quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A ADMISSIBILIDADE DO DEUS INCOGNOSCÍVEL


Não sendo Deus divisível, pois é teologicamente imaginado uno, eterno, incriado, não poderia guardar relação de natureza com o homem, que é o oposto; sendo, portanto, ininteligível. Surge a improbabilidade da sua existência, concomitante à aplicação da probabilidade pela via multíplice: ritos e religiões, constituindo a pior das ambivalências. Sim, porque, na verdade, a causa primeira de si mesmo não tem obrigatoriamente que ser cognoscível pela via dogmática, pois é impossível, simplesmente, estar ao alcance da nossa cognoscibilidade. Essa causa não pode ser compreensível através do dogmatismo, ainda que seja essa a asserção religiosa. Isca! Fraude cativante! Os dogmas nos brindam com um deus falso e mesmo conflitante.

Nossa composição natural, finita, não infere a natureza simples de uma causa pura e primeira. Mas, através do dogma, tudo fica confortável e simples com a crença. É só fingir que acreditamos e não precisamos nos aprofundar em nada. Em seguida, a razão tende a permear a fé, enquanto que o dogmatismo tende a destruí-la. Velado, vestido em disfarces, sorrateiramente, ao cristalizá-la na forma sectária: In cauda venenum![i].

Quando a causa sui, através da via dogmática, começa a ficar fácil demais para ser compreendida, deixa logo de ser a causa de si mesma: o arcano se desmagnifica e vira um rótulo. Surge o deus-anãozinho dos semissábios, um pobre lacaio sinodal com a missão reguladora da massa ignara. A força superior só poderia existir na metafísica, em mistério, embora o dogmatismo assevere o oposto. Sobre mistério, refiro-me à insondável natureza de qualquer deus, já que indecifrável na sua condição autógena e não no oceano de mistérios banalizados que são inventados pela velhacaria sectária.

No Dicionário Filosófico, Voltaire aborda a questão do dogma até de forma jocosa. Conta que no juízo final o cardeal de Lorena pleiteava a vida eterna, bradando farfalhas, ao decantar seus feitos no concílio de Trento, ao que surgem, repentinamente, umas vinte prostitutas relatando aventuras ocultas com o cardeal. Acontece que, junto ao prelado, aparece também o famoso Calvino, com vanglórias de ter insultado o papa, de combater a escultura, a pintura, ao pedir para ser entronizado junto a são Paulo e para lançar fora o cardeal de Lorena. De repente, brilha uma fogueira e dela sai um fantasma que grita: “Monstro, Calvino! Treme, pois sou Miguel Servet[ii], o que mandaste matar! Por ter, somente, discutido contigo acerca da possibilidade de três pessoas poderem ou não compor uma única substância. Treme, pois!”. Diante disso, a sentença para o cardeal foi o abismo, entretanto, para Calvino, a sentença foi ainda mais rigorosa. Por fim, daquilo que ficou claro no juízo final, nenhuma alma seria julgada por suas ideias ocas e vãs, mas pelos atos praticados, pois essa é a verdadeira justiça. Não por princípios, mas por atos!

Nas fés, desde que nada vem do nada e nada volta ao nada, somente um ato puro que possa existir ou sempre pudesse ter existido, poderia do nada estabelecer o devir[iii] da possibilidade do movimento constante das coisas que se desfazem, transmutam-se em outras coisas e opõem-se à própria nadificação.

Isto é o que podemos concluir de forma pura, entretanto, na visão do dogmatismo, que é fracionário com qualquer deidade, é o início de uma grande peregrinação no deserto da frenação do ser humano. Uma espécie de jugo-fecundação: o dogmatismo como incubus[iv] e o sectarismo como sucubus[v], para que daí surja uma das grandes expressões do irracional religioso, o facciosismo pio.

Existe uma linha divisória, tênue, quase imperceptível, que determina na mente humana a noção do eu; da existência dos corpos externos; da percepção da essência infinita de Deus e que separa dessa noção pura o oceano de falácias que propõe o sectarismo. É nessa linha tão fina que está contida toda a verdade das coisas e essa linha não é pensada, apenas se intui. Sai-se dela e começa a vastíssima aventura da incompatibilidade humana.

Essa causa maior de todo o efeito não teria deixado acesso ao homem mais do que a noção da essência infinita de si mesma; do seu poder ilimitado; da sua benignidade; do seu arbítrio de permitir a atuação do mal, já que os desdobramentos dogmáticos são apenas clericais. Pena mesmo que esse acesso seja apenas pela via dogmática. Logo, como intuir o Supremo? Através do argumento da experiência pessoal? Ora, ora... Isto é para o senso comum. O miserável senso comum que implora uma vida inteira por misericórdia, sabendo no íntimo que não há resposta alguma, mas insiste em enganar a si mesmo na frente do espelho, tornando-se ainda mais cínico. Ficamos mergulhados no silêncio sepulcral que, ingenuamente, insistimos em transformar em música.

É o dogmatismo que tenta colocar Deus num pote de vidro com o rótulo por fora, propondo-o cognoscível. O pote sempre é aberto e as colheradas enfiadas pela glote dos neófitos – turvação e obscurantismo! Então, surge um silogismo: todo dogmático não é confiável; ora, o dogmatismo gera o sectarismo, logo, todo sectário não pode ser confiável. Ainda, recorrendo a um polissilogismo: o que é infinito não pode vir a ser cognoscível; ora, o eterno é infinito; logo, é incognoscível; ora, o que não se pode entender passa a ser inassimilável; logo, o eterno não pode ser visto pelo conhecimento.

O deus do pote com rótulo não pode ser intuído, pois não é puro. É posto para ser introjetado, nada mais do que isso. Toda a propaganda de Goebbels[vi] foi introjetada, conforme a sua própria natureza, o papel imaginário de transportar para as várias instâncias da psykhe os objetos externos e suas qualidades intrínsecas. A religião é a mesma coisa, um processo de incorporação forçada, diferente da intuição, que é o conhecimento imediatista da “verdade” sem a ajuda do raciocínio. A noção da passagem do tempo e a natureza de Deus são intuídas.

Todas as relações humanas, principalmente no âmbito religioso, serão sempre conflitantes. Para equacionar isto, o dogmatismo confere um caráter setorial à religião e o sectarismo se instala, dando solidez a esse vil processo. A pluralidade de diferenças é resolvida debaixo de uma arrumação da fides[vii] para acomodar os antagonismos. Daí então, o meio acomodativo é que os “pássaros” permaneçam em galhos setorizados, mantendo entre si uma relação de horizontalidade, a partir da relação dogmática vertical, imposta pela hierarquia da cúria.

Sendo o dogma um decreto, o nervo ótico tido como modelo primacial e incontestável de qualquer doutrina religiosa, torna-se a última opinião, a verdade absoluta. Numa visão anárquica, é algo de podre no reino das margaridas... Entretanto, quer seja como proposta de verdade contida na Revelação, ou como doutrina arquitetada por teólogos, oriunda de um testemunho escritural, o dogma constitui a dogmática[viii], que por sua vez produz uma sequência: o dogmatismo[ix], atitude renitente, rejeição a qualquer tipo de contestação. Sobre esse tripé, a tendência é contemplarmos uma sombra que se afasta da opinião geral, o espírito da seita. Abjeção da mente humana, torpeza que opacifica o bem maior do raciocínio, o poder de reflexão. Chama-se a isto, em latim, de secta[x], o ovo podre, embrião da prática espiritual mais suja: o sectarismo – qualidade e estado latente do sequaz da intolerância, do cultivo da paranoia espiritualista.

O Princípio só poderia ser intuído, e no plano da compreensão individual. Mas o homem, rejeitando essa condição de limite, se lança a uma prospecção absolutamente infrutífera. Pretende saber a arquitetura do ato puro, ao que bem se aproveita o dogmatismo.

Segundo o argumento do design inteligente, de uma forma imediata, a existência de Deus seria mais perceptível do que a existência do próprio homem. Somente os efeitos da natureza seriam infinitamente mais numerosos do que os efeitos produzidos pelo ser humano e não haveria nenhuma marca para denotar um feito do homem comparável à obra da própria natureza.

Propõe-se que a causa primeira exista acima de todas as coisas que já são e essa causa seria a sua própria existência. Impossível de apreensão como um todo, excede a toda espécie de conhecimento. Ininteligível. Haveria, porém, uma relação de proporcionalidade do conhecimento da criatura para com o Criador. Essa proporção estaria implícita no efeito em relação à causa e na potencialidade em relação ao ato. A priori, sem desprezarmos essa relação de proporcionalidade, seria possível apreender-se a causa primeira de todas as coisas. Esta é a visão do design inteligente.

Compreender implica um conhecimento perfeito. Isto ocorre quando, por exemplo, demonstramos cientificamente que um triângulo equilátero tem três ângulos iguais. Entretanto, como não possuímos meios para demonstrar a existência de Deus dessa forma, restringimos nossa simples compreensão à relação de proporcionalidade antes citada, ou às volúveis interpretações, muitas vezes espúrias, dos profissionais do clero.

Ora, se Deus é infinito, é também infinitamente cognoscível, ou infinitamente incognoscível. Sendo, pois, nossa compreensão finita, qualquer intelecto criado não poderia compreender uma causa infinita. Assim, é impossível a compreensão em grau infinito, logo, Deus se torna infinitamente incognoscível.

Ficamos, então, restritos ao conhecimento natural de um deus apenas pelas imagens dos seus “efeitos”, a menos que optemos, como a maioria, por qualquer vertente dogmática para confessá-la.

O importante é saber onde parar com as ficções, com a busca estéril das verdades humanas, pois seria talvez possível intuir a existência de uma causa primeira sem conhecer a sua própria natureza, já que os efeitos supostamente pareceriam evidentes. Poderíamos reconhecer a existência de um deus sem sabermos quem é – sua incognoscibilidade passaria a ser a própria verdade admitida. Por esse prisma, vamos concluir que somente o deus incognoscível poderia ser o único e verdadeiro. O design inteligente que perde para a intuição.


[i] O veneno está na cauda! 
[ii] Também conhecido como Miguel de Villanueva, médico e teólogo espanhol. Por questionar o dogma da trindade foi queimado vivo como herege por ordem de Calvino em 1553.  
[iii] Tornar-se; vir a ser; transformar-se.
[iv] Íncubo – que se deita por cima – demônio que adota a forma masculina.
[v] Súcubo – que se deita por baixo – demônio de aparência feminina.
[vi] Político e jornalista alemão que se tornou ministro da propaganda e da informação do terceiro Reich.
[vii] Fé; a primeira das três virtudes teologais.
[viii] Exposição sistemática de um determinado conjunto de “verdades” de uma fé.          
[ix] Ensino autoritário da Dogmática.
[x] Seita.
     
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