A ADMISSIBILIDADE DO DEUS INCOGNOSCÍVEL
Não sendo Deus
divisível, pois é teologicamente imaginado uno, eterno, incriado, não poderia
guardar relação de natureza com o homem, que é o oposto; sendo, portanto,
ininteligível. Surge a improbabilidade da sua existência, concomitante à
aplicação da probabilidade pela via multíplice: ritos e religiões, constituindo
a pior das ambivalências. Sim, porque, na verdade, a causa primeira de si mesmo
não tem obrigatoriamente que ser cognoscível pela via dogmática, pois é
impossível, simplesmente, estar ao alcance da nossa cognoscibilidade. Essa causa
não pode ser compreensível através do dogmatismo, ainda que seja essa a
asserção religiosa. Isca! Fraude cativante! Os dogmas nos brindam com um deus
falso e mesmo conflitante.
Nossa composição natural, finita, não
infere a natureza simples de uma causa pura e primeira. Mas, através do dogma,
tudo fica confortável e simples com a crença. É só fingir que acreditamos e não
precisamos nos aprofundar em nada. Em seguida, a razão tende a permear a fé,
enquanto que o dogmatismo tende a destruí-la. Velado, vestido em disfarces, sorrateiramente,
ao cristalizá-la na forma sectária: In
cauda venenum![i].
Quando a causa sui, através da via
dogmática, começa a ficar fácil demais para ser compreendida, deixa logo de ser
a causa de si mesma: o arcano se desmagnifica e vira um rótulo. Surge o
deus-anãozinho dos semissábios, um pobre lacaio sinodal com a missão reguladora
da massa ignara. A força superior só poderia existir na metafísica, em mistério,
embora o dogmatismo assevere o oposto. Sobre mistério, refiro-me à insondável
natureza de qualquer deus, já que indecifrável na sua condição autógena e não
no oceano de mistérios banalizados que são inventados pela velhacaria sectária.
No Dicionário
Filosófico, Voltaire aborda a questão do dogma até de forma jocosa. Conta
que no juízo final o cardeal de Lorena pleiteava a vida eterna, bradando
farfalhas, ao decantar seus feitos no concílio de Trento, ao que surgem,
repentinamente, umas vinte prostitutas relatando aventuras ocultas com o
cardeal. Acontece que, junto ao prelado, aparece também o famoso Calvino, com
vanglórias de ter insultado o papa, de combater a escultura, a pintura, ao pedir
para ser entronizado junto a são Paulo e para lançar fora o cardeal de Lorena.
De repente, brilha uma fogueira e dela sai um fantasma que grita: “Monstro,
Calvino! Treme, pois sou Miguel Servet[ii],
o que mandaste matar! Por ter, somente, discutido contigo acerca da
possibilidade de três pessoas poderem ou não compor uma única substância.
Treme, pois!”. Diante disso, a sentença para o cardeal foi o abismo,
entretanto, para Calvino, a sentença foi ainda mais rigorosa. Por fim, daquilo
que ficou claro no juízo final, nenhuma alma seria julgada por suas ideias ocas
e vãs, mas pelos atos praticados, pois essa é a verdadeira justiça. Não por
princípios, mas por atos!
Nas fés,
desde que nada vem do nada e nada volta ao nada, somente um ato puro que possa
existir ou sempre pudesse ter existido, poderia do nada estabelecer o devir[iii]
da possibilidade do movimento constante das coisas que se desfazem, transmutam-se
em outras coisas e opõem-se à própria nadificação.
Isto é o que podemos concluir de forma
pura, entretanto, na visão do dogmatismo, que é fracionário com qualquer
deidade, é o início de uma grande peregrinação no deserto da frenação do ser
humano. Uma espécie de jugo-fecundação: o dogmatismo como incubus[iv] e
o sectarismo como sucubus[v],
para que daí surja uma das grandes expressões do irracional religioso, o facciosismo
pio.
Existe uma linha divisória, tênue, quase
imperceptível, que determina na mente humana a noção do eu; da existência dos
corpos externos; da percepção da essência infinita de Deus e que separa dessa
noção pura o oceano de falácias que propõe o sectarismo. É nessa linha tão fina
que está contida toda a verdade das coisas e essa linha não é pensada, apenas se
intui. Sai-se dela e começa a vastíssima aventura da incompatibilidade humana.
Essa causa maior de todo o efeito não teria
deixado acesso ao homem mais do que a noção da essência infinita de si mesma;
do seu poder ilimitado; da sua benignidade; do seu arbítrio de permitir a
atuação do mal, já que os desdobramentos dogmáticos são apenas clericais. Pena
mesmo que esse acesso seja apenas pela via dogmática. Logo, como intuir o
Supremo? Através do argumento da experiência pessoal? Ora, ora... Isto é para o
senso comum. O miserável senso comum que implora uma vida inteira por
misericórdia, sabendo no íntimo que não há resposta alguma, mas insiste em
enganar a si mesmo na frente do espelho, tornando-se ainda mais cínico. Ficamos
mergulhados no silêncio sepulcral que, ingenuamente, insistimos em transformar
em música.
É o dogmatismo que tenta colocar Deus num
pote de vidro com o rótulo por fora, propondo-o cognoscível. O pote sempre é
aberto e as colheradas enfiadas pela glote dos neófitos – turvação e
obscurantismo! Então, surge um silogismo: todo dogmático não é confiável; ora,
o dogmatismo gera o sectarismo, logo, todo sectário não pode ser confiável.
Ainda, recorrendo a um polissilogismo: o que é infinito não pode vir a ser
cognoscível; ora, o eterno é infinito; logo, é incognoscível; ora, o que não se
pode entender passa a ser inassimilável; logo, o eterno não pode ser visto pelo
conhecimento.
O deus do pote com rótulo não pode ser
intuído, pois não é puro. É posto para ser introjetado, nada mais do que isso.
Toda a propaganda de Goebbels[vi]
foi introjetada, conforme a sua própria natureza, o papel imaginário de
transportar para as várias instâncias da psykhe
os objetos externos e suas qualidades intrínsecas. A religião é a mesma coisa,
um processo de incorporação forçada, diferente da intuição, que é o
conhecimento imediatista da “verdade” sem a ajuda do raciocínio. A noção da
passagem do tempo e a natureza de Deus são intuídas.
Todas as relações humanas, principalmente no âmbito religioso, serão sempre conflitantes. Para equacionar isto, o dogmatismo confere um caráter setorial à religião e o sectarismo se instala, dando solidez a esse vil processo. A pluralidade de diferenças é resolvida debaixo de uma arrumação da fides[vii] para acomodar os antagonismos. Daí então, o meio acomodativo é que os “pássaros” permaneçam em galhos setorizados, mantendo entre si uma relação de horizontalidade, a partir da relação dogmática vertical, imposta pela hierarquia da cúria.
Todas as relações humanas, principalmente no âmbito religioso, serão sempre conflitantes. Para equacionar isto, o dogmatismo confere um caráter setorial à religião e o sectarismo se instala, dando solidez a esse vil processo. A pluralidade de diferenças é resolvida debaixo de uma arrumação da fides[vii] para acomodar os antagonismos. Daí então, o meio acomodativo é que os “pássaros” permaneçam em galhos setorizados, mantendo entre si uma relação de horizontalidade, a partir da relação dogmática vertical, imposta pela hierarquia da cúria.
Sendo o dogma um decreto, o nervo ótico tido
como modelo primacial e incontestável de qualquer doutrina religiosa, torna-se
a última opinião, a verdade absoluta. Numa visão anárquica, é algo de podre no
reino das margaridas... Entretanto, quer seja como proposta de verdade contida
na Revelação, ou como doutrina arquitetada por teólogos, oriunda de um
testemunho escritural, o dogma constitui a dogmática[viii],
que por sua vez produz uma sequência: o dogmatismo[ix],
atitude renitente, rejeição a qualquer tipo de contestação. Sobre esse tripé, a
tendência é contemplarmos uma sombra que se afasta da opinião geral, o espírito
da seita. Abjeção da mente humana, torpeza que opacifica o bem maior do
raciocínio, o poder de reflexão. Chama-se a isto, em latim, de secta[x],
o ovo podre, embrião da prática espiritual mais suja: o sectarismo –
qualidade e estado latente do sequaz da intolerância, do cultivo da paranoia
espiritualista.
O Princípio só poderia ser intuído, e no
plano da compreensão individual. Mas o homem, rejeitando essa condição de
limite, se lança a uma prospecção absolutamente infrutífera. Pretende saber a
arquitetura do ato puro, ao que bem se aproveita o dogmatismo.
Segundo o argumento do design inteligente, de uma forma imediata, a existência de Deus
seria mais perceptível do que a existência do próprio homem. Somente os efeitos
da natureza seriam infinitamente mais numerosos do que os efeitos produzidos
pelo ser humano e não haveria nenhuma marca para denotar um feito do homem
comparável à obra da própria natureza.
Propõe-se que a causa primeira exista acima
de todas as coisas que já são e essa causa seria a sua própria existência.
Impossível de apreensão como um todo, excede a toda espécie de conhecimento. Ininteligível.
Haveria, porém, uma relação de proporcionalidade do conhecimento da criatura
para com o Criador. Essa proporção estaria implícita no efeito em relação à
causa e na potencialidade em relação ao ato. A priori, sem desprezarmos essa relação de proporcionalidade, seria
possível apreender-se a causa primeira de todas as coisas. Esta é a visão do design inteligente.
Compreender implica um conhecimento
perfeito. Isto ocorre quando, por exemplo, demonstramos cientificamente que um
triângulo equilátero tem três ângulos iguais. Entretanto, como não possuímos
meios para demonstrar a existência de Deus dessa forma, restringimos nossa
simples compreensão à relação de proporcionalidade antes citada, ou às volúveis
interpretações, muitas vezes espúrias, dos profissionais do clero.
Ora, se Deus é infinito, é também
infinitamente cognoscível, ou infinitamente incognoscível. Sendo, pois, nossa
compreensão finita, qualquer intelecto criado não poderia compreender uma causa
infinita. Assim, é impossível a compreensão em grau infinito, logo, Deus se
torna infinitamente incognoscível.
Ficamos, então, restritos ao conhecimento
natural de um deus apenas pelas imagens dos seus “efeitos”, a menos que optemos,
como a maioria, por qualquer vertente dogmática para confessá-la.
O importante é saber onde parar com as
ficções, com a busca estéril das verdades
humanas, pois seria talvez possível intuir a existência de uma causa primeira
sem conhecer a sua própria natureza, já que os efeitos supostamente pareceriam
evidentes. Poderíamos reconhecer a existência de um deus sem sabermos quem é – sua
incognoscibilidade passaria a ser a própria verdade admitida. Por esse prisma, vamos
concluir que somente o deus incognoscível poderia ser o único e verdadeiro. O design inteligente que perde para a intuição.
[i] O
veneno está na cauda!
[ii] Também
conhecido como Miguel de Villanueva, médico e teólogo espanhol. Por questionar
o dogma da trindade foi queimado vivo como herege por ordem de Calvino em
1553.
[iii] Tornar-se;
vir a ser; transformar-se.
[iv] Íncubo
– que se deita por cima – demônio que adota a forma masculina.
[v] Súcubo
– que se deita por baixo – demônio de aparência feminina.
[vi] Político
e jornalista alemão que se tornou ministro da propaganda e da informação do terceiro
Reich.
[vii] Fé;
a primeira das três virtudes teologais.
[viii] Exposição
sistemática de um determinado conjunto de “verdades” de uma fé.
[ix] Ensino
autoritário da Dogmática.
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