CONSTRUINDO O CATOLICISMO
O filósofo que mais ironizou os concílios
foi Voltaire. Tal atitude não poderia ficar por menos, uma vez que esses mesmos
concílios representam o cimento do edifício de escombros que pretende se erguer
como cristianismo. Nesse edifício, envolvido em hipocrisia, percebemos que a
culpa máxima do homem é a de ter nascido, à medida que o maior dos seus delitos[i]
é ser pobre.
Quantos concílios e quanto esforço na
produção dos homines religiosi[ii], na forja dos
fariseus por excelência que compõem o enganoso mundo dos sectários. Ilusivo.
Tal qual Ícaro que fez asas de penas coladas com cera para fugir do labirinto,
mas, por não se contentar em voar baixo, chegou mais próximo do sol e teve as asas
derretidas. Caiu no mar!
Quantas salvações prometidas. Quanto peso
dos dogmas, dos grilhões. Entretanto, o homem só descobre o que lhe é permitido
por natureza... A contumácia no irracional, a própria fé cega – forjada –, gera
a desoladora prisão do espírito.
A Igreja Católica produziu, durante sua
história, vinte e um concílios ecumênicos e, segundo nosso filósofo Voltaire,
todos foram infalíveis, sacros e jamais foi visto neles algo semelhante a
paixões, preconceitos, intrigas, ódio ou crime... A “direção divina”
predominava sempre nessas reuniões dos santos do altíssimo.
O primeiro concílio ecumênico foi o de Niceia,
no ano 325 da era cristã. Um autêntico circo. Tudo bem arrumado, tal qual a
sordidez política dos nossos dias, pois o homem não muda e se mantém sempre
inviável. O papa tampouco se fez presente. Constantino[iii]
(o paranoico que teve a visão In Hoc Signo Vinces[iv]) supervisionou o
concílio de Niceia com mão de ferro e incumbiu o astuto bispo Ózio de Córdoba
de representar o papa in
totum[v]. Pretendia-se
estabelecer se Cristo era criado ou incriado, ao ter igualdade de natureza com
o Deus Pai. Assim, ficou determinado: “Jesus é Deus de Deus, Luz da luz, Deus verdadeiro de Deus
verdadeiro, gerado e não criado, consubstancial ao Pai”. Dezessete bispos
ficaram contra a decisão, aliados a dois mil padres, o que de nada adiantou. Cinicamente,
Constantino se proclamou bispo universal. Comunicou aos prelados que apenas se
incumbissem dos assuntos internos da Igreja e deixassem com ele toda a relação
com o mundo externo. Assim, fizeram os déspotas que se tornaram célebres.
Napoleão chegou a dizer: “Ah! Se me fosse possível ser o sumo pontífice da
religião na França e que lá pudesse ter muitos cardeais a dever-me os barretes
vermelhos...”.
Nesse concílio de Nicéia foi, também,
estabelecida a data da Páscoa, a ser celebrada no primeiro domingo depois da
lua cheia da primavera. Ficou decidida, também, a confissão de fé contra Ário[vi],
que sustentava ser Jesus Cristo de substância diferente do Deus Pai. Segundo
Voltaire, está registrado nos anais do concílio de Niceia que os padres,
encontrando-se sem saída para definir quais seriam os livros apócrifos – os
verdadeiros do Antigo e do Novo Testamento –, fizeram um grande amontoado dos
mesmos sobre um altar e, aqueles que viessem a cair no chão, seriam
considerados falsos... Uma lenda plausível.
O segundo concílio ecumênico foi o de
Constantinopla, em 381, na cidade que passou a ser conhecida como Segunda Roma.
O imperador que o convocou, Teodósio, farsante, notório homicida, concordando com
o papa Damaso I, estabeleceram o dogma da trindade, condenaram o macedonismo e
os adeptos de Ário.
O terceiro concílio ecumênico foi o de
Éfeso, em 431, quando ficou sacramentada a fé nas duas naturezas de Cristo
reunidas numa só pessoa e, ainda, o dogma da maternidade divina de Maria: Theotokos[vii]. Pode-se, de forma clara, perceber que os concílios,
nada mais, nada menos, foram os ajustes oficiais das escrituras com propósitos
sectários.
O quarto concílio foi o de Calcedônia, em
451, que postulou um reforço na existência das duas naturezas de Cristo em uma
só pessoa: “Um só e mesmo Cristo, Senhor, único Filho que deve ser reconhecido
em duas naturezas, sem hesitação, sem divisão, sem mudanças, sem separação. A
diferença das duas naturezas não pode ser de nenhum modo anulada pela sua
união, mas antes as propriedades das duas naturezas devem ser preservadas,
reunidas em uma só pessoa e uma só hipóstase”. Houve a condenação da simonia[viii]
e, ainda, das ordenações absolutas que comprometiam a atitude dos bispos.
O quinto concílio foi o de Constantinopla
II, em 553, ocasião onde os nestorianos Teodoro de Ciro, Ibas de Edessa e
Teodoro de Mosuéstia foram condenados. Nestório[ix]
pregava que em Cristo havia duas pessoas, uma divina e outra humana, mas
separadas entre si, a do Cristo e a do homem Jesus. Nestório que se opunha ao
conceito de mãe de Deus substituiu a noção
de Theotokos pela de Christotokos[x] e deixou o
conceito trinitário totalmente de lado. Essas ideias, porém, não ficaram apenas
no passado, permanecem até os dias atuais sob o véu de várias seitas.
Seguiu-se o concílio de Constantinopla III,
em 680, quando foi condenado o monotelismo – doutrina cristológica que
sustentava haver em Jesus uma só vontade, a divina. A briga continuou a girar
em torno dos pontos trinitários por muito tempo.
O
sétimo concílio foi o de Niceia II, em 787, a monumental estaca fincada pelo
catolicismo na apologia da veneração das imagens, como do protesto contra a
iconoclastia[xi],
que ficou clara a existência de sentido na adoração das imagens. Fez-se
necessário, por intermédio das representações pictóricas, o relato das tradições
e histórias da Igreja.
“As
venerandas sagradas imagens precisam ser expostas nas santas igrejas, alfaias
sacras, nas roupagens sagradas, nas paredes, casas e ruas; sejam elas de Deus, dos anjos, dos
santos ou dos justos”. Assim, surgiu o mercado de arte. Nesse tempo de querela
em torno das imagens, houve profunda alteração estilística. Quando se
destruíram milhares de obras artísticas (afrescos, mosaicos, miniaturas e
estatuetas) de incalculável valor, com estilo decorativo, sobreveio a tendência
à representação de temas com interpretação mais realista e voltada para a
observação da natureza.
O oitavo concílio foi o de Constantinopla
IV, em 870, quando se deu a confirmação perene do culto às imagens. Nessa
época, Focius, patriarca maior de Constantinopla, considerado o pai do
humanismo bizantino, em defesa da ortodoxia teológica, resistiu às ideias de
inovação de Roma. Foi deposto e excomungado pelo pontífice Nicolau I. Encerrou-se,
então, o período dos concílios dos primeiros séculos, indicação para uma nova
era de concílios, onde a preocupação primeira era a disciplina na Igreja.
A iconoclastia separou a Itália do papado
de Bizâncio e, apesar da vitória final de Roma, foi a brecha que conduziu a ruptura
da Igreja oriental com a ocidental. Seguiu-se o período dos concílios medievais
e o nono deles foi o de Latrão I, em 1123.
Para se entender melhor os enredos
religiosos, tendo sempre os concílios como um pano de fundo, olhemos a vida
social da Europa a partir do século XI. Sua organização era feudal. Deixou de
existir a preocupação mercantil, porque a dependência do homem ao cultivo da
terra criou o sistema de economia fechada. Os príncipes exerciam a soberania na
administração do feudo e deixavam o povo sem nenhuma participação nesse
governo, apenas serviam ao soberano em troca de uma segurança enganosa. Num
mundo senhorial, de costumes corruptos e egoístas, a consciência cristã anelava
por uma volta ao individualismo espiritual, ausente na ordem social que
predominava na Europa daquela época.
No Languedoc e na Bélgica, emergiu um movimento místico da nobreza
que se refletiu nos ideais da cavalaria, no próprio povo, como também nas
ordens monásticas. Guilherme
de Aquitânia fundou a abadia de Cluny em 908, que se tornou o ponto basilar para despojar a Igreja
do seu poder temporal. Daí, livres do mando episcopal, os monges de Cluny, ao longo dos anos, lutaram para
separar a Igreja do poder temporal.
Em 1049, Leão IX foi elevado ao trono
papal, confesso adepto de Cluny, fez uma reforma na Igreja, renovou o caráter ecumênico na Santa Sé e
decretou a eleição do papa pelo Colégio de Cardeais. Essa independência da Igreja
traria um choque inevitável com o império, pois representava a diminuição do
poder do imperador.
Em 1076, Gregório VII convocou um concílio
não reconhecido pela Igreja, em Worms, com a finalidade de destituição do papa. O feito não teve
a acolhida da Igreja e o monarca foi excomungado.
Em 1122, o imperador Henrique V decretou a Concordata de Worms, onde a Igreja passou a ser
independente do império. Logo depois, no concílio de Latrão I, ficou assegurada
à Igreja total liberdade de escolha na ordenação dos seus prelados, ainda a
solidificação da disciplina eclesiástica e a confirmação do celibato sacerdotal
até os dias de hoje.
O décimo concílio foi o de Latrão II, em
1139, quando vetaram a prática da advocacia e da medicina pelo clero. Aconteceu
a condenação do antipapa Pietro Pierleoni, mais conhecido como Anacleto II. De
acordo com Voltaire, estiveram presentes em torno de mil bispos, mas nada
fizeram, a não ser amaldiçoar todos os que acusavam a Igreja por estar
demasiado rica...
O décimo primeiro concílio foi o de Latrão
III, em 1179, quando houve o decreto de heresia que acusava o movimento dos
valdenses[xii]
(pobres de Lyon), que foram cruelmente perseguidos pela Igreja. Também
considerados hereges, os katharos[xiii], somente pelo fato
de buscar a pureza de vida,
tiveram o mesmo destino. Para reger o processo da eleição papal, criou-se a
necessidade de dois terços dos votos e as autoridades laicas foram excluídas do
pleito eleitoral. Os cavaleiros regulares também foram cerceados nos abusos e interferências
no governo da Igreja.
Esses movimentos de fé pura, valdenses e
cátaros, causaram profunda perturbação à Igreja romana que terminou por
promover uma cruzada contra os albigenses[xiv],
de 1209 a 1229. O papa Inocêncio III foi o protagonista de todas essas
tragédias, que se encerraram com a expedição de Louis VIII ao apoderar-se do
condado de Toulouse. Logo, celebrou-se o Tratado de Paris e a devolução do
condado à França. Os albigenses foram extintos.
O décimo segundo concílio foi o de Latrão
IV, em 1215, orquestrado pela insanidade de Inocêncio III. Ficou acordado entre
a bispalhada que o Diabo e os demônios eram anjos bons, mas decaíram pelo
pecado na opção do mal. Foi estabelecida a obrigatoriedade dos atos de
confissão e comunhão todos os anos. A liturgia foi pesadamente normatizada e a
disciplina tornou-se mais rígida. Por fim, houve a realização de mais uma
cruzada com a finalidade de libertar o santo sepulcro de Cristo, em Jerusalém,
que estava sob o domínio do Islã.
O décimo terceiro concílio foi o de Lyon I,
em 1245, ocasião em que aconteceu a deposição e excomunhão do rei Frederico II
da Alemanha. Como rei germânico, fez grandes concessões à Igreja, porém, ao
entrar em conflito com a liga lombarda e com o papa Gregório IX, foi
excomungado. Dezenove anos depois, recebeu nova excomunhão e, em 1245, deposto
finalmente.
O décimo terceiro concílio foi o de Lyon
II, em 1274, que determinou uma medida extremamente tendenciosa: a eleição do papa
em recinto fechado, dando ensejo a uma nova era de trampolinadas clericais.
Nessa época, a Igreja de Roma uniu-se à de Constantinopla e celebrou a velha
lei de conveniências.
O décimo quinto concílio foi o de Viena, em
1311, presidido pelo papa Clemente V (Bertrand de Got), que decidiu acabar com
a Ordem dos Templários[xv].
Como o clero, em parceria com os reis, sempre teve sede do sangue dos pobres e inocentes,
mais de cem templários foram barbaramente torturados a mando de Filipe, o Belo,
que cobiçava as suas riquezas há muito tempo.
Soou agradável também ao papa Clemente V a
condenação do modus
vivendi[xvi] de pobreza dos
franciscanos, acusados de hereges por serem conhecidos como “espirituais” e
terem escolhido a renúncia como meio de vida, um vil paradoxo que só teria
abrigo no âmbito do sectarismo sanguinário.
Clemente V, eterno bajulador de Filipe, o
Belo, instalou a Santa Sé em Avignon, num período em que a Igreja estava
totalmente subjugada aos caprichos do monarca da França. Assentou-se a
debilidade papal, a fase da Igreja conhecida como cativeiro da Babilônia, descambando
na desmoralização da cristandade com grande repercussão.
O décimo sexto concílio foi o de Konstanz,
de 1414 a 1418, quando os papas Gregório XII, Bento XIII e Johann XXIII foram
considerados antipapas[xvii]
e obrigados a renunciar em favor de outro psicopata conhecido como Martinho V.
Nessa inquinação[xviii]
malévola que intitularam concílio, a Igreja mandou queimar vivos na fogueira,
como hereges, Jan Huss[xix]
e Jerônimo de Praga[xx].
Aquela mesma Igreja negra, suja, que hoje se acinzentou um pouco para ocultar
as suas raízes de negridão, de luz artificial, também condenou a John Wycliffe[xxi],
trinta e quatro anos após a sua morte, como herege por aderir ao princípio dos
valdenses. Os religiosos prostituíram a santa madre Igreja!
Se a Bíblia exercesse uma autoridade
exclusiva sobre o papado, a Igreja romana sucumbiria. Se a verdade in totum prevalecesse sobre
a Bíblia, seriam os santarrões protestantes que se vergariam diante do
indiscutível: a Bíblia foi escrita
por homens e a verdade está acima do que os homens costumam escrever. Todo
homem que fala ou escreve sobre Deus, em qualquer religião que se preze, sempre
se acha inspirado e só será percebido, atinando o engodo, por quem adotar a
divisa predileta de Karl Marx: a dúvida de tudo. Somente duvidando é que
sabemos escolher.
O décimo sétimo concílio foi o de
Basiléia/Ferrara/Florença, de 1431 a 1442, quando surgiu o arranjo político-doutrinário
com os gregos, armênios e jacobistas com a intenção de fixar os princípios
básicos sobre a Santíssima Trindade, ou seja, “O Pai está completo no Filho,
está completo no Espírito Santo; o Filho está completo no Pai, completo no Espírito
Santo; O Espírito Santo está completo no Pai e completo no Filho. O Pai, o
Filho e o Espírito Santo não compõem três princípios das criaturas, porém um só
princípio”.
O décimo oitavo concílio foi o de Latrão V,
de 1512 a 1517, tendo como objetivo principal a realização de uma reforma em
profundidade dos cânones da própria Igreja, mas os resultados não foram
satisfatórios, pois não se pode pretender reformar algo com medidas de
aparência saudável sobre raízes pervertidas. A relação entre a França e a Santa
Sé, através de uma concordata, foi regulamentada. Surgiram reformas na
estrutura clerical. A sanção de Bourges[xxii]
foi condenada, assim como a tese teológica de Pietro Pomponazzi: sustentava a
mortalidade da alma, que deveria ser uma só para todos os homens.
O décimo nono concílio, o mais famoso de
todos, foi o de Trento, reunido em três períodos. Durante o papado de Paulus II
(1534/1549); de Julius III (1550/1555) e de Pio IV (1559/1565). O alvo a ser
atacado foi a Reforma de Martinho Lutero[xxiii].
Esse concílio, no mínimo, reafirmou o cânone
das escrituras, e proclamou a Vulgata totalmente livre de qualquer erro
teológico. Vale relembrar o célebre dito de Nietzsche: “Na necessidade de uma
grande falsificação literária, descobrem-se umas sagradas escrituras...”. Também
foram assentadas as doutrinas do pecado original, assim como a missa; os
sacramentos; a veneração dos santos; as indulgências; o purgatório e a eucaristia.
Afirma esse concílio ignóbil que o próprio Cristo conferiu à Igreja o poder de
cobrar indulgências, ao fazer com que todo aquele que objetasse à aplicação das
mesmas tivesse a marca da maldição e, ainda, excomungados pelo papa homicida. O
gênio do mal, Inocêncio III, como o maior deles, expandiu a Inquisição com o
sangue dos inocentes. A Igreja continua abrigando suas relíquias na galeria dos
monstros absolvidos, os pardos sumo pontífices...
O vigésimo concílio foi o do Vaticano I, em
1869. Deliberaram sobre o primado e a infalibilidade papal, além de múltiplas
normas doutrinárias sobre a fé católica. Já se levanta o tapete para ocultar a poeira
da ignomínia.
Por fim, o vigésimo primeiro concílio foi o
do Vaticano II, em 1962, quando, com muita argúcia, a Igreja desviou os olhares
do mundo dos temas doutrinários, que figuravam nos concílios anteriores, para
enfocar a posição da Igreja de per si dentro das suas relações com o mundo. Habilíssima, uma vez que surgira
uma desconfiança global em torno dos massacres que a Inquisição praticara em
tempos idos, mas não esquecidos... Foi a perfeita cortina de fumaça criada pelo
Vaticano para ocultar os séculos de horror contra a cristandade: vitupérios,
crimes e monstruosidades geradas pelo sectarismo católico!
Assim, apresentada ao mundo uma nova
primavera da Igreja, dezenas de decretos foram anunciados aos cristãos para
suavizar as manchas de sangue espalhadas pelos umbrais da história. Sangue
inocente, anônimo, oculto
por trás
de paredes úmidas, ambientes empoeirados e misturados às cinzas de fogueiras
oficiais. Decreto disso, decreto daquilo. Pilhas de constituições dogmáticas
sobre a Igreja, a “sagrada liturgia” em torno do ecumenismo. Sim, porque é
tempo de politicalha e não mais de fogueira. Decretos que envolvem as
atividades missionárias, o ministério e a vida dos presbíteros. Sobre o
apostolado dos leigos – pois é conveniente a cautela com os leigos –, o controle
dos meios de comunicação social, conveniência com abrangência; sobre a
liberdade religiosa e, finalmente, as relações da Igreja com as religiões não cristãs.
Que estratégia! Atualmente, a “santa Igreja” imaculada, inspiradora. Apenas,
outrora, berço de sangue. Agora limpa, perdoada pelas ovelhas paridas nos
lupanares da Inquisição – berço luciferino.
Para o mundo desatento, parece que o mais
grave da imagem foi resolvido. A Igreja recuperada, tudo esquecido pelos adeptos,
e aí surge outro impasse, a Igreja ficou mais anacrônica do que antes. Com esse
último concílio, na tentativa de adaptá-la à força ao nosso tempo, dissipou-se a
nuvem de mistério que envolvia o romanismo. O gosto de história, de sangue
inocente na boca, as luzes filtradas, através dos vitrais, nas colunas góticas
geladas, o desfile em chiaroscuro das silhuetas
encapuzadas nas confabulações pelos cantos penumbrosos... Bulas papais,
fogueiras punitivas, na relação direta com a tirania do papado. Chegou-se,
então, a um resultado
ridículo, pois as referências imagísticas[xxiv]
viraram uma salada, misturaram-se. Agora, nem o onírico romano, nem uma coisa
discreta com o selo pós-moderno. Para piorar, ainda se fortalece o grande
concorrente previsto: o astuto Lutero deu certo! Os protestantes pegaram
carona, fizeram ajustes e cercaram o terreno. Para melhor entendimento, bom
mesmo é consultar o Manual napoleônico de ataque da cavalaria ligeira, ou o célebre relato
sobre The retreat from Russia[xxv], para sublimar o
lado cômico.
Digno de reflexão é o fato de que a Bíblia
tem como fim a conversão dos homens à obediência a Deus. A autoridade que emana
da Bíblia é o somatório de doutrinas morais, consoante à razão, e essas normas
não aparecem à toa, pois se apresentam como leis eternas. Entretanto, a grande
questão é como detectar a presença da fina linha divisória que separa as coisas
metafísicas (e seus pressupostos) das puramente materiais. Não é tão difícil.
Busquem-se as nascentes que geram interesse próprio e dinheiro. De certo,
absolutamente todos os concílios se circunscrevem nessa linha tendenciosa, que
explora a fé dos infelizes há muito tempo. Foi nos concílios que se encontrou o
caminho para a legalização dos crimes hediondos cometidos pela Igreja... A
Inquisição[xxvi]
e o Tribunal do Santo Ofício.
Há anos me pergunto o porquê da razão do
povo não conseguir enxergar a base falsa em que está fincada a Igreja romanista
e o rosário de absurdos que compõe a sua teocracia. Um passado de absoluta
fantasia entre os neófitos e de insídia entre os líderes. Como é possível o
povo aceitar tantas fábulas, anedotas e crimes monstruosos em nome de algo que
pretende regular a fé da humanidade? Como podem seus seguidores fechar os olhos
para uma Igreja que hoje é puro disfarce de um passado assombroso, que se
esconde atrás de histórias da Carochinha com anjinhos de bochechas cor-de-rosa?
A instituição é a mesma! Mudaram a tática, mas as vísceras e as intenções
contidas são as mesmas. Se possível fosse, derramariam hoje aquele mesmo sangue
do passado para se perpetuarem no poder e queimariam a carne de mais inocentes.
Seria a Igreja de Roma a raiz dos males
religiosos? Essa não é a questão. Talvez seja o absconditus – o sectarismo –, o vírus da Igreja! Atualmente, temos
um perigo de iguais proporções à espreita do momento histórico para arrebatar o
poder romano: o espírito da secta, que deixou o corpo anêmico da Igreja romana
e reencarnou em outro corpo, o da Igreja protestante. Se, entretanto, aplicarmos
um polissilogismo[xxvii],
concluiremos: a religiosidade, enquanto
carregada de exagero formal, gera o sectarismo pela falsificação da verdade;
ora, a verdade não pode ser falsificada porque não guarda relação com a
mentira, logo o sectarismo pode ser gerado pela falsificação da verdade; ora,
se o sectarismo é a própria mentira, logo a religiosidade é a própria geradora
da mentira. Igualmente, qualquer instituição religiosa pode gerar o sectarismo,
e, portanto, projetar a mentira, ainda que parcialmente. Fato indubitável. A
religiosidade é a hipocrisia dos bem intencionados, logo, o sectário crônico é
a maior ameaça à verdade. Porém, como a religião é o máximo veículo para a
realização fantástica do homem, a ilusão assume a pretensão, ainda que
imprópria, da verdade. Assim, a mais nociva das ilusões é a de ter razão
religiosa. A ilusão da religião ideal. O espetáculo da religião! Como dizia Nietzsche,
“a mentira de séculos”. Será que a religião é o próprio sectarismo? Será que
ela é o ovo, a própria secta? Até
agora não tocamos nisso... O sectarismo estaria enraizado na religião, ou a
religião seria o próprio sectarismo? Um pouco de reflexão basta.
A mentira de séculos, inspiradora da oração
dos sectários: “Ó Deus de misericórdia que lega à tua Igreja a prerrogativa da
santa Inquisição, do fogo purificador. De queimar a bela Jeanne d’Arc, jogar
suas entranhas no Sena, e ainda tê-la santa depois! Ó Deus magnânimo que nos
permite perseguir os infiéis, ao estimular a delação entre seus familiares.
Humilhá-los e torturá-los de todos os meios possíveis com a habilidade dos
carrascos inquisidores. Forjar as confissões dos miseráveis para o
engrandecimento da tua Igreja, ó Senhor! Quão pura a dádiva do retentum[xxviii]
outorgada à tua Igreja! Que beneplácito: poder torturar os judeus para que se
tornem cristãos... Quanta emoção nas procissões dos autos de fé para inspirar o
teu povo. Como tu és bom ao permitir a tua Igreja reunir em seus cofres todos
os bens dos condenados! Como tu és compreensivo ao permitir que a Inquisição
invente as heresias e, depois, a condenação dos hereges! Como tu és sábio em
instituir o Estado eclesiástico! Como tu és longânime ao permitir, antes de
Maquiavel, que os fins justifiquem os meios... Tu és grandioso em autorizar que
a Igreja diga: então, vamos inventar o mal?...”.
Chegamos ao ponto mais difícil de
compreensão da nossa obra, o objeto da desconstrução do sectarismo, com toda a
carga que Perry[xxix]
nos propõe: o problema da dificuldade egocêntrica, o motivo de permanecermos em
total encarceramento ao nosso mundo perceptivo. A prisão setorizada da noêsis[xxx].
Aquilo que nos coloca, a cada dia, diante do espelho: aceitarmos a cegueira,
por fim? Prosseguirmos? Para tal feito, resta-nos admitir o fato da ininteligibilidade
de Deus. Então, quebremos antigos preconceitos e preparemo-nos para percorrer uma
longa estrada onde a principal pergunta sempre será: o que é certo, o que é
errado? Admitir o incognoscível e, ainda, a possibilidade do agnosticismo.
Há, também, polos complicadores, como a
dualidade entre a razão e o ascetismo laico – o resultado estéril da filosofia
para o senso comum, em contraposto à alienação da ascese. Só é possível, desta
feita, vislumbrar um tipo específico de renúncia, de esvaziamento de conceitos
impostos (formadores do nosso mundo perceptivo), para a compreensão da
dialética da desconstrução do sectarismo, aqui proposta.
A
abordagem dessa dialética antissectária é o entendimento de um deus que seja preterido
na concepção-secta, mas intuído na própria admissibilidade, in totum.
Falando de maneira mais direta, como
descobrir se somos religiosos apenas e não sectários? Fato que nos deixaria em uma
posição superconfortável: “sou religioso, não sectário”. Seria isso mesmo? E se
a religião for o exato sinônimo do sectarismo, como fica todo tipo de desvio
aqui exposto até agora? Se o sectarismo for apenas metástase e a religião o
verdadeiro tumor que envenena tudo? Cabe um pouco mais de reflexão. Talvez um
olhar diante do espelho, olhar honesto, introspectivo, ou continuar o disfarce
de uma vida no “faz de conta” diário e sair para dar mais um passeio, ignorando
o peso de uma decisão inadiável. Este livro é dedicado aos que se cansaram do
palco e das pantomimas da religião.
[iii] Caius
Flavius Valerius Aurelius Constantinus – Constantino I, o Grande, 306-337,
imperador romano, filho de Constantius Clorus e sua concubina Helena.
[iv] Com
este signo vencerás. Visão que ele teve à véspera da batalha da ponte Mílvia e
que o levou à “conversão” ao cristianismo. Seu império se tornou uma monarquia
absolutista de direito divino. Fundou a cidade de Constantinopla, que gerou o
Império Bizantino.
[vi] Padre
de Alexandria, 256-336, autor da mais importante heresia cristológica que
negava a unidade do Deus trino, a consubstancialidade das três pessoas da
santíssima trindade. Assim, representava a negação da divindade de Jesus.
[xii] Movimento
encabeçado por Pierre de Vaux que, baseado na Bíblia, pregava a pobreza
evangélica, contestando o sistema romano, o sistema feudal, assim como as
indulgências, a existência do purgatório e a adoração de imagens.
[xiii]
Puros.
Movimento cristão nascido em Limousin (França) no século XI. A doutrina dos
cátaros defendia um tipo de dualismo que preconizava a existência de dois
princípios: o do bem (responsável pela criação do mundo espiritual) e o do mal
(responsável pela criação do mundo material). O homem, ao renunciar à matéria,
livra-se de Satanás e fica ligado a Deus. Relegavam os sacramentos da Igreja
romana e praticavam o Consolamentum um
tipo de batismo no Espírito Santo que, imediatamente, os revestia para que
vivessem em conformidade com as coisas puras.
[xv] Ordem
militar de cavaleiros do templo, fundada por Hugues de Payns em 1119. Essa
Ordem, com o nome de Pobres Cavaleiros de Cristo, destinava-se a proteger os
peregrinos da Terra Santa. Atrás dos bastidores, essa ordem servia de banco
para os Papas e soberanos.
[xvii]
Que
coisa ridícula e tipicamente medieval: usar artifícios como esses para iludir o
povo... Papas e antipapas! Ó clero trapaceiro, tal qual o cupinzeiro recheado
da bosta dos próprios insetos...
[xix] Reformador
religioso tcheco, professor da Universidade de Praga, excomungado por denunciar
a podridão da igreja e adotar as idéias de Wycliffe.
[xxi] Teólogo
inglês (1330-1384), anticlerical por excelência, alegava que a Igreja deveria
dar o exemplo de pobreza e proclamava a autoridade exclusiva da Bíblia sobre o
papado.
[xxiii]
Monge
que estabeleceu a Reforma protestante, nascido em Eisleben, Alemanha, em 1483.
Lutero, revoltado com o comércio da Igreja Romana, especialmente com o abuso da
prática das indulgências, redige as suas famosas 95 teses, fixando-as nos
portões da Igreja de Wittemberg. Em 1520, o papa Leão X edita a bula Exsurge, dando ao reformador um prazo
para retratação. Lutero, diante dos seus seguidores, queima numa fogueira a
bula papal, o documento pontifício da sua própria excomunhão.
[xxvi]
É
dramático e um tanto hipócrita ter que grafar, por amor às letras vernáculas,
estas palavras com maiúsculas...
[xxvii]
Duas
ideias que convêm a uma terceira, convêm entre si. No caso em questão, temos um
polissilogismo.
[xxviii]
Aditamento
na sentença da fogueira que permitia ao carrasco poupar o sofrimento do herege
através de uma morte abreviada.
[xxx] Do
grego noetós (da mente). Segundo
Platão, um tipo de pensamento mais elevado que conduz às formas de conhecimento
da justiça e do bem.
ATENÇÃO: todos os direitos reservados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário