maldade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem”. Deuteronômio 24:16, diz: “Os pais não morrerão pelos filhos, nem os filhos pelos pais; cada qual morrerá pelo seu pecado”.

Em Números 12:3: “E era o varão Moisés mui manso, mais do que todos os homens que havia sobre a terra”. Em Números 31:17, Moisés ordena: “Agora, pois, matai todo o varão entre as crianças, e matai toda a mulher que conheceu algum homem, deitando-se com ele”.

Em Êxodo 33:11, vemos: “E falava o Senhor a Moisés cara a cara, como qualquer fala com o seu amigo...”. Em Êxodo 33:20: “...Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a minha face e viverá”.

Não pretendo enumerar as divergências da Bíblia, apenas considero a possibilidade da existência de mais contradições nas escrituras do que a coerência harmônica de textos com sequências de “verdades confirmadas”. Se meu propósito fosse enumerar as divergências, este livro não ficaria pronto nem em cinco anos de pesquisas. Contudo, quero insistir na intenção dos ensinamentos nela contidos e que, realmente, existe na Bíblia a magnitude do bem. É certo que a Bíblia deveria ser exclusivamente um livro histórico, mas pena que fizeram dela um livro para uso teocrático.

Conforme Voltaire, muitos pesquisadores concluíram que o Pentateuco jamais fora escrito por Moisés. O primeiro volume do Pentateuco foi devidamente compilado no tempo do rei Josias e, esse volume único, entregue ao rei pelo seu secretário Safan. Vejam, entre a vida de Moisés e esse fato podem mediar 1167 anos, pelos cálculos dos hebreus. Yahweh teria falado a Moisés na sarça ardente no ano do mundo 2213 e Safan publicou o livro no ano do mundo 3380...

Se o legislador Moisés tivesse realmente escrito o Levítico, haveria contradição no Deuteronômio? O Levítico proíbe o matrimônio com a mulher do irmão, já o Deuteronômio ordena-o. Moisés teria atribuído quarenta e oito cidades aos levitas numa região onde jamais houve dez cidades, ou num deserto onde vagou sem ter sequer uma casa? Moisés teria estabelecido regras para os reis hebreus, quando os reis ainda não existiam? Esses reis só viriam quinhentos anos depois e ele nada disse sobre os juízes que lhe sucederam! Isso não deixa, porventura, a suspeita de o livro ter sido montado na época dos reis? Mas eruditos e curiosos devem se calar quando fala a Igreja. Por essas e outras é que considero a canonização como o maior estupro da inteligência humana!

Tentar produzir explicações científicas (algumas são possíveis) sobre as pragas, os castigos hipoteticamente lançados por Deus sobre o faraó e os egípcios é tão sem lógica quanto inconsistente. A combustão espontânea da sarça ardente carregada de seiva com essências voláteis... O maná era uma secreção que surgia nas tamareiras do deserto do Sinai, produzida pelos insetos najacocus serpentinus e trebutina mannipara. As codornizes já tinham o deserto como rota de migração. A água que saía da rocha, por ser um tipo de pedra porosa, sempre com a formação de uma casca que envolvia água acumulada, etc. O mais estranho, porém, é o feito de Moisés abrir o Mar Vermelho com o cajado. Ora, o fundo de qualquer mar ou é completamente acidentado por rochedos, recifes, corais, ou é extremamente atolante, pelo fato da areia mole. Então, como carros egípcios e cavalos conseguem chegar até o meio do Mar Vermelho? Depois o mar se fecha sobre eles. O que é isso, um conto dos irmãos Grimm? Tudo bem que a Igreja usasse esses meios dissuasórios na Idade Média, mas hoje...

Vivemos uma época de mudanças culturais aceleradas e estamos conscientes de que não cabem mais essas bobagens literárias que povoaram a cabeça dos homens medievos.

Meu compromisso não é mais com a religião institucionalizada, nem com livros “santos”, tampouco com doutrinas e dogmas, mas é com a verdade. É a ela que temo, é diante dela que recuo, às vezes, como todos os homens. É ela que me expõe; desestabiliza, mas é a ela que amo, busco e deposito a única esperança de ser.

Não há vestígios arqueológicos da existência de Moisés, nem tampouco do Jesus histórico. É construir e crer. O pior disso tudo é chegar ao problema da existência conceitual de Jesus... Existência conceitual: desolador, vazio, sem esperança. Que se enfrente a existência biológica – aqui –, o tudo que temos.

A rigor, não existe nenhuma prova da existência de Deus. Tomás de Aquino[xxxii] chegou a postulados de brilho para a época, mas o homem não tem prova científica alguma da existência de Deus. Já propusemos que Deus não se compreende em vias da razão, apenas se intui. Dentro da expectativa religiosa, é óbvio.

Alguns teomaníacos já me acusaram de ser um coitado qualquer por não ter alcançado a intimidade com Deus. Existem lunáticos que alegam ser íntimos de Deus... Até um deles, velho conhecido meu, crédulo, com traços profundos de retardo, imagina que é escritor inspirado por Deus, mas o coitado só se expressa através de galimatias[xxxiii] e de fantochadas. Tolo sonhador, pois assume ter “conchavo com Deus...”. Acontece que só o asno e o paranoico acham que têm conluio com o Eterno.

Assim, os escritores do Pentateuco montaram um conchavo entre Moisés e Yahweh. Atualmente, a Marvel Comics nos brinda com Batman, Superman, Hulk, Spiderman, etc. Ontem, os hebreus nos brindaram com o grande Moisés. A necessidade de heróis, em que o classicismo grego nos forneceu os maiores exemplos, continua até os dias de hoje.

A construção da Bíblia foi o melhor marketing religioso já feito, só que a Igreja não contava com o desenvolvimento das ideias do Ocidente e a Bíblia deixou de ser absoluta para os religiosos mais esclarecidos. O maior problema foi o ato leviano de milhares de copistas que inseriram tantas aventuras e mitos em livros tão diferentes. Isso despertou dúvidas nos últimos tempos, já que se mostrou a criatividade do homem como especialista na elaboração de livros santos.

Os super-heróis continuaram. Surgiu Sansão. Pena que não souberam dar um toque de disfarce na história para não ficar tão desconcertante. O homem era muito forte, mas a queixada do jumento, já no osso, tinha lá suas fragilidades físicas... Como o crânio de um burro poderia suportar a capacidade de ferir mil homens, talvez até com armaduras de ferro? Só Deus sabe.

Jó simboliza outro tipo de herói, o da resistência. Nada há de mais desconcertante na Bíblia do que a história de Jó. Do que o diálogo entre Deus e Satanás. Em Jó 1:7-8, o Senhor indaga ao Diabo: “De onde vens?”. Satanás respondeu ao Senhor e disse: “De rodear a terra e passear por ela”. Assim trava-se um desafio e Jó é penalizado por ser um homem sereno que vivia com o máximo senso de retidão. Que tipo judaico de vaidade-deífica é essa? Como não poderia deixar de ser, novamente, a projeção da visão terrena do povo hebreu, do argumento da aceitação comum[xxxiv], que, no caso, deixa claro que tudo é um jogo de poderes e conflito de interesses no materialismo judaico. É, pois, no argumento da aceitação comum que está o ópio dos parvos. Do povo, das parvoíces e crendices.

Por que os sectários insistem em ler a Bíblia de olhos vendados? Simplesmente, porque são talhados para isso pelo clero. Então, afigura-se o postulado: “A incubação do medo é o instrumento de trabalho do sacerdote”. Parece que não, mas funciona...

Por outro lado, é preciso que o medo seja infundido como controle social e refreamento dos desejos, pois qualquer parâmetro controlador só pode obter resultados quando insere algum poder em seu núcleo. No caso, o poder do clero amparado pelo lado desconhecido da invenção. Após a incubação do medo, finalmente, pede-se que sobrevenha a suavização da consciência. Essa é a missão do sacerdote, quando bromista, na harmonização da fé laboratorial através da técnica da confissão.

Enquanto a razão tentou dissecar Deus totalmente em vão, a ignorância encontrou a ilusão de Deus. A falta de respostas, então, desenvolveu a fé. A partir daí, essa ignorância fabricou um deus do sexo masculino, com um disfarce humano, sujeito às mesmas emoções do homem: arrependimento, amor, ira e compaixão... Desde o início, essa foi a melhor maneira que os antigos hebreus encontraram para dominar os seus iguais, a criação de um deus com sentimentos humanos. A mitologia grega o fez muito bem.

Em certo aspecto, a montagem da Bíblia criou uma vaidade competitiva no íntimo dos cristãos. Sentimento que produziu concorrência duvidosa, colocando cada um no estado de certeza de ser o detentor da interpretação correta da Bíblia. Isto é reivindicado pelos cristãos mais sectários, já que os pobres discriminados vizinhos irmãos das demais seitas não conseguiram atingir a plenitude do conhecimento de Deus... Mas espera-se que sejam esclarecidos e, por ora, merecem intercessões perante o Senhor. Pietistas untados de dolo!

Por outro lado, a Bíblia diz que fomos criados imagem e semelhança de Deus, o que, lógico, inverteria este processo, o de aceitarmos as circunstâncias bíblicas de forma indiscutível. Não é propósito deste livro a exposição das contradições da Bíblia, mas torna-se impossível discorrer sobre um assunto desconfortável sem abordá-lo diretamente, sem imiscuir-se nas muitas nuances de desapontamento que o tema abriga.

Em João 3:13, vemos que ninguém subiu ao céu, exceto o que desceu do céu. Em II Reis 2:11, já ocorre o oposto, o profeta Elias subiu ao céu num carro de fogo.

Em Atos 22:9, na conversão de Saulo, os que o acompanhavam viram a luz. Em Atos 9:7, os mesmos já não viram.

Em Jeremias 13:14, Deus não perdoa, não poupa e, tampouco, tem compaixão. Em I Samuel 15:13, Deus manda matar homens, mulheres, meninos e crianças de peito. Em Tiago 5:11, o Senhor é pleno de amor e misericórdia. Em Salmos 145:9, o Senhor é bom para todos os homens.

Em Deuteronômio 27:15, Deus amaldiçoa qualquer homem que fizer imagens de escultura. Em Êxodo 20:4, a mesma coisa. Em Levítico 26:1, os ídolos são proibidos. Em Jeremias 8:19, Deus fala da ira provocada pelas imagens esculpidas. Mas, em I Reis 7:28-29, fala-se de querubins, bois e leões esculpidos a mando de Deus. Em Êxodo 25:18, o Senhor ordena que sejam feitos dois querubins de ouro batido nas extremidades do propiciatório. Em Números 21:8, Deus manda Moisés esculpir uma serpente para colocá-la sobre uma haste. Será que os hebreus deixavam de adorar essas figuras permitidas? Será que existiam esculturas que podiam ser adoradas e outras não? Quer dizer que bois podiam ser esculpidos, mas bezerros não? Alguma influência do boi Ápis?[xxxv]

Em II Reis 24:18, Zedequias tinha vinte e um anos quando começou a reinar. Em II Crônicas 36:11, vinte e cinco anos no início do seu reinado.

Em Joel 3:9-10, Deus manda santificar uma guerra, preparar espadas e lanças. Em Êxodo 15:3, Moisés diz que o Senhor é um guerreiro. Porém, em Romanos 15:33, fala-se do Deus de paz. Em Isaías 2:4, as espadas serão convertidas em arados e as lanças em podadeiras.

Em Eclesiastes 1:18, vemos que a sabedoria produz enfado e quanto mais conhecimento, mais tristeza. Já em Provérbios 4:7, a sabedoria é suprema e deve ser adquirida.

Em II Samuel 24:1, o Senhor incitou a Davi. Em I Crônicas 21:1, foi Satanás quem incitou a Davi.

Em II Crônicas 9:25, Salomão tinha quatro mil estrebarias para os cavalos. Em I Reis 4:26, Salomão tinha quarenta mil estrebarias.

Em II Crônicas 8:10, Salomão tinha duzentos e cinquenta chefes oficiais. Em I Reis 9:23, eram quinhentos e cinquenta.

Em Tiago 5:12, não se pode jurar nem pelo céu, nem pela terra. Em Mateus 5:34-35, de jeito nenhum o juramento é permitido. Agora, em Deuteronômio 10:20, deve-se jurar em nome do Senhor. Em Gênesis 31:53, Jacó jurou pelo temor de seu pai. Em Hebreus 6:16, os homens juram por quem lhes é superior.

Em Lucas 3:23, o pai de José, marido de Maria, foi Heli. Mateus 1:16, já diz que o pai de José foi Jacó.

Em I Samuel 31:4, Saul se suicidou. Em II Samuel 1:6-10, há o relato de que Saul foi morto por um jovem.

Em II Crônicas 36:1, Jeoacaz era filho de Josias. Em Jeremias 22:11, Salum é que era o filho do rei Josias.

Em João 14:28, Jesus declara que vai para o Pai e o Pai é maior do que Ele. Em João 10:30, Jesus declara ser um com o Pai.

Apenas alguns trechos contraditórios da Bíblia foram expostos aqui e não são mais necessários prolongamentos. Minha finalidade está longe de ser a desmistificação das escrituras, mas desjungir o homem dos mitos eclesiásticos que levam ao desequilíbrio mental.
 
Os mais radicais apologizam a Bíblia como palavra de Deus pura e simples. Os que pretendem ser menos alienados já se referem como palavra inspirada por Deus. Será que não ficaria melhor palavra simbólica?... Entretanto, quem determina a questão da inspiração; quem, quando e onde está inspirado? Qual o grau ou estado de inspiração real? Pode a inspiração estar fundada numa relação do homem como copartícipe do Criador? Como se faz prova da inspiração? A inspiração não pode ser provada, pelo simples fato de Deus também não ter a sua existência provada. Como se saber inspirado por Deus? O inspirado é um fantoche ou é conduzido pela vontade própria à espera de lampejos divinos? Ou é um desses milhares de canalhas recentes que se intitulam apóstolos e representantes de Deus?A inspiração é algo voltairiano com pirotecnias tais quais as do Rei Sol? Que tipo de circunlóquio é esse? Perifraseando: se a inspiração era privilégio dos escritores da Bíblia, então deveria ser também dos seus tradutores, copistas e intérpretes! Seria a inspiração o modo de Deus anular a vontade humana para efetuar o registro dos seus pensamentos? Então, não seria inspiração, seria ditame. E, lógico, a Bíblia nem poderia ser considerada um dossiê divino, pois para tal, exigiria perfeição, o que não constatamos. Pasmem, então, meus juízes e algozes, aos que chegaram a supor ser somente esta a minha visão da Bíblia. Definitivamente, não me considero um pensador precipitado.

É preciso analisar com muita honestidade, introspectivamente. Diante de todo o aspecto anacrônico contido na Bíblia, com toda a tentativa de juntar os livros mais díspares num só para servir aos propósitos do clero, com toda carga aparente de literatura infanto-juvenil, a Bíblia permanece com um conteúdo que merece reflexão. Muito do seu conteúdo é estranho e contraditório, mas é também um indicativo de amor, fé, esperança, perdão e renúncia. A sua essência, como uma espécie de cuidado na preservação do eterno no homem, contraria todas as tendências à coisificação do imaculado. A Bíblia causa confusão, porém exemplifica fatos de alteração comportamental humana, em sociedade, diante da existência (visualizando-se através de uma abordagem oculta, subjetiva e individualizada), pela indução ao sacrossanto. Sujeição? Faxina mental? Paranoia ou virtude? Melhor do que o niilismo.

Presume-se, portanto, que a finalidade da Bíblia suplante o vazio da falta de propósito do estado de crença inexistente. Logo, o mais importante não é o oceano de divergências e contradições que as escrituras contêm, mas o transformativo contido em seu conjunto, passível de interação com o humano. Perfeito, mas esse argumento nos convenceria na segunda década do século XXI?

Concluo que temos que deixar de lado as coisas de menor importância, como por exemplo, o fato de Deus parar o sol para Josué brincar de guerra, ou seja, para um bando de bárbaros destruírem outro bando igual de selvagens... Precisamos extrair o que é significativo e profundo do conteúdo da Bíblia. O que, de fato, pode ajudar o homem que necessita de religião.

Mas e daí, continuamos a tapar o sol com a peneira? Século XXI... Quantas mudanças ainda chegarão numa velocidade cada vez maior? Será mesmo que essa boa intenção injetada na Bíblia vai sobreviver à realidade que esse mundo esfrega na nossa cara a cada instante? Vai chegar ao ponto de ser risível a teologia bíblica e, em seguida, completamente preterida por causa da sua própria construção de interesse teocrático. Seria melhor que o niilismo? Talvez. Mas o que será da Bíblia daqui a tempos se ela é pura confusão teológica, disfarçada através dos milênios pelos criadores de ficção?...


[i] Versão grega dos setenta. O texto completo do Novo Testamento foi escrito por um grupo de setenta e dois judeus e gregos em Alexandria.  
[ii] Também denominados de apócrifos (falsos) pelos protestantes. 
[iii] Do latim vulgatus (popular).
[iv] Tudo que tenho levo comigo. Isto significa que o maior tesouro do ser humano é a sua própria pessoa, a sua inteligência e o seu coração.     
[v] Alimento dos deuses do Olimpo, nove vezes mais doce que o mel e responsável por manter a eternidade.
[vi] Historiador francês (1830-1889) que elaborou um método histórico-científico com a sua obra La Cité Antique.        
[vii] Pérolas aos porcos.   
[viii] Neste segundo versículo de Gênesis, é perceptível a ignorância dos hebreus antigos em relação à construção de uma fábula de bom senso: levou milhões de anos para que a terra esfriasse e existisse água. Quando surgiu a água, a terra já tinha forma.
[ix] Curioso que, em cada etapa da criação, registra-se nas traduções “... E viu Deus que era bom”. Isto não cria uma situação de dúvida laboratorial, de risco de experiência? Como entender tentativas vindas de um ser onipotente?
[x] Como podemos ser imagem e semelhança de Deus se somos machos e fêmeas?
[xi] É fascinante a técnica da redundância nas traduções bíblicas... Elas sempre conferem ao texto um ar fatal de solenidade. É como se a fala partisse de entre os rochedos do Monte Sinai. Assim, a mídia foi inventada na antiguidade...      
[xii] Tradição jeovista pelo fato de, na região sul (reino de Judá), o Deus de Israel ser chamado de Yahweh.
[xiii] O mesmo Deus, na região norte (reino de Israel), era conhecido como Eloím.
[xiv] Acúmulo de ruínas e detritos de construções que formam várias camadas geológicas, constituindo pequenas colinas de topo plano, agrupando as várias camadas. Cada etapa dessas configura um período histórico diferente.
[xv] Arqueólogo inglês que se dedicou às pesquisas sobre os sumérios em torno do dilúvio.
[xvi] Cubitus – antiga medida de comprimento, de três palmos, ou, mais ou menos, 67 cm.
[xvii] Não está claro, não convence!  T(
[xviii] Os cinco primeiros livros da Bíblia.
[xix] O geronte era um velho ridículo da comédia clássica, um grimo.
[xx] Vide Malaquias 3:6.
[xxi] Feliz daquele que pode conhecer as causas das coisas.
[xxii] Essa é uma fábula típica dos hebreus, enfocando a maior fraqueza feminina: a curiosidade.
[xxiii] O mesmo que xifópaga (que tem duas cabeças).
[xxiv] Minha culpa, minha máxima culpa.
[xxv] Fato bastante curioso é fundir ouro no deserto. Outro fato que chama a atenção é o patrimônio em ouro dos hebreus, uma vez que saíram do Egito sem nada, foragidos e como escravos. Mas, impressionante mesmo foi a quantidade brutal de ouro aplicada na construção do tabernáculo ordenada por Deus... Vide Êxodo 25 em diante. A única explicação é a capacidade que os judeus têm de se capitalizar, ainda mais depois de quarenta anos no deserto...         
[xxvi] Conhecimento.
[xxvii] Conhecimento médio.
[xxviii] Termo hebreu que significa Lei.
[xxix] Tradição jeovista pelo fato de, na região sul (reino de Judá), o Deus de Israel ser chamado de Yahweh.
[xxx] O mesmo Deus, na região norte (reino de Israel), era conhecido como Eloím.   
[xxxi] Pedra erguida
[xxxii] Um deles, por exemplo: “quem poupa o lobo, condena as ovelhas...”.            
[xxxiii] Coisas incompreensíveis; nebulosas.
[xxxiv] Argumento insólito de que tudo o que é aceito passa a ser verdade.
[xxxv] Divindade egípcia em forma de boi.

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