segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

A RITUALIZAÇÃO DO SEM-SENTIDO

O conhecimento humano não consegue abarcar nenhuma prova da existência de Deus ou da sua inexistência. Só pressupostos de ambos. Como conceito primário e mínimo da existência, inferimos normalmente Deus como a causa primeira do universo, a Causa Sui[i]. Quando Lutero declara que “a razão é a prostituta do Diabo”, representa o golpe de morte na questão filosófica sobre a existência de Deus. O reformador, monge astuto, propõe-nos o credo quia absurdum est[ii]. Bem, Lutero não era em nada melhor que os clérigos de hoje.

Com o vazio existencial, que é próprio da natureza humana, surge o impulso básico natural da busca pela divindade desde os primórdios. Esse ato súbito que escapa do controle do indivíduo é de questionável necessidade biológica e psíquica. É o impulso natural da criatura em busca do criador. No meio desse vão, inicia-se a formação de uma crença qualquer, instala-se um processo que propõe respostas lúcidas. A esse complexo processo, sem qualquer interferência divina, sendo a verdade fatalmente relativa do ponto de vista do sujeito, e tendo como fim último evitar o caos, dá-se o nome de religião. O caos, simplesmente, porque “se Deus morreu, tudo é permitido”. Ora, sem fé suspeita-se que a moral não se justifique, o que poderia gerar a anomia[iii]. Para Durkheim, o risco de dissolvência das normas sociais seria produzir o estado de ruptura e caos social. Então, Deus é mesmo necessário, mas como o homem não vislumbra o criador sem a máquina litúrgica e dogmática, façamos Deus à nossa imagem e semelhança. Isto quer dizer, vamos montar a peça, pois os fins justificam os meios – os deuses sempre atuam no palco do espetáculo da farsa –, da brutalidade humana.

Há milhares de anos, um beato achou que poderia se comunicar com os bichos a fim de tirar partido deles. Procurou um macaco e passou horas balbuciando coisas dúbias diante dele. Gesticulava com a ênfase de um preceptor. Durante todo o tempo, o macaco coçava a cabeça, dava uns pulinhos discretos, coçava o traseiro e, por fim, num gesto estranhíssimo, impossível de ser descrito, foi embora, explodindo numa gargalhada final com os seus dentes amarelos à mostra. O beato prosseguiu desanimado até que se deparou com um asno. Repetiu a mesma coisa com o bicho por um longo tempo e o asno, em sinal de aceitação, resolveu segui-lo. No caminho, cada novo asno que surgia passava a integrar o grupo irmão. Assim, o sectarismo foi inventado...

Hoje, milhares de anos depois desse caso infeliz, existem multidões de homenzinhos manipuladores, com a mediocridade sendo expulsa pelos poros, formando exércitos de seguidores e nadando em dinheiro. A religião mais sedutora, sem dúvida, é aquela que promete prosperidade ao povo, assim como os favores aos seus líderes, os mesmos que celebram suas negociatas sobre altares, oferecem bênçãos, distribuem dons e, às vezes, a gente ouve falar que copulam com algumas irmãzinhas.

No probabilismo, jogamos com a hipótese mais cética de não se poder atribuir probabilidades a todas as coisas e a hipótese mais dogmática de atingirmos a certeza dessas coisas. Na segunda concepção, é provável que um deus nos ouça através da nossa criatividade fideísta cega. Quanto maior for o grau de estupidez e ingenuidade alcançado por nós, mais atrativa poderá ser a nossa fé.

No mercado do fideísmo, grandes oportunidades são abertas para os que esperam as coisas caírem do céu. No balcão, alguns mimos que conduzem a Deus: o rosário eletrônico que funciona com baterias e que, apertando uma tecla, repete as rezas por você – bastante prático; o pastor americano Robert Tilton, oferece ao público pelo correio um belo pôster com a sua cara equina, mais um calendário de vinte e um dias para o início de uma série de milagres, por ofertas que vão até bem mais de mil dólares; já o Vaticano se prontifica a enviar um pergaminho com certificado de aprovação, decorado em letras góticas, com a bênção papal, pela irrisória quantia de trinta e cinco dólares. Existem ainda, por todo o mundo, centenas de engarrafadoras de água do rio “Jordão”, pronta para envio, com certificado de autenticidade em ouro e o mesmo acontece com vidrinhos de terra do “Sinai”. Pastorecos americanos enviam chaves de plástico pelo correio para abrir a porta das bênçãos; rosas e alianças ungidas são ofertadas aos fiéis depois dos cultos em algumas igrejas; lenços ungidos, ainda, para aplicar sobre as enfermidades e muitos amuletos mais... Autênticos exemplos da religião como paranoia. Mas o povo, doente da alma, precisa ser feliz. Povo desafortunado, que precisa constantemente de um pajé urbano.

O ideário pentecostalista assenhoreou-se do Brasil, notadamente do Brasil xucro[iv]. Nos entremeios da pobreza e da ignorância é que estão as melhores vítimas para serem exploradas. O lema sedutor aplicado pelos líderes ao rebanho infeliz - “dinheiro, saúde e prosperidade”. O rebanho já nem é infeliz, é nauseabundo!

Um fato que desperta a maior das curiosidades, no meio de tantas dissensões doutrinárias, entre as centenas de denominações protestantes, é que há uma harmonia perfeita quando se fala em dinheiro. Certa vez, no passado distante, perguntei a um pastor sobre a questão da guarda do sábado pelos evangélicos. A resposta foi a de sempre, a mesma: “Filho[v], os adventistas do sétimo dia se dizem evangélicos, mas insistem em guardar o sábado que é uma coisa da lei de Moisés e foi abolida por Jesus... Os verdadeiros filhos de Deus reservam o domingo para o espírito!”. Em seguida, pensei: “Onde será que esta besta foi buscar na Bíblia a guarda do domingo?”. Disse-me o tal mais: “Você ainda não entendeu que Jesus morreu na cruz para nos libertar do peso da lei?”. Ao que, novamente, indaguei: “Então, já que não é para guardarmos nada da lei mosaica, por que temos que dar o dízimo?”. A resposta foi uma onomatopéia do engolir em seco: “Blurp!”... A retórica de um grimo da velhacaria sectária.

A torpeza é a seguinte: nos tempos do apóstolo Paulo, a Igreja dizia-se mais do que militante, era triunfante. Daí então, dizem que as coisas aconteciam, dava-se tudo ao próximo para que ninguém tivesse falta de coisa alguma. Não dez por cento apenas. Os judeus entregavam o dízimo aos sacerdotes do Antigo Testamento e não eram dólares, mas o resultado das colheitas. O que acontece hoje é bem diferente. Os líderes espirituais, sutis, aterrorizam o rebanho acuado com declarações bíblicas dos judeus da antiguidade: “Roubará o homem a Deus? Todavia vós me roubais e dizeis: em que te roubamos? Nos dízimos e nas ofertas alçadas”[vi]. Leiloeiros! Oportunistas abençoados...

Lembro-me, há muitos anos, quando fui adepto convicto da neurose pentecostalista, meu filho era criança e adoeceu. O único dinheiro que tinha para pagar ao médico era o dízimo guardado numa latinha com desvelo extremo. Minha mulher e eu tememos o castigo por “roubar ao Senhor” e decidimos investir na fé, não usamos o dinheiro. Sim, porque o Deus que nos foi apresentado poderia ter um rompante e jogar um raio na cabeça do meu filho[vii]. Felizmente, isso não aconteceu. Meu filho recuperou-se sem o médico. Alguns poderiam dizer que venci a prova e Deus poupou meu filho. Que pai fervoroso! Tempos depois, vi-me um pai inconsequente, louco e fanático, podendo ter acontecido algo ruim por causa do sectarismo. Mais adiante, ele voltou a ter novos problemas de saúde. Desta vez, fui até a latinha e paguei o tratamento ao médico. Meu filho ficou bom –, deixei de ser paranoico; de presentear a pastorada com o dízimo e acabei com a festinha deles. A adoção do dízimo hoje, ou melhor, a extorsão sobre o pobre cristão, é de caráter obsceno tipificado. Se os crentes são coagidos a dar o dízimo, que guardem toda a lei! Caso queiram guardar a lei, que seja na íntegra.

Ainda, na mesma passagem bíblica, lemos: “Trazei todos os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na minha casa, e depois fazei prova de mim, diz o Senhor dos exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu, e não derramar sobre vós uma bênção tal, que dela vos advenha a maior abastança”. Ora, será que os crentes não enxergam a sua própria realidade? Onde está a abastança dos protestantes? Seria abastança espiritual? Mas o texto se refere exclusivamente à abastança em vida, que era a meta de Yahweh para o seu “povo eleito”, o judeu. O Deus do Antigo Testamento não prometia céu nem inferno. As promessas eram de prosperidade, saúde, paz e a terra de Canaã. Quantos judeus já vimos na penúria extrema, moradores de rua ou em barracos partilhados com ratos? Será que Yahweh os protege quando recebe o dízimo deles? Não. Simplesmente, eles “se protegem”! Porque são mais inteligentes do que os cristãos, ao entenderem com perfeição o que significa grupo social. Melhor ainda, o que significa “grupo étnico forjado a ferro e fogo”, imposto através da capa de tradição da Torah. Nacionalismo religioso! Isso é coisa de gênios antigos: grupos autóctones na antiga Mesopotâmia vislumbrarem a possibilidade de se tornar nação escolhida, criando leis, inscritas num livro santo. Uma ideia genial de um povo eleito por uma força monoteísta, extremamente bem construída por eles para, em seguida, dominar o mundo!

Então, os pastores protestantes dolosos pegaram carona: a lei que era para os judeus da Antiguidade, passou a ser “lei” também para os cristãos... Assim triunfou a pastorada criativa, que hoje até parcela o dízimo no cartão de crédito. Mas, se o povo gosta de ser enganado, por que defender o povo? Os fiéis não querem ajuda. São autossuficientes. Santificação já não importa como no passado, querem pagar por ilusão... Acham-se salvos e isto é o bastante.

Todas as agremiações eclesiásticas protestantes têm em comum o pagamento do dízimo que era imposto, exclusivamente, ao povo judeu da Antiguidade. Hipócritas e tendenciosos! Pregam que Jesus cumpriu a lei em si mesmo para nos libertar, desobrigam os fiéis de cumprimento da lei, mas mantêm o jugo do dízimo sobre os pobres! Sobre aqueles que, muitas vezes não têm o que comer, mas são leais na entrega dos dízimos aos seus líderes, abutres da fé, que aterrorizam o povo ingênuo. Como se, de repente, esse povo deixasse de abrir a bolsa e Deus o castigasse por não cumprir o dever de dizimista. É aí que se instala o infame sectarismo – a porcalha[viii] da ditadura dogmática –, que não deixa de ser uma covardia e um truque de conveniência aplicado no pobre.

Surgem os clubes denominacionais protestantes, empenhados numa cruzada para recolher o dinheiro e engordar as instituições. Lei só do dízimo. Lógico, como não existe mais a Igreja triunfante (onde seus fiéis morriam no Coliseu), o jeito é manter a aparência e proliferar com os movimentos de crendice popular. Lei da conveniência! Por isso, o textus receptus: a Bíblia como cartilha.

É fato antigo a exploração dos sentimentos religiosos e, no panorama atual, ela encontra lugar entre os desfavorecidos. A falta de instrução média, o desinteresse completo do povo na aquisição de saberes, constitui o adubo do sectarismo, pois é nessa terra inculta que as sementes de má-fé vão germinar. É nessa condição, igualmente, que as seitas inoculam doses de elementos estratégicos para o processo de massificação engendrado pela auri sacra fames[ix]. Dinheiro! Mais dinheiro para o Senhor!

No Brasil, há bem pouco tempo, tivemos um presidente da República eleito pela maioria do povo evangélico e, pasme-se, o candidato assumia, para fazer sua campanha, o púlpito de uma importante “assembleia de santos” cheia de hipocrisia... O pior é que essa igreja teatral sempre afirmou que os políticos jamais subiriam ao seu púlpito – um vir a ser de picadeiro circense.

Felizmente, já estamos no crepúsculo desse modelo atrasado em que o povo menos instruído é a vítima, pois ele já percebe a fraude em que foi envolvido por tanto tempo. No princípio desse novo século, certamente haveremos de presenciar a ruína de todos os valores cobertos de ranço[x] e brindaremos por uma forma menos massificada, talvez mais individualizada de intuir o deus que bem entendermos. Ou, até, de não intuir nada, considerando-se o livre-arbítrio como um pressuposto metafísico de botequim, direito que pertence à esfera personalíssima do indivíduo. Isto, diga-se de passagem, é um problema de cada um, assim como o pagamento das contas no final do mês. Então, posso intuir ou não o que quiser e não tenho que dar satisfações a cristão nenhum.

Uma das coisas mais desconcertantes que já li, foi quando, às vésperas da sua coroação, Napoleão Bonaparte, mantendo a sua habitual atitude arrogante, dirigiu-se ao papa: “Porventura, Vossa Santidade deixou de lembrar que o povo não precisa de Deus, mas sim de religião?...”. Arrazoando, para que Deus sem religião? O povo não alcança tal feito. Entretanto, Marx, ao falar sobre o ópio do povo, descartou não somente Deus, mas toda e qualquer forma de religião. Quer seja como Napoleão, como Marx, ou mesmo como um religioso qualquer, vale pensar, antes, na desconstrução de toda forma de sectarismo para dar lugar à construção de uma paisagem moral, íntima, que nos faculte o direito inalterável e inalienável de entendimento do particular ao universal.

A partir do que começaremos? Simples: da tolerância com o próximo e de um banho completo para remover a inhaca[xi] do sectarismo. O começo, obviamente, não pode ser através de mitos e histórias como as do dilúvio, ou mesmo a lenda adâmica. Aliás, por falar em dilúvio, sempre tive a curiosidade de saber se algum casalzinho de cupins se apresentou para embarcar na arca...


[i] Causa de si mesma. O primeiro a ser, logo, incriado.  
[ii] Creio porque é absurdo.  
[iii] Do grego anomos – sem lei. 
[iv] Grosseiro; fossilizado; imbecil; estúpido; parvo.
[v]Filho”, porque eles precisam ser “carinhosos”, mas devem antes estar acima do rebanho, agindo sempre como psicólogos que não perdem o controle da situação, aí então, é filho, amado, você, etc. Sempre acima, no púlpito, em cena no pedestal. 
[vi] Malaquias 3:8.       
[vii] Eu desconhecia que Deus só jogava os raios na cabeça dos judeus, pois eles é que estavam obrigados a cumprir a lei.   
[viii] Este é um neologismo da minha predileção.  
[ix] A sagrada fome do ouro – a ambição. 
[x] Alteração das substâncias gordurosas em contato com o oxigênio.
[xi] Mau cheiro; fedor.


ATENÇÃO: Todos os direitos reservados


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A INVENÇÃO DO PROTESTANTISMO

    Seria inadmissível não entremearmos Max Weber[i], com sua obra Die protestantische ethik und der geist des kapitalismus[ii], a este diminuto e despretensioso histórico.
    O movimento protestante evoca e nos remete, mais do que qualquer outra vertente religiosa, ao estudo da sociologia da religião, pois o protestantismo é muito mais um fato social do que uma ação espiritual. Existe qualquer coisa entre os seus praticantes que cultiva o espírito do capitalismo, com certeza, um tanto contrário ao espírito do cristianismo primitivo. Segundo a tese de Weber, a mola propulsora seria qualquer forma de ascetismo. O cristão, quando se “aparta do pecado” em busca de santificação, ao interpretar a relação de trabalho como uma forma de honrar a Deus, tipicidade cultual, aciona a motricidade capitalista. Isso ocorreu, sobretudo, no universo das seitas pietistas, calvinistas; em alguns segmentos metodistas e batistas. Com a Reforma surge, portanto, uma nova ordem social.
    A Reforma protestante, como já comentado, foi iniciada a partir do protesto de Lutero ao fixar no portão da Igreja de Wittenburg as suas 95 teses. A base da cosmogonia protestante foi lançada e a alteração da história tornou-se muito profunda desde então. Em meio ao oceano de seitas protestantes existentes, curiosamente, há uma série de pontos que as cimentam de maneira muito sólida. O trilátero – Bíblia, fé e graça. A Bíblia, ferramenta teocrática única, passa a ter autoridade suprema e infalível, a sola scriptura. A salvação só pode ser alcançada a partir do consummatum de Jesus Cristo, que passa a ser reconhecido como o único e suficiente salvador da humanidade. A partir daí, a ressurreição é garantida àqueles que seguem o Cordeiro de Deus. Os cristãos decidem congregar-se para estudar as escrituras, celebrar a ceia e criam a prática do culto público periódico.
    O início não poderia ser outro, a confissão luterana. Suas bases estavam fincadas no sacramento do batismo; na absolvição dos pecados através do sacerdote; na presença do corpo de Cristo na eucaristia; na realidade do livre arbítrio do homem; no batismo de crianças; nas vestes litúrgicas com seus paramentos e muitas outras tradições particulares. Em suma, o reformador Martinho Lutero não se desvinculou completamente das tradições católicas, mas deu o passo mais largo para o que seria visto como a modificação da estrutura da religião cristã. A religião do livro. A religião do medo, da bibliolatria.
    A corrente que prosseguiu o movimento foi a do reformista Zwinglio. Sucederam-no Bullinger e Farel, até que as rédeas do movimento foram tomadas por Calvino, legando-nos a obra mais completa e sistemática da Reforma, Institutio Christianae Religionis, publicada em 1519. O sistema de governo eclesiástico organizado por Calvino era o presbiteriano, uma democracia representativa que serviu de paradigma para estabelecer o governo civil na Suíça.
    Para se diferenciarem da Igreja Luterana, foram assentados os cinco pontos cardeais do calvinismo, recebendo esse movimento novo o nome de Igreja Reformada. Essa agitação teve suas origens na Alemanha, França, Holanda, Suíça e Hungria, com o calvinismo só admitindo dois sacramentos – o batismo e a santa ceia. Em seguida, ainda sobre as bases doutrinárias calvinistas, John Knox solidificou o presbiterianismo na Escócia.
    Desde Lutero, um tipo de atitude capitalista se desenvolveu: o motivo de que o cumprimento dos deveres humanos é o autêntico meio de vida aprovável aos olhos de Deus. O resultado dessas circunstâncias pesa em favor dos protestantes na luta pela existência econômica. Enquanto, desde o passado distante, os católicos tinham tendência ao aprendizado do saber humanístico, os protestantes se inclinavam para as atividades artesanais, para as fábricas, subindo da mão de obra especializada para as posições administrativas. O conceito de vocação veio a ser considerado como doutrina central em todos os segmentos reformados. Em suma, a vocação protestante não era como a católica que alimentava a imagem do asceta monástico, mas o cumprimento dos deveres impostos ao homem pela sua posição no mundo.
    A Reforma teve como efeito mais significativo para o protestantismo a justificativa moral para as atividades seculares. Daí, então, o moderno espírito do capitalismo ter se formado. O moralismo foi enfatizado enormemente e com ele, também, a sanção da religião, robustecendo as atividades seculares na esfera vocacional. Isso descambou no controle social religioso.
    Nos tempos da Igreja primitiva, os cristãos não se importavam muito com as atividades seculares. Viviam mais com os nutrientes de esperanças futuras e escatológicas, pois esperavam, apenas, a vinda do Senhor. Não prevalecia entre eles o ideal de trabalho, só importava o reino de Deus. Nos tempos de Martinho Lutero, essa interpretação sofreu alterações, tendo os valores da vocação se acentuado. Nessa abordagem, o homem deveria se adaptar à sua vocação, ao percebê-la como uma ordem divina. Ora, esse novo direcionamento, calcado nos valores religiosos, determinou, ainda no estágio primitivo, um ressurgimento muito mais robustecido do espírito do capitalismo.
    Qualquer manifestação espiritual que aspire ao “cristianismo genuíno” deve ser singela, autêntica, transparente e amorável. O resto é engodo religioso. O homem, assim, buscando servir a Deus, mas ainda no espírito sectário, prosseguiu com as agitações reformistas que promoveram as grandes divisões doutrinárias.
    En passant, na Inglaterra, lá pelos idos de 1560, surgiu o movimento congregacionalista, tendo como seu criador o pastor Richard Fitz. Eram separatistas e se opunham aos presbiterianos. No século XVII, chegou à América o navio Mayflower, sob o comando do famoso capitão Miles Standish, trazendo os pilgrims[iii]. Estabeleceram-se em Plymouth, com o objetivo de fundar colônias ligadas ao governo britânico, dentro de um sistema teocrático presbiteriano, mas preservando a intenção comercial. Mais tarde, com diferenças doutrinárias claras entre grupos concregacionalistas expandidos, houve a fundação da Igreja Congregacional da Nova Inglaterra. Tudo isso debaixo de um rigoroso pacto social.
    O espírito do capitalismo de que fala Weber, totalmente ligado ao calvinismo e às seitas puritanas da época, é o responsável direto pela orgia protestante dos nossos dias no que diz respeito à fraude da teologia da prosperidade[iv]. Óbvio que a organização capitalista não nasceu com a Reforma, é um processo muito mais antigo. Mas o que nos interessa, assim como a Max Weber, são os efeitos qualitativos desse fenômeno social e a expansão quantitativa pelo mundo através do poder da religião. É para quem precisa dela e do mito, como falamos no início deste livro, que a religião foi criada. Enxergando através do mito é que se vê o destino dos iludidos.
    A doutrina cruel da predestinação foi o dogma principal do calvinismo. De julho de 1643 a fevereiro de 1649, o parlamento inglês criou um concílio na abadia de Westminster para estabelecer nova base doutrinária, teocrática, com o fim de dar sustentação à Igreja estatal. Foi a Confissão de Westminster. No seu estatuto, vê-se que o homem perdeu completamente a capacidade de executar qualquer ato espiritual que o conduza à salvação. Na “lama do pecado”, esse homem não tem como chegar à conversão. Por um decreto insondável do deus calvinista, parte da humanidade é predestinada à vida eterna e a outra parte à morte eterna. Por essas e outras, é que passei a interpretar o deus da construção bíblica como injusto. Os sortudos foram escolhidos antes mesmo da fundação do mundo. Então, que se mordam os excluídos. Os eleitos ficam por conta do amor desse deus inventado e da sua vontade, já os condenados se prestam para projetar a glória desse deus. Então, fica assim: a Divindade não é homem para que seja obrigada a dar satisfações a qualquer um. Trata-se de algo como “decisões insondáveis”. Dessa forma, foi do agrado da Divindade poder preterir, condenar à desonra o ímpio, para que a sua gloriosa justiça recebesse todos os louvores dos homens. Porém, a todos aqueles em que aprouve a esse deus predestinar à vida eterna, tiveram seus corações de pedra transformados e sua vontade mudada na direção do que é reto e justo... Aí, a toda a humanidade de dura cerviz, aos homens maldosos, a Divindade cegou-os e endureceu de vez os seus corações para que não tivessem qualquer entendimento, entregando-os à própria luxúria e ao poder das trevas. Desta feita, John Milton[v] se expressou em relação a esse dogma do terror: “Ainda que eu seja mandado para o inferno por isso, essa tal vontade divina jamais obterá o meu respeito”.
    Na ótica calvinista e, de certo modo, na visão protestante em geral, até os dias presentes, aquele que permanecer afastado da “verdadeira Igreja” jamais será considerado parte do grupo dos escolhidos de Deus. Usa-se até um provérbio dos antigos para manter o susto-sacro nas igrejas de hoje: “Tomem cuidado, pois a brasa fora da fogueira costuma apagar...”. Aliás, em toda a minha vida, este foi o dito mais eficaz que vi para incutir o terror-sacro nas santas criaturas de Deus. Sacros-líderes-infames, sacripantas!
    O calvinismo foi permeado pelo conceito de que Deus, ao criar o mundo, arquitetou que todas as coisas fossem predeterminadas com objetivo de ampliar a sua glória. Não a criatura por si mesma, mas a organização das coisas materiais sob o desígnio divino. Inevitavelmente, o calvinismo trouxe à tona um novo problema: a dúvida quanto à própria salvação. Como se ter certeza desse estado de graça? O que fazer se até Cristo, de acordo com os calvinistas, teria morrido apenas pelos eleitos? Risum Teneatis![vi] É a insanidade predestinista. O Sermão da Montanha é dirigido a todos!
    O que eles tentaram fazer, na realidade, foi montar um grupelho de eleitos, uma aristocracia dos separados, um créme-de-la-créme dos santos... “Serei eu um salvo?”, imagine-se o desespero da dúvida. Dessa paranoia já fui vítima e bem sei os estragos que tais doutrinas me causaram no passado. Marcas e sequelas profundas que me acompanharam por anos a fio, até que me livrei delas. Mas o consolo dos predestinacionistas era formulado assim: “Devemos estar satisfeitos apenas em termos o conhecimento de Deus haver feito a escolha entre os homens”. Os cristãos salvos estão no mundo apenas com o objetivo de aumentar a glória de Deus. E só. Então, começa uma questão de batalha interior – cada um que desenvolva o senso de autoconfiança na sua própria salvação, ou que se dane de vez. Se esse tipo de autoconfiança vacilar, é o resultado de uma fé anêmica. Logo, a graça é imperfeita. Ora, na graça imperfeita não há santo que aguente.
    O papel de tal projeto sombrio era forjar os atletas da fé, os santos-medalhistas-olímpicos, responsáveis por gerar os heróis do capitalismo. Gigantes da fé que tivemos por herança: dos pastores eletrônicos aos deuses do púlpito, que nos conduzem às soluções para os tempos difíceis, a vergonhosa teologia da prosperidade. Os heróis da fé que travestiram o reino de Deus num belo espetáculo de pirotecnia, luzes e cores dolarizadas. O cristo-atômico! Porém, deve-se apenas aos ingênuos a existência do canibalismo clerical. Mordam-se os calcanhares, ó povo tolo! Tudo sofre em nome da necessidade psicológica e emocional da religião.
    Quando os crentes calvinistas começavam a manifestar muita convicção, lá vinha a cúpula doutrinária (na concepção do devoto era o Asmodeu) e jogava milhões de sementes de incerteza sobre os ascetas... Desmoronava, então, o pathos salvacionista, porque só assim a sombra do clero poderia estar no controle das coisas. O maior troféu de tudo isso representava a certitudo salutis[vii] que produzia uma positiva depuração de ideias, despreocupando o crente de mergulhar na danação eterna. Não havia outro meio de aliviar a carga pecaminosa e conquistar a certeza da eleição se não fosse através da prática do ascetismo. Porém, do ascetismo laico intramundano. A existência da fides efficax[viii] era o passaporte para a obtenção da certitudo. A observação da conduta de cada crente era a forma de controle social mais vil, desigual e covarde de que se tem notícia. O calvinista ficava na condição de criar para si a convicção da salvação ou de se confundir todo em meio ao pavor da condenação. Era a completa monitoração do estado de graça. O verdadeiro arrependimento seria a expressão da conduta com retidão, uma vez que o calvinismo alimentava a ideia da prova de fé do indivíduo através das atividades seculares, o oposto direto da contemplação.
    Recuando um pouco no tempo, prossigamos com a história da Igreja Anglicana e Episcopal. Em 1527, na Inglaterra, aumentaram as tensões religiosas e políticas. O rei Henrique VIII, casado com Catarina de Aragão, estava sem sucessor para o trono inglês. Mary Tudor aspirava à ascensão ao trono, mas como não havia reinado nenhuma mulher na Inglaterra até então, foi o prenúncio de uma grave crise dinástica. O rei, ao tentar obter do papa o divórcio de Catarina de Aragão, acusou-a de ser estéril. Thomas Wolsey[ix], partidário de uma política bastante confusa, ora absolutista, ora democrática, apresentava-se como amigo do povo, do monarca e difusor de novas ideias. Queria o matrimônio de Henrique VIII com a filha de Luis XII, com o objetivo de obter a aliança da França com a Inglaterra. Henrique VIII, então, tornou público seu casamento com Ana Bolena em 1533. Para evitar a anulação do casamento com sua favorita, fez com que o Parlamento votasse uma lei, em 1534, a Ata de Supremacia, que impedia Roma de revogar as decisões da sede episcopal de Canterbury. A Ata de Supremacia legalizava a constituição da Igreja Anglicana, mantida assim até os dias de hoje.
    Durante o reinado de Elizabeth I, houve grandes mudanças em prol da Reforma protestante. Em 1559, o parlamento aprovou uma nova Ata de Supremacia e Mathew Parker foi nomeado arcebispo de Canterbury. Em 1563, foi editada a declaração de fé oficial da Igreja Anglicana, através de trinta e nove artigos, afirmando-se protestante de tendências calvinistas. Em seguida, iniciaram-se os conflitos previstos e as divisões se assentaram na cúpula da Igreja. Firmaram-se dois setores, os não-conformistas (puritanos de tendências presbiterianas e congregacionalistas) e os separatistas (crentes congregacionalistas já formados, batistas, quakers e seitas marginais). Nos dias de hoje, é comandada pelo patético arcebispo de Canterbury. A Igreja Anglicana passou a se dividir em “Igreja alta”, de fundo católico-britânico e a “Igreja baixa”, de base evangélica.
    Nos idos de 1520, houve o período do surgimento de igrejas de perfil independente, antagônicas à Igreja estabelecida. Algo como uma reação contra o absolutismo da religião estatal. Movimento dissidente da religião dominante, em tudo contrário às autoridades eclesiásticas, que abriu caminho para a autonomia da igreja local. Ocorreram nessa época as primeiras tendências de cunho laicizante. Autonomia plena no que se refere à independência do batismo e demais atividades da Igreja com governos locais dentro do conceito restauracionista. Entre 1525 e 1536, eclodiu o movimento anabatista na Europa. Conrad Grebel, Felix Manz, Menno Simons[x] e Baltazar Hubmayer foram os patronos da Igreja Menonita. Hubmayer, em razão de ter formado as primeiras comunidades agrícolas cristãs, foi queimado vivo pelo governo austríaco e sua esposa afogada no rio Danúbio em 1528. Os anabatistas foram perseguidos odiosamente pelos católicos e, como se não fosse pouco, também pelos “irmãos” protestantes...
    Os crentes menonitas reprovavam o batismo de crianças, as imagens de adoração, os sacramentos, os credos, o serviço militar (atitude seguida pelas atuais Testemunhas de Jeová) e, ainda, se recusavam a participar do governo civil. Houve a incorporação dos primeiros revolucionários da santidade, pois obrigavam seus tolos seguidores a afastarem-se das paróquias ditas corruptas, ao mesmo tempo em que criavam as comunidades agrícolas independentes.
    Dentro dessa tigela[xi] anabatista foi criado um movimento secundário, os irmãos hutteritas, liderado por Hans Hut e Jacob Hutter. Foram os baluartes das primeiras sociedades comunistas, pena que logo entraram em choque doutrinário. Quanta insanidade a autoria do hutterismo. O próprio Hutter acabou assado na fogueira por propagar um tipo estranho de ascetismo agrícola.
    George Fox[xii], em 1646, teve uma “experiência milagrosa” com Jesus, através de uma paranoica iluminação interior, que lhe apontou com precisão o caminho da verdade, permitindo-lhe lançar as bases do movimento que deu origem aos quakers. Impressiona-me o fato desses santos obstinados conseguirem, sempre de uma forma misteriosa, a submissão do povo. Então, através da insegurança do falso, da ilusão do novo, das revelações originais – herdamos o devir da vulgaridade.
    George Fox fez oposição aos sacramentos, à liturgia, aos clérigos profissionais e ao formalismo vigente. Iniciou a carreira como pregador laico e fundou, em 1652, a Sociedade dos Amigos, com a finalidade primeira de vigiar a conduta dos fiéis e, a partir daí, estabelecer as diretrizes convenientes para o envio de missionários pelo mundo.
    Na perspectiva protestante, o Diabo é o representante do mal. Não se cogitam antecedentes, fazendo-se crer o próprio Belzebu como o criador do mal. Mas o Diabo apenas teria alcançado e se valido do mal até hoje. Assim, resta-nos concluir o mal como uma criação divina para chegarmos à percepção de que, sem o mal, nunca reconheceríamos o bem. Logo, o Criador teria esculpido o mal para que o bem se sobressaísse, simplesmente pelo fato do bem ser algo raro e pretendido. Com base nessas querelas, o protestantismo produziu muitas divisões doutrinárias, mas por que a medida de intensidade do bem foi estabelecida pelo mal?
    Na perspectiva de Foucault, “homens dominam outros homens para que haja diferença dos valores e classes dominam outras classes para que nasça a ideia de liberdade”. Ora, o mal guarda relação direta com o poder e o mesmo não observamos com o bem. Se a verdade não existe fora do poder, segundo Foucault, pois pertence só a esse mundo, em cada sociedade que tem o seu regime de verdade, o mal passa a ser a maior das verdades. Então, onde fica a verdade absoluta e para que o bem? Veleidade?
    Numa certa medida, os quakers abriram o caminho para o que se pode chamar de família batista. O berço do movimento batista, que surgiu no início do século XVII, foi a Inglaterra. A verdade é perceptível, entretanto, os clérigos criativos a denominam de várias maneiras: igreja isso, igreja aquilo, minha igreja, a verdadeira igreja do Senhor, e outras mais...
    A base doutrinária dos batistas, ainda que ao compartilhar os princípios com os anabatistas, era a adoção da Bíblia como única autoridade de fé e prática, o batismo por imersão em idade adulta, a separação da Igreja do Estado, assim como a liberdade de culto.
    A primeira Igreja Batista dos Estados Unidos se formou em Rhode Island, em 1639, fundada pelo pastor Roger Williams. Posteriormente, suas bases se estenderam até Newport, New England, Rehoboth, Swansea, Boston, Kittery, New York e New Jersey. Em 1670, surgiu a Associação dos Batistas Gerais dos Sete Princípios em Rhode Island. Posteriormente, a expansão para a Virginia e Pensilvania. Em 1727, criaram a Associação dos Batistas Originais do Livre Arbítrio, Batistas Gerais e assim foi a maneira como se perpetuaram.
    Outro grupo foi o dos Batistas do Sétimo Dia. É desnecessário dizer que seu dia de culto, ao invés do domingo, passou a ser o sábado. Foi essa a primeira Igreja sabática em solo americano, fundada em 1671 pelo reverendo Stephen Mumford. No século XIX, foi organizada a primeira Conferência Geral dos Batistas do Sétimo Dia em Wisconsin. Em 1845, foi formada a Sociedade Missionária dos Batistas do Sétimo Dia.
    Dignos de nota foram os Batistas Particulares, oriundos da Inglaterra do século XVII e tendo como líder John Spilsbury. A salvação pertencia somente aos eleitos e os consagrava calvinistas acima de qualquer suspeita. A partir de 1640, começaram a praticar o batismo por imersão e repudiaram a forma por aspersão. Os santos irmãos logo criaram algo para conferir solidez às peripécias dogmáticas vigentes, que foi a Confissão Batista de Londres, com os seus cinquenta “inspirados” artigos de fé.
    O papel primordial das várias seitas batistas foi o contínuo desprestígio dos sacramentos como via de salvação do homem. Somente a revelação do Espírito Santo capacitaria o homem à salvação por Cristo. Vazio da luz interior do espírito de Deus, o homem natural, ainda que conduzido pela razão, viveria na carne e essa irreligiosidade era o alvo da crítica mordaz dos batistas. O movimento batista pretendia ser a real Igreja neotestamentária, como todos os outros movimentos projetados na conduta ingênua e melíflua de seus membros... Todos, é lógico, pretendem ser a verdadeira Igreja de Jesus Cristo. Aliás, todas as igrejas são boas, mas a minha é a que mais se aproxima da doutrina dos apóstolos... 
    Outro importante movimento protestante foi o pietismo. Nascido na Alemanha, na segunda metade do século XVII, teve como líderes-fundadores os luteranos Jacob Spener[xiii] e Hermann Francke[xiv]. Esse novo empreendimento propunha como ponto de partida a doutrina da predestinação, confusamente mesclada a um sentimento de ascetismo e situava-se como um desdobramento piedoso das doutrinais originais do calvinismo.
    O pietismo passou a ser uma reação contra o luteranismo escolástico através da busca da piedade permeada por uma espiritualidade exagerada. Em busca da praxis pietatis[xv], diluía-se toda a ortodoxia da doutrina cristã. Seus adeptos, em função de um modus vivendi[xvi], organizaram-se isoladamente em conventículos onde Judas, volta e meia, esquecia as botas. Afastados de tudo e isolados de todos na busca da santificação, somente os frutos da fé prevaleciam. Atrelados a uma filosofia que cultivava uma profunda comunhão com Deus ainda nessa vida, com ascetismo intenso, os pietistas pregavam a possibilidade de existência vitoriosa sobre as tentações mundanas. Esse novo direcionamento comportamental produziu a inevitável prática da demonstração de uma conduta baseada em sinais exteriores, ou seja, uma competição interior na pista da santificação exteriorizada pelo viver da aparência.
    Aliás, nos primeiros anos do século vinte, Gunnar Vingren e Daniel Berg[xvii], dois missionários sacrossuecos, emergiram da Igreja Batista europeia, vindo para o Brasil com a missão de estruturar o pentecostalismo. Esses heroicos líderes-fundadores da “Igreja renovada”, como em todas as religiões, é claro, também tinham que parecer santos. Somente os santos e conquistadores como Colombo conseguiam colocar um ovo em pé. Os primeiros faziam milagres, o segundo já foi mais genial: deu uma “quebradinha” no ovo contra a mesa para que ele não virasse... Aconteceu, então, aqui pelo Brasil, o que Max Weber classificou como êxtase religioso neuropatológico. O princípio do estado semiconsciente do êxtase, já virando uma religião de caráter assumidamente histérico. A suprema vitória da emoção sobre a “fé equilibrada”. Mas, o que é fé equilibrada, uma vez que a fides é irracional? “Só sei que nada sei” e, também, ao considerar que a história se repete sempre, os suecos não deixaram de buscar referências em tempos idos, lá pelos pietistas, um modelo sublimado de aristocracia santa dos eleitos. Histéricos, entretanto.
    Sarcasmos à parte, o apóstolo são Paulo, na carta aos Romanos 16:16, diz-nos: “Saudai-vos uns aos outros com ósculo santo. As igrejas de Cristo vos saúdam”. Ora, isso significa exatamente que bom seria todo homem entendesse que as igrejas que praticam um tipo de cristianismo fundamentado no amor, na morte e na ressurreição de Jesus, em tese, “seriam autênticas” nas suas bases.
    A certitudo salutis pietista da santificação, com certeza, é o passaporte para o delirium máximo dos santos, pois confirma a experiência religiosa como inconsequente e vazia, assentando a fé como algo absolutamente irracional. Era o intento inicial de que a pietas fosse transformada em um procedimento metódico. Assim, passível de ser efetivada como elemento identificador, controlador e repressor dos eleitos. Lembrando a Confissão de Westminster, em 1648: “A outros escolheu Ele para a condenação eterna, segundo o conselho da sua santa vontade, a mais livre e a mais justa”. Um modelo de tirania eclesiástica efetiva e de empulhação.
    Lançando-se um olhar sobre o pietismo no seu conjunto, é nítida a tendência ao emocionalismo, mas com o legado do lastro capitalista na consciência do trabalho secular como sacerdócio, na figura do funcionário fervoroso, do patrão na condescendência piedosa, ainda que patriarcal, ou seja, o trabalho de cada um interpretado como meta missionária no mundo.
    Com o advento dos assembleianos[xviii] (que até hoje lutam para camuflar sua condição de seita), ficou mais evidente a separação religiosa entre os protestantes: o cristianismo liberal, tolerante, originado do hemisfério norte versus o cristianismo da superstição do hemisfério sul. Observe-se que, na Europa e em grande parte dos Estados Unidos, a religiosidade perde terreno, enquanto que, nos países pobres do terceiro mundo, revela uma ascensão. A pobreza se apresenta como determinante para o êxito do malefício: a superstição religiosa! Foi o trabalho iniciado por Gunnar Vingren e Daniel Berg, com toda a carga de intenção reformadora, o ponto de partida para o êxtase religioso neuropatológico. A partir daí, com o surgimento desse neuropentecostalismo de histeria coletiva, tudo passou a ser conduzido pelas já tão conhecidas revelações. Assim, por essas e outras, é que o brasileiro antes se inclina para o fantástico; para a pirotecnia-sacra, daí se enrola por inteiro na teia das superstições neopentecostais. O homem é o produto do meio.
    O que mais me fascina[xix] nas seitas pentecostais é a necessidade total de símbolos e elementos pseudotransformantes acrescidos aos processos de conversão. Pela via ótica dos primeiros cristãos, era bastante um novo nascimento (o que certamente garantiria uma conduta renovada), porém, as atuais doutrinas pentecostalistas híbridas deixam ao longe os pietistas com a pobre simplicidade. Os supercristãos pentecostalistas, tais quais os heróis da Marvel Comics, exibem um leque de conquistas poderosas: festivais de revelações fofas, sonhos mirabolantes, cascatas de curas, línguas estranho-dubitáveis e profecias fantásticas de todas as cores. Não basta a simples salvação, pois, para evidenciá-la agora, só acompanhada dos superpoderes. Claro está, entretanto, que este comentário se refere unicamente aos processos de pasticho implantados pelo sectarismo. Dogmas pentecostalistas que deformam o mistério divino. Certo é que a Bíblia nos revela coisas interessantes sobre os dons espirituais, porém, infelizmente, é passível de se pressupor deturpações graves no texto com o intuito de fortalecer o plantio de ações doutrinárias tendenciosas.
    É pena que os superpoderes não eliminem a total desmesura e plena rusticidade que acompanha os portadores do vírus do sectarismo. Os defensores do pentecostalismo barato, com os estereótipos das suas indumentárias típicas; dos estranhos arranjos de cabelos femininos, representados por enormes “coques santos”; da apologia da morte da estética, seja nas roupas, no cuidado pessoal, ou na decoração de suas casas, esses pertencem ao mesmo time que apoiou o Tribunal do Santo Ofício de tempos idos. Com a diferença de que, os de antigamente, nos brindam com o sabor da história e nos remetem a Umberto Eco. Os de hoje são meros anões estéticos e espirituais. Parvos, tristes. Recalcados.
    Gritam aleluias, berram glórias a Deus da boca para fora. Quanto mais urram, mais os pastores confirmam a “presença de Deus”. Os vizinhos incomodados não ousam reclamar do milagre. Mudanças e mais mudanças de superfície... Nada denso. Delírio, multidão e algodão doce. E assim tudo se propaga, prega-se e prolifera-se desordenadamente. Viva aquilo que mais nos interessa hoje, a teologia da prosperidade! Teologia vagabunda, tendenciosa, que produz a pior das paranoias: se um irmão não vai bem das finanças é porque está caído da graça... Porcalha teológica que discrimina os coitadinhos e os coloca no páreo da corrida do ouro! Teólogos velhacos excluídos da Arcádia sacra, oportunistas e salteadores dos bolsos alheios que condicionam as ovelhinhas às condições da corrida materialista! Escancarada ou velada essa teologia foi projetada para manipular os encéfalos sectários que mais se parecem com moluscos atrofiados. Mais merecem é ser enganados na crendice cega que os nutre. Pouco importa, porém, desde que o Senhor multiplique os ganhos. Deífico dinheiro.
    O mais intrigante de tudo é que temos a garantia dos patriarcas. São os sustentadores das nossas crenças. Um Moisés aqui, um Arão ali, um Joseph Smith acolá... Um Jimmy para você e um Gunnar Vingren para mim, e assim vamos montando nossas colmeias para “servir ao Altíssimo”. Imaginemos o metodismo sem um John Wesley qualquer, ou a Igreja Luterana sem o reformador. Ai de nós, fariseus! Eles deram passos para que nós tivéssemos a quem exaltar e pagar os dízimos, pois adorar mesmo só a Deus. Nós soltamos Barrabás! Condenamos o inocente! O sectarismo ensinou-nos a troca. Sem a troca, não poderíamos fabricar nossos heróis, pois foram eles os únicos responsáveis pelo acesso ao todo-poderoso. Fica mais ou menos assim o credo dos sectários: “Ninguém vem ao Pai senão por Wesley, ou outro líder qualquer”. É tal a impossibilidade do homem em desenhar Deus no coração que, invariavelmente, o líder humano se faz necessário. Mas se Jesus é o mediador, para que tantos líderes? Se as religiões são o caminho para Deus, para que Jesus? Como não é um só rebanho, optamos por fabricar vários caminhos. Criamos tudo que nos escraviza. Até criamos o nosso todo-poderoso! Formatamos e formalizamos tudo para sermos infelizes. Quando damos asas às emoções, sem conjugá-las com a razão, a exemplo dos pietistas e outros mais, tornamo-nos fanáticos simplesmente.
    Outra tentativa que deu certo foi o metodismo. John Wesley[xx], ao voltar de uma viagem missionária da Geórgia em 1738, frustrado no trabalho de evangelização com os índios e colonos americanos, assistiu a uma reunião da Sociedade Pietista que determinou a mudança maior da sua vida. Wesley passou a entender que a perfeição representava uma segunda experiência de graça após a conversão e se tornou mais um artista midiático.
    O metodismo recebeu a sua inspiração do pietismo, mas com a visão voltada para a conquista da certitudo salutis[xxi] através do método de conduta e de uma natureza totalmente sistemática. Isso tornava as coisas um tanto mais passíveis de controle, ao provocar, através do método, as emoções necessárias ao ato da conversão. Era um caráter, talvez, ainda mais emocional do que o encontrado no mundo pietista. As obras, de fato, constituíam, a olhos vistos, a definição do verdadeiro convertido, uma vez que era a prova de que o pecado não mais exercia domínio sobre o converso. O homem e a busca das evidências exteriorizadas.
    Basicamente, era uma certeza emocional da salvação produzida pelo tipo de fé em questão, de imediato acompanhado por um sentimento mais aquietado e sereno na conquista da perfeição[xxii]. Uma vez, através dos métodos emocionais, com as dúvidas inerentes à salvação solucionadas, as conquistas posteriores se tornavam mais fáceis. O sentimento da graça dava o suporte necessário à retidão de conduta, o que tornava, pelo clero, o melhor instrumento de detecção do estado de graça de cada um.
    Foram várias as derivações do metodismo e, como sempre, a semente da politicagem plantada pelo clero. Na América, antes da guerra civil de 1860, a Igreja Episcopal Metodista do Norte era contra a escravidão, e a Metodista do Sul, a favor da escravidão. Hoje, há mais de vinte organizações nos Estados Unidos que usam o título de metodista como parte do seu nome oficial. Como é fácil falar de Ágape e amor ao próximo. Mas enaltecidos sejam nossos obstinados metodistas, escolhidos por Deus para a eternidade, com o prêmio de deslizarem pelas nuvens com John Wesley... Não só os metodistas, mas toda a pastorada esquecida de que, antes das baboseiras faladas nos púlpitos, torna-se necessária uma vida de integridade aprovada e regida pelas normas sociais básicas. De tal coisa, não há como fugir! Como amam o ouro, os irmãozinhos. Aliás, o clero em geral tem apetite de tubarão... Cargos, honrarias, títulos: bajular os pequeninos pela adesão fideísta e os grandes pela adesão dinheirista... Pelo menos, os artistas e os intelectuais de verdade estão bem longe deles: têm arrepios de tais profissionais do púlpito e os clérigos fingem não saber disso. Esses clérigos são salvos inquestionáveis, só que no fundo, titubeiam e gelam com as dúvidas sobre a eternidade, na incerteza da salvação deles próprios!
    O século dezenove marcou como o período da multiplicação das igrejas independentes. Mantinham o selo do pietismo. A Igreja Evangélica do Pacto na América; a Igreja Evangélica Livre Sueca; a Igreja do Pacto da Noruega; a Associação da Igreja Evangélica Livre Noruega-Dinamarca; a Igreja Evangélica Livre da América; a Missão Aliança Evangélica, etc.
    No início do século dezenove, proliferavam as irmandades fundamentalistas. A estrutura eclesiástica era sempre do domínio das congregações locais, portanto, um sistema de células. Com uma rígida e literal interpretação das escrituras, deram um foco escatológico marcante aos seus ensinamentos, com destaque para o arrebatamento[xxiii], ocorrendo antes da grande tribulação. Dentre todas as irmandades, se destacaram os Irmãos de Plymouth que celebravam seus cultos em residências e salas, colocando nas portas o nome de Assembleia Evangélica. Ainda surgiram, em 1848, os Irmãos Abertos, pois se relacionavam com várias outras irmandades, abriam editoras, publicavam boletins e mantinham agências missionárias como a Christian Missions in Many Lands; o Missionary Service Committee; a Walterick Publishers of Kansas City; o Emmaus Bible College, e os Exclusive Brothers que só alimentavam relações fraternais com outros irmãos da mesma facção.
    Importante foi o Movimento da Santidade, inserido na tradição da doutrina wesleyana e iniciado na primeira metade do século dezenove pelo famoso evangelista Charles Finney. Tinha como proposta principal a união de várias denominações na celebração de reuniões de avivamento. Em 1867, foi fundada a Associação Nacional de Santidade para a promoção da segunda benção[xxiv], assim como fortalecimento e confirmação salvífica[xxv] dos neófitos. Os seus ministros eram proibidos de cursar escolas superiores de ensino, especialmente aquelas que ensinavam as teorias científicas novas, como por exemplo, as de Charles Darwin sobre a evolução das espécies. Também não podiam dançar nem fumar, ou beber licor. Nessa empolgação, formaram-se muitas novas denominações do tipo “santidade”: Igreja Metodista Livre, Igreja do Nazareno, Exército da Salvação, Aliança Cristã Missionária, Igreja de Deus e outras. Quanto mais santidade, mais camuflado ficou o dolo!
    Na primeira metade do século dezenove, também eclodiu outra obra de avivamento: o Movimento Restauracionista. Seus chefões eram Thomas Alexander Campbell e Barton Stone. A proposta, de uma vez por todas, a mesma: a restauração da Igreja primitiva do primeiro século. Os restauracionistas reagiram ao profissionalismo dos ministros da época e à estrutura denominacional vigente, que estabelecia firmemente uma rígida atitude antidenominacionalista. Erigia-se, em definitivo, um líder laico com toda a autoridade para cada congregação local. Declaravam cheios de gabolice: “Quando as sagradas escrituras falam, nós falamos; quando as escrituras não falam, nós não falamos”. Entretanto, Walter Scott, um dos seus líderes, fez a sustentação da salvação através do batismo nas águas. Milhares de neuróticos de outras denominações que, ao nascerem, foram batizados por meio da aspersão (episcopais, presbiterianos, metodistas e luteranos), partiram para a imersão, obtendo o perdão dos pecados através de um mergulho na piscina batismal...
    Dividiram-se, pouco depois, por razões de poder manter ou não instrumentos musicais nas congregações, especialmente o órgão, motivo da querela principal. É bom lembrarmos as brigas de séculos atrás sobre a cor que os pintores deveriam usar para representar o manto da Virgem. Azul ou vermelho? Hoje em dia, desapareceram os órgãos das igrejas. Qualquer lata ou pandeiro pode bem reproduzir os sons que merecemos. No futuro, talvez tenhamos pinicos para inovar algumas bandas gospel...
    A música se tornou o divisor de águas. Vieram denominações aos montes, umas instrumentais, outras não instrumentais. Igreja Cristã dos Discípulos de Cristo, Associação Cristã, Congregação Cristã, Igreja de Cristo, e vai por aí. Umas brigavam por motivos musicais, outras por celebrar a ceia com taças de vinho individuais e outras por insistir que a taça deveria ser única para todos, mesmo com o vinho mais espesso devido à mistura da saliva fraterna... Isso era, inegavelmente, uma genuína prova de amor ao próximo.
    Neste breve histórico do protestantismo, não posso excluir os adventistas. Falava-se muito da volta de Cristo na época. Um pregador leigo batista conhecido como William Miller, em 1831, anunciou o fim do mundo, fixando a volta de Jesus para 14 de março de 1844. Mais de cinquenta mil paranoicos que seguiam Miller reuniram-se de madrugada em todo o país e o Senhor não veio. Um discípulo de Miller, Samuel Snow, junto do seu mestre, reajustou a nova vinda para o dia 22 de outubro, mas que pena, ainda não foi dessa vez. O dia ficou conhecido como The great desilusion. Após o fiasco, Miller desculpou-se, oportunista que era, aproveitou que seus seguidores não queriam mais voltar às suas denominações de origem por tanta vergonha e fundou mais uma seita. Lançou as bases do advento do Messias.
    Frente às dúvidas gerais e diferenças de opinião em torno da guarda do sábado, da interpretação das profecias, dos costumes judaicos, uma louca mulher profetisa, Ellen G. White, ordenou os ensinamentos de Miller, acalentou seus pobres seguidores e lhes esclareceu as dúvidas que tinham. Os que se rebelaram, abriram novos caminhos adventistas. Assim, formaram-se três famílias: a Igreja Adventista do Sétimo Dia, a Santa Igreja Adventista do Movimento da Reforma e a Conferência Cristã do Sétimo Dia. Em 1866, os sabatistas repudiaram Ellen White e fundaram mais três subfamílias: a Conferência Geral da Igreja de Deus do Sétimo Dia; a Igreja de Deus do Sétimo Dia e o Concílio Geral das Igrejas de Deus. Curiosamente, no Novo Testamento, podemos ler que se alguém quiser guardar a lei de Moisés e tropeçar em apenas um ponto, torna-se culpado de todos. Mas o dízimo continua valendo! Os irmãos só não podem tropeçar nesse ponto, o de cumprir a lei do dízimo... Se não der o dízimo é ladrão de Deus! A cúpula do clero protestante baba um líquido esverdeado, segregado pelo fígado, com a quebra desse mandamento. Que Deus pobre, que só consegue fazer alguma coisa quando recebe o nosso dinheiro... Ah, esqueci que Ele está nos testando, a finalidade é ver se estamos libertos no espírito para que nos tornemos grandes colaboradores! Pena que os seus gerentes comerciais não têm tempo para prestar contas ao patrão. Pústulas que criticam os cobradores de impostos.
    Chegamos à tradição pentecostal já citada antes. O ponto nevrálgico de toda a doutrina é a glossolalia, ou seja, a possibilidade de se falar em outras línguas pelo poder do Espírito Santo. Os pentecostais postulam esse dom através do batismo no Espírito Santo. No primeiro ano do século vinte, supõe-se terem ocorrido pelo mundo episódios de manifestações milagrosas, semelhantes ao dia de pentecostes. Relata-se que milhares de cristãos receberam o batismo no Espírito Santo e as igrejas tradicionais, em desacordo, excluíram a maioria dos seus membros, considerados insurgentes.
    Em 1906, Charles Parham, no Kansas, organizou o Movimento da Fé Apostólica, sendo a primeira denominação pentecostal da América. Em 1908, já havia mais de 25.000 profetas e apóstolos no Kansas, Oklahoma, Texas e Missouri. No Brasil, o movimento foi incrementado no Pará, através de Daniel Berg e Gunnar Vingren, patronos das Assembleias de Deus. Foram aclamados semideuses do público pentecostalista. O negócio era falar em línguas. Passar cheque sem fundo, mentir, furtar, cobiçar a mulherzinha do outro, pedofilia, tudo isso está errado. Mas, se falar em línguas, fica tudo em casa. Já ameniza um pouco. Vai tudo para baixo do tapete.
    A partir de 1907, com foco total na santificação, dezenas de denominações pentecostais passaram a existir: Igreja de Deus; Igreja de Deus em Cristo; Igreja Pentecostal da Santidade; Igreja Pentecostal de Cristo; Igreja de Deus da Profecia; Igreja Congregacional da Santidade; Igreja Cristã de Damasco e dezenas de outros clubes denominacionais.
    Em 1914, os evangelistas decidiram se concentrar na doutrina do “só Jesus” e muitos pastores importantes foram rebatizados em nome dessa fé. Rebatizados... O que seria um rebatizado? Um esquizoide aquático? Nuance doutrinária que virou moda febril. A posteriori, houve a aprovação da fórmula batismal trinitária e os líderes desse movimento saíram do conselho e formaram as suas próprias arapucas: Assembleia Geral das Assembleias Apostólicas; Assembleia Pentecostal do Mundo; Assembleia Apostólica da Fé em Jesus Cristo; Igreja Pentecostal; Igreja Apostólica de Jesus Cristo; Assembleia Pentecostal de Jesus Cristo; Igreja Pentecostal Unida, etc.
    Ainda no início do século vinte, se destacou um movimento pentecostal arquitetado por William H. Durham. Denominava-se Doutrina da Obra Completa do Calvário, aceito por muitos grupelhos pentecostais de origem presbiteriana, congregacional, calvinista, batista, etc., e combatido pelo grupo que defendia a santificação, como a Assembleia de Deus do Brasil (a que se arvora como “autêntica”); a Assembleia Pentecostal do Canadá; a Santa Igreja de Deus Pentecostal da América; a Igreja Internacional do Evangelho Quadrangular; os Defensores da Fé; a Igreja Bíblia Aberta; a Igreja de Cristo Missionário e a Assembleia de Igrejas de Nova Iorque.
    Temos, ainda, na nossa cesta básica, os pentecostais sabáticos. Ernst William Sellers, em Cuba, vulgo Daddy John[xxvi], que fundou a Igreja Evangélica Internacional, ou Grupo Evangélico Gideão, ou ainda Soldados da Cruz de Cristo e a Assembleia Pentecostal do Sétimo Dia. E há quem ainda chame Salvador Dalí de paranoico... Paranoica é a súcia que compõe o mundo do sectarismo!
    As coisas se distorceram de vez. Em 1948, George Hawtin e Herrick Holt fundaram um movimento chamado Última Chuva, voltado para a ênfase na santidade divina, na designação de profetas e apóstolos pela imposição de mãos, assim como a distribuição benévola de dons espirituais. Exemplos são: a Igreja Independente da Última Chuva; Assembleia de Elim; Assembleia de Deus Independente; a Igreja da Palavra Viva; as Servas do Senhor dos Últimos Tempos e a Igreja Cristã Maranata (campeã absoluta de revelações). Aliás, não há nada melhor do que aplicar as revelações para um efeito rápido. As boas são como encher uma câmara de ar, deixam as pessoas lânguidas de vaidade; já as más, aterrorizam a vítima antes de escravizá-la. À medida que se repetem, destroem qualquer possibilidade de reflexão do incauto até transformá-lo numa colcha de retalhos, carne moída pura. Esta é a condição ideal para se virar refém do sectarismo.
    É fantástico como o nome assembleia tem uma grande força de marketing sacro. Não é à toa que no Brasil se desenvolveu como a maior denominação pentecostal (sem contar com seus braços emprestados), na maioria abrangendo a massa da população pobre, tanto rural como urbana – menos favorecida intelectualmente. O público alvo do pentecostalismo é a camada da população mais esfacelada culturalmente, porque, com um povo tão numeroso, de grão em grão, a galinha enche o papo... Se não fosse empregada a tática do emocional pela santíssima cúpula clerical sapiente sobre um povo desamparado, esfomeado, flagelado até os ossos, com quem haveria de se aplicar o sectário e sutil controle das massas? Com a aristocracia? Com os humanistas? Talvez os artistas? Com os filósofos? Ora, voltemos aos exemplos do velho Nietzsche: “O instinto profundo do modo como devemos viver, para que o homem se sinta em pleno céu, eterno, enquanto qualquer outro comportamento impede que esse mesmo homem se sinta no céu: essa é a única verdade da psicologia redencionista, uma vida nova e não uma nova fé...”. Para que o feito se consolide, o alvo tem que ser o senso comum: o pobre, único pecador, pois o maior pecado do homem é ser pobre!
    Os grupos pentecostais prosseguem. O movimento carismático lança uma luz sobre igrejas como a Capela do Calvário, fundada por Charles Smith e a Igreja dos Companheiros da Vinha, fundada por John Wimber. O orgulho reformista conquistou o mundo e o orgasmo espiritual dos pentecostalóides explodiu!
    Em 1960, foi criado um discipulado autoritarista que exigia obediência completa ao guia espiritual do discípulo, o Movimento Pastoral. A tônica era a submissão total à autoridade pastoral. Na Argentina, concomitante a esse movimento, surgiu o ministério de Juan Carlos Ortiz, promovendo abertura para a criação da Igreja Pentecostal do Pacto.
    Nessa mesma época emergiu (se das profundezas não sei) a doutrina teológica da Confissão Positiva. Seus papas são Kenneth Hagin, Fred Price, Charles Capps, Kenneth Copeland, Bob Tilton e Doyle Harrison. A ênfase está na doutrina da afirmação da fé, conhecida pela maioria como o “evangelho da prosperidade”, o ponto alto da apostasia. Como as metástases de um câncer, a doutrina espalhou-se pelo mundo. Era só isso que faltava para completar a obra de Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, mas acho que ele foi mais feliz por não ter contemplado o ocaso da possibilidade da fé e o saco sem fundo do atual surto da pornoteologia que aponta para a nadificação da cristandade. Será mesmo? Vamos e venhamos, que cristandade, se essa foi a maior invenção do judeoromanismo? Constantino? Só ele leva a fama? Será que a cristandade já não nasceu nadificada nas mãos do clero e do Estado? Por que não dizer que foi a maior invenção de todos os tempos? O nascimento e a sagração do mercantilismo. Mas não foi o judaísmo que construiu o cristianismo, patrimônio maior do capitalismo?
    Daí, as coisas degringolaram. Delinquiram-se espiritualmente. Tudo é consumo e o Evangelho não foge à regra. Ou se está no mercado, ou fora dele. A religião não é mais religare. É desejo da carne. Brotaram várias associações “cristãs” de homens de negócios com jantares de talheres de prata da Babilônia, atalhos para negociatas e pessoas interessantes, mas sabemos que a finalidade é a glória de Deus, lógico. “Não julguem para que não sejam julgados, irmãos. O Senhor é o dono do ouro e da prata. Não quer seus filhos na miséria. Logo, se um filho de Deus qualquer está ‘mal de vida’ é porque alguma coisa está errada com ele. É preciso oração para que o pobre encontre, o mais rápido possível, seu lugar na nova teologia da prosperidade. Se for pobre, é perdido... Corre irmão!”.
    Para não excluir do nosso histórico alguns grupos que se consideram cristãos, embora não sejam assim considerados pelos evangélicos que se declaram genuínos, nomeei esses povos de perisecta[xxvii]. Esses grupos são ainda bem mais sectários, pois pretendem ser absolutos e exclusivos, não admitindo as principais correntes do cristianismo. Entre eles, o grau de intolerância é extremo. Como os amish[xxviii], eles também pretendem a separação do mundo por convicção absoluta e pretensão de ser o único povo escolhido por Deus. Não admitem, em hipótese alguma, dividir essa prerrogativa com qualquer outro grupo religioso. Ih, Eterno meu! Por que a massa ignara é tão cega e se esparrama na lama?
    Quem, portanto, discrimina os seus iguais que podem existir pelo ato de um possível criador, vive na condição de pré-história, organizando-se, no caso em questão, em forma de bando. É o grau de brutalidade que caracteriza os pré-históricos, mas será que, com todos os recursos e refinamento da vida moderna, o ser humano continuará a abrigar no coração a brutalidade religiosa sob a forma da discriminação? Se isto acontecer, o seu grupo prosseguirá na qualidade de horda e de barbárie espiritual.
    Dos movimentos extremistas citados a seguir, temos a Igreja Mundial de Deus; o Movimento do Nome Sagrado; os Associados da Sabedoria Escritural; as Testemunhas de Jeová; o Povo de Jesus; os Meninos de Deus; a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Mórmons); a Igreja Liberal Unitarista; a Igreja de Cristo Cientista; o Movimento do Evangelho da Graça; a Igreja da Unificação; a Igreja da Luz do Mundo e milhares de outros movimentos de pouca expressão espalhados por todo o mundo. Santa demência, o mundo jaz no maligno – homo!
    No meio evangélico, o verdadeiro significado do religare perdeu-se entre rituais, regras e doutrinas de todo tipo. Perdeu-se, mesmo, pela divisão denominacional, pela multiplicação desordenada de rupturas e cisões no seu interior, pela falta do deus que eles pregam. Na verdade, deus da tristeza, da culpa e da morte. A-deus.
    As preleções mirabolantes do evangelista eletrônico Jimmy Swaggart foram descritas como coitos espirituais... Sua carreira em busca do ouro foi muito curta, um fiasco. Aliás, a maioria das religiões protestantes “organizadas” com estatutos, contratos, velhacarias, negociatas dolosas, parecem mais estar em busca do ouro do que de Deus e termina, quase sempre, em algumas moedas de prata... Para que o evangelho morra na cruz.
    Curiosamente, concluindo tudo que analisamos a respeito do crescimento do capitalismo no universo protestante, devido à natureza da sua própria fé, com a influência do ascetismo no conceito do trabalho como vocação espiritual, o protestantismo é pobre. Porque é pura divisão de ideias e de objetivos. Não tem estética, cultura e unidade. Assim sendo, não está além de um fenômeno social vicioso. Movimento desbotado que se pronuncia pela ausência de reflexão, cultura, coerência e absoluta falta de estética, demonstrada pelos seus seguidores.
    A Igreja Católica, segundo fontes de informação de grande autoridade, só no Vaticano possui um capital de US$ TRI[xxix], sem contar com os restos mortais de são Pedro; imóveis de valor incalculável e um dos maiores tesouros de arte da humanidade. Por acaso, alguém já viu um Michelangelo nas mãos de protestantes? É um padrão seguido pelos sectários menos letrados: a falta de arte. Não têm intimidade com o Belo, não discernem a estética, não têm percepção nem sensibilidade histórica, pois se limitam ao grotesco. Preocupam-se, apenas, com a busca desesperada do seu deus de plástico, responsável por um fanatismo epidêmico e cego.
    Kierkegaard[xxx] dizia que se não fosse torturado pela dúvida é porque não cria de verdade, porque não pensava de verdade, porque não existia de verdade. Para ele, a existência autêntica era viver com paixão, na angústia. Em acusações à Igreja por ter manipulado Deus, dizia que ela não passava de uma empresa lucrativa de transporte para a eternidade.
    Por que não vimos isso antes? Por que não enfrentamos o espelho? Por que não queremos ver? Espelho, espelho meu... Existe alguém mais hipócrita do que eu?


[i] Sociólogo alemão (1864-1920).
[ii] A ética protestante e o espírito do capitalismo.
[iii] Peregrinos – grupo de protestantes ingleses que buscava a liberdade de culto no solo americano e lá se estabeleceram.
[iv] Doutrina religiosa mais nefasta e cancerígena dos nossos dias, emergida do meio protestante que prega a relação direta da vitória espiritual associada ao sucesso financeiro.   
[v] Poeta inglês (1608-1674) partidário de um humanismo sem compromisso, traduziu sua fé através de poemas filosóficos.   
[vi] Contenha o riso!        
[vii] Espécie de salvoconduto abstrato que representava a consciência do dever cumprido e a convicção de ser eleito.
[viii] Prova de fé.
[ix] Político e prelado inglês (1475-1530); arcebispo de York, cardeal e lorde-chanceler. Valendo-se da sua influência junto ao rei, comandou a política inglesa por quinze anos. Sua intervenção junto ao papa para obter o divórcio de Henrique VIII, foi o motivo principal da sua queda.
[x] Criador da Igreja menonita (braço do movimento anabatista de inclinação rural).    
[xi] Uso este termo porque é o recipiente ideal para a salada de frutas da conspurcação...
[xii] Pregador inglês (1624-1691) principal divulgador da Sociedade dos Amigos Quakers.
[xiii] Spener (1635-1705) – foi pastor em Frankfurt, Dresden e Berlim. 
[xiv] Francke (1663-1727) – professor da Universidade de Leipzig.      
[xv] Exercício constante da piedade.
[xvi] Meio de vida, prática diária.  
[xvii] Pastores-desbravadores da Igreja sueca, respeitadíssimos nos meios como “servos de Deus” e, realmente, não eram paraquedistas. Eram empreendedores sérios, com singular visão profissional, pois fundaram as Assembleias de Deus no Brasil...  
[xviii] Os fiéis representantes e membros das Magnânimas Assembleias de Deus no Brasil, dignas de toda honorificência e louvaminha universal.  
[xix] Entenda-se como “fascínio-estarrecedor-contraditório”.   
[xx] Ministro protestante (1703-1791) graduado pela Universidade de Oxford.
[xxi] Tipo de salvo-conduto abstrato que mantinha o princípio do puro sentimento da absoluta certeza do perdão divino.   
[xxii] Houve, também, outra facção metodista, liderada por John Whitfield que relegava a doutrina da perfeição wesleyana. Eram predestinacionistas e acabaram por voltar a um tipo de calvinismo disfarçado.  
[xxiii] Esperança bíblica da subida aos céus da Igreja, composta dos cristãos vivos e já mortos, obviamente, os segundos, passando por uma ressurreição antecipada.  
[xxiv] Tipo de experiência instantânea de santificação, equivalente a uma segunda bênção.
[xxv] Um neologismo compreensível. 
[xxvi] Pai João.
[xxvii] Peri (do grego peri ) – significa em torno de. / Secta (do grego secta) seita.  
[xxviii] Grupo menonita americano que vive concentrado na Filadélfia e prima pelos absurdos tradicionalistas de séculos atrás. São paranoicos.
[xxix] Trilhões de dólares.    
[xxx] Filósofo dinamarquês cristão (1813-1855)

ATENÇÃO: Todos os direitos reservados.