terça-feira, 2 de dezembro de 2014

CONSTRUINDO O CATOLICISMO

O filósofo que mais ironizou os concílios foi Voltaire. Tal atitude não poderia ficar por menos, uma vez que esses mesmos concílios representam o cimento do edifício de escombros que pretende se erguer como cristianismo. Nesse edifício, envolvido em hipocrisia, percebemos que a culpa máxima do homem é a de ter nascido, à medida que o maior dos seus delitos[i] é ser pobre.

Quantos concílios e quanto esforço na produção dos homines religiosi[ii], na forja dos fariseus por excelência que compõem o enganoso mundo dos sectários. Ilusivo. Tal qual Ícaro que fez asas de penas coladas com cera para fugir do labirinto, mas, por não se contentar em voar baixo, chegou mais próximo do sol e teve as asas derretidas. Caiu no mar!

Quantas salvações prometidas. Quanto peso dos dogmas, dos grilhões. Entretanto, o homem só descobre o que lhe é permitido por natureza... A contumácia no irracional, a própria fé cega – forjada –, gera a desoladora prisão do espírito.

A Igreja Católica produziu, durante sua história, vinte e um concílios ecumênicos e, segundo nosso filósofo Voltaire, todos foram infalíveis, sacros e jamais foi visto neles algo semelhante a paixões, preconceitos, intrigas, ódio ou crime... A “direção divina” predominava sempre nessas reuniões dos santos do altíssimo.

O primeiro concílio ecumênico foi o de Niceia, no ano 325 da era cristã. Um autêntico circo. Tudo bem arrumado, tal qual a sordidez política dos nossos dias, pois o homem não muda e se mantém sempre inviável. O papa tampouco se fez presente. Constantino[iii] (o paranoico que teve a visão In Hoc Signo Vinces[iv]) supervisionou o concílio de Niceia com mão de ferro e incumbiu o astuto bispo Ózio de Córdoba de representar o papa in totum[v]. Pretendia-se estabelecer se Cristo era criado ou incriado, ao ter igualdade de natureza com o Deus Pai. Assim, ficou determinado: “Jesus é Deus de Deus, Luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não criado, consubstancial ao Pai”. Dezessete bispos ficaram contra a decisão, aliados a dois mil padres, o que de nada adiantou. Cinicamente, Constantino se proclamou bispo universal. Comunicou aos prelados que apenas se incumbissem dos assuntos internos da Igreja e deixassem com ele toda a relação com o mundo externo. Assim, fizeram os déspotas que se tornaram célebres. Napoleão chegou a dizer: “Ah! Se me fosse possível ser o sumo pontífice da religião na França e que lá pudesse ter muitos cardeais a dever-me os barretes vermelhos...”.

Nesse concílio de Nicéia foi, também, estabelecida a data da Páscoa, a ser celebrada no primeiro domingo depois da lua cheia da primavera. Ficou decidida, também, a confissão de fé contra Ário[vi], que sustentava ser Jesus Cristo de substância diferente do Deus Pai. Segundo Voltaire, está registrado nos anais do concílio de Niceia que os padres, encontrando-se sem saída para definir quais seriam os livros apócrifos – os verdadeiros do Antigo e do Novo Testamento –, fizeram um grande amontoado dos mesmos sobre um altar e, aqueles que viessem a cair no chão, seriam considerados falsos... Uma lenda plausível.

O segundo concílio ecumênico foi o de Constantinopla, em 381, na cidade que passou a ser conhecida como Segunda Roma. O imperador que o convocou, Teodósio, farsante, notório homicida, concordando com o papa Damaso I, estabeleceram o dogma da trindade, condenaram o macedonismo e os adeptos de Ário.

O terceiro concílio ecumênico foi o de Éfeso, em 431, quando ficou sacramentada a fé nas duas naturezas de Cristo reunidas numa só pessoa e, ainda, o dogma da maternidade divina de Maria: Theotokos[vii]. Pode-se, de forma clara, perceber que os concílios, nada mais, nada menos, foram os ajustes oficiais das escrituras com propósitos sectários.

O quarto concílio foi o de Calcedônia, em 451, que postulou um reforço na existência das duas naturezas de Cristo em uma só pessoa: “Um só e mesmo Cristo, Senhor, único Filho que deve ser reconhecido em duas naturezas, sem hesitação, sem divisão, sem mudanças, sem separação. A diferença das duas naturezas não pode ser de nenhum modo anulada pela sua união, mas antes as propriedades das duas naturezas devem ser preservadas, reunidas em uma só pessoa e uma só hipóstase”. Houve a condenação da simonia[viii] e, ainda, das ordenações absolutas que comprometiam a atitude dos bispos.

O quinto concílio foi o de Constantinopla II, em 553, ocasião onde os nestorianos Teodoro de Ciro, Ibas de Edessa e Teodoro de Mosuéstia foram condenados. Nestório[ix] pregava que em Cristo havia duas pessoas, uma divina e outra humana, mas separadas entre si, a do Cristo e a do homem Jesus. Nestório que se opunha ao conceito de mãe de Deus substituiu a noção de Theotokos pela de Christotokos[x] e deixou o conceito trinitário totalmente de lado. Essas ideias, porém, não ficaram apenas no passado, permanecem até os dias atuais sob o véu de várias seitas.

Seguiu-se o concílio de Constantinopla III, em 680, quando foi condenado o monotelismo – doutrina cristológica que sustentava haver em Jesus uma só vontade, a divina. A briga continuou a girar em torno dos pontos trinitários por muito tempo.

O sétimo concílio foi o de Niceia II, em 787, a monumental estaca fincada pelo catolicismo na apologia da veneração das imagens, como do protesto contra a iconoclastia[xi], que ficou clara a existência de sentido na adoração das imagens. Fez-se necessário, por intermédio das representações pictóricas, o relato das tradições e histórias da Igreja.

“As venerandas sagradas imagens precisam ser expostas nas santas igrejas, alfaias sacras, nas roupagens sagradas, nas paredes, casas e ruas; sejam elas de Deus, dos anjos, dos santos ou dos justos”. Assim, surgiu o mercado de arte. Nesse tempo de querela em torno das imagens, houve profunda alteração estilística. Quando se destruíram milhares de obras artísticas (afrescos, mosaicos, miniaturas e estatuetas) de incalculável valor, com estilo decorativo, sobreveio a tendência à representação de temas com interpretação mais realista e voltada para a observação da natureza.
  
O oitavo concílio foi o de Constantinopla IV, em 870, quando se deu a confirmação perene do culto às imagens. Nessa época, Focius, patriarca maior de Constantinopla, considerado o pai do humanismo bizantino, em defesa da ortodoxia teológica, resistiu às ideias de inovação de Roma. Foi deposto e excomungado pelo pontífice Nicolau I. Encerrou-se, então, o período dos concílios dos primeiros séculos, indicação para uma nova era de concílios, onde a preocupação primeira era a disciplina na Igreja.

A iconoclastia separou a Itália do papado de Bizâncio e, apesar da vitória final de Roma, foi a brecha que conduziu a ruptura da Igreja oriental com a ocidental. Seguiu-se o período dos concílios medievais e o nono deles foi o de Latrão I, em 1123.

Para se entender melhor os enredos religiosos, tendo sempre os concílios como um pano de fundo, olhemos a vida social da Europa a partir do século XI. Sua organização era feudal. Deixou de existir a preocupação mercantil, porque a dependência do homem ao cultivo da terra criou o sistema de economia fechada. Os príncipes exerciam a soberania na administração do feudo e deixavam o povo sem nenhuma participação nesse governo, apenas serviam ao soberano em troca de uma segurança enganosa. Num mundo senhorial, de costumes corruptos e egoístas, a consciência cristã anelava por uma volta ao individualismo espiritual, ausente na ordem social que predominava na Europa daquela época.

No Languedoc e na Bélgica, emergiu um movimento místico da nobreza que se refletiu nos ideais da cavalaria, no próprio povo, como também nas ordens monásticas. Guilherme de Aquitânia fundou a abadia de Cluny em 908, que se tornou o ponto basilar para despojar a Igreja do seu poder temporal. Daí, livres do mando episcopal, os monges de Cluny, ao longo dos anos, lutaram para separar a Igreja do poder temporal.

Em 1049, Leão IX foi elevado ao trono papal, confesso adepto de Cluny, fez uma reforma na Igreja, renovou o caráter ecumênico na Santa Sé e decretou a eleição do papa pelo Colégio de Cardeais. Essa independência da Igreja traria um choque inevitável com o império, pois representava a diminuição do poder do imperador.

Em 1076, Gregório VII convocou um concílio não reconhecido pela Igreja, em Worms, com a finalidade de destituição do papa. O feito não teve a acolhida da Igreja e o monarca foi excomungado.

Em 1122, o imperador Henrique V decretou a Concordata de Worms, onde a Igreja passou a ser independente do império. Logo depois, no concílio de Latrão I, ficou assegurada à Igreja total liberdade de escolha na ordenação dos seus prelados, ainda a solidificação da disciplina eclesiástica e a confirmação do celibato sacerdotal até os dias de hoje.

O décimo concílio foi o de Latrão II, em 1139, quando vetaram a prática da advocacia e da medicina pelo clero. Aconteceu a condenação do antipapa Pietro Pierleoni, mais conhecido como Anacleto II. De acordo com Voltaire, estiveram presentes em torno de mil bispos, mas nada fizeram, a não ser amaldiçoar todos os que acusavam a Igreja por estar demasiado rica...

O décimo primeiro concílio foi o de Latrão III, em 1179, quando houve o decreto de heresia que acusava o movimento dos valdenses[xii] (pobres de Lyon), que foram cruelmente perseguidos pela Igreja. Também considerados hereges, os katharos[xiii], somente pelo fato de buscar a pureza de vida, tiveram o mesmo destino. Para reger o processo da eleição papal, criou-se a necessidade de dois terços dos votos e as autoridades laicas foram excluídas do pleito eleitoral. Os cavaleiros regulares também foram cerceados nos abusos e interferências no governo da Igreja.

Esses movimentos de fé pura, valdenses e cátaros, causaram profunda perturbação à Igreja romana que terminou por promover uma cruzada contra os albigenses[xiv], de 1209 a 1229. O papa Inocêncio III foi o protagonista de todas essas tragédias, que se encerraram com a expedição de Louis VIII ao apoderar-se do condado de Toulouse. Logo, celebrou-se o Tratado de Paris e a devolução do condado à França. Os albigenses foram extintos.

O décimo segundo concílio foi o de Latrão IV, em 1215, orquestrado pela insanidade de Inocêncio III. Ficou acordado entre a bispalhada que o Diabo e os demônios eram anjos bons, mas decaíram pelo pecado na opção do mal. Foi estabelecida a obrigatoriedade dos atos de confissão e comunhão todos os anos. A liturgia foi pesadamente normatizada e a disciplina tornou-se mais rígida. Por fim, houve a realização de mais uma cruzada com a finalidade de libertar o santo sepulcro de Cristo, em Jerusalém, que estava sob o domínio do Islã.

O décimo terceiro concílio foi o de Lyon I, em 1245, ocasião em que aconteceu a deposição e excomunhão do rei Frederico II da Alemanha. Como rei germânico, fez grandes concessões à Igreja, porém, ao entrar em conflito com a liga lombarda e com o papa Gregório IX, foi excomungado. Dezenove anos depois, recebeu nova excomunhão e, em 1245, deposto finalmente.

O décimo terceiro concílio foi o de Lyon II, em 1274, que determinou uma medida extremamente tendenciosa: a eleição do papa em recinto fechado, dando ensejo a uma nova era de trampolinadas clericais. Nessa época, a Igreja de Roma uniu-se à de Constantinopla e celebrou a velha lei de conveniências.

O décimo quinto concílio foi o de Viena, em 1311, presidido pelo papa Clemente V (Bertrand de Got), que decidiu acabar com a Ordem dos Templários[xv]. Como o clero, em parceria com os reis, sempre teve sede do sangue dos pobres e inocentes, mais de cem templários foram barbaramente torturados a mando de Filipe, o Belo, que cobiçava as suas riquezas há muito tempo.

Soou agradável também ao papa Clemente V a condenação do modus vivendi[xvi] de pobreza dos franciscanos, acusados de hereges por serem conhecidos como “espirituais” e terem escolhido a renúncia como meio de vida, um vil paradoxo que só teria abrigo no âmbito do sectarismo sanguinário.

Clemente V, eterno bajulador de Filipe, o Belo, instalou a Santa Sé em Avignon, num período em que a Igreja estava totalmente subjugada aos caprichos do monarca da França. Assentou-se a debilidade papal, a fase da Igreja conhecida como cativeiro da Babilônia, descambando na desmoralização da cristandade com grande repercussão.

O décimo sexto concílio foi o de Konstanz, de 1414 a 1418, quando os papas Gregório XII, Bento XIII e Johann XXIII foram considerados antipapas[xvii] e obrigados a renunciar em favor de outro psicopata conhecido como Martinho V.

Nessa inquinação[xviii] malévola que intitularam concílio, a Igreja mandou queimar vivos na fogueira, como hereges, Jan Huss[xix] e Jerônimo de Praga[xx]. Aquela mesma Igreja negra, suja, que hoje se acinzentou um pouco para ocultar as suas raízes de negridão, de luz artificial, também condenou a John Wycliffe[xxi], trinta e quatro anos após a sua morte, como herege por aderir ao princípio dos valdenses. Os religiosos prostituíram a santa madre Igreja!

Se a Bíblia exercesse uma autoridade exclusiva sobre o papado, a Igreja romana sucumbiria. Se a verdade in totum prevalecesse sobre a Bíblia, seriam os santarrões protestantes que se vergariam diante do indiscutível: a Bíblia foi escrita por homens e a verdade está acima do que os homens costumam escrever. Todo homem que fala ou escreve sobre Deus, em qualquer religião que se preze, sempre se acha inspirado e só será percebido, atinando o engodo, por quem adotar a divisa predileta de Karl Marx: a dúvida de tudo. Somente duvidando é que sabemos escolher.

O décimo sétimo concílio foi o de Basiléia/Ferrara/Florença, de 1431 a 1442, quando surgiu o arranjo político-doutrinário com os gregos, armênios e jacobistas com a intenção de fixar os princípios básicos sobre a Santíssima Trindade, ou seja, “O Pai está completo no Filho, está completo no Espírito Santo; o Filho está completo no Pai, completo no Espírito Santo; O Espírito Santo está completo no Pai e completo no Filho. O Pai, o Filho e o Espírito Santo não compõem três princípios das criaturas, porém um só princípio”.

O décimo oitavo concílio foi o de Latrão V, de 1512 a 1517, tendo como objetivo principal a realização de uma reforma em profundidade dos cânones da própria Igreja, mas os resultados não foram satisfatórios, pois não se pode pretender reformar algo com medidas de aparência saudável sobre raízes pervertidas. A relação entre a França e a Santa Sé, através de uma concordata, foi regulamentada. Surgiram reformas na estrutura clerical. A sanção de Bourges[xxii] foi condenada, assim como a tese teológica de Pietro Pomponazzi: sustentava a mortalidade da alma, que deveria ser uma só para todos os homens.

O décimo nono concílio, o mais famoso de todos, foi o de Trento, reunido em três períodos. Durante o papado de Paulus II (1534/1549); de Julius III (1550/1555) e de Pio IV (1559/1565). O alvo a ser atacado foi a Reforma de Martinho Lutero[xxiii].

Esse concílio, no mínimo, reafirmou o cânone das escrituras, e proclamou a Vulgata totalmente livre de qualquer erro teológico. Vale relembrar o célebre dito de Nietzsche: “Na necessidade de uma grande falsificação literária, descobrem-se umas sagradas escrituras...”. Também foram assentadas as doutrinas do pecado original, assim como a missa; os sacramentos; a veneração dos santos; as indulgências; o purgatório e a eucaristia. Afirma esse concílio ignóbil que o próprio Cristo conferiu à Igreja o poder de cobrar indulgências, ao fazer com que todo aquele que objetasse à aplicação das mesmas tivesse a marca da maldição e, ainda, excomungados pelo papa homicida. O gênio do mal, Inocêncio III, como o maior deles, expandiu a Inquisição com o sangue dos inocentes. A Igreja continua abrigando suas relíquias na galeria dos monstros absolvidos, os pardos sumo pontífices...

O vigésimo concílio foi o do Vaticano I, em 1869. Deliberaram sobre o primado e a infalibilidade papal, além de múltiplas normas doutrinárias sobre a fé católica. Já se levanta o tapete para ocultar a poeira da ignomínia.

Por fim, o vigésimo primeiro concílio foi o do Vaticano II, em 1962, quando, com muita argúcia, a Igreja desviou os olhares do mundo dos temas doutrinários, que figuravam nos concílios anteriores, para enfocar a posição da Igreja de per si dentro das suas relações com o mundo. Habilíssima, uma vez que surgira uma desconfiança global em torno dos massacres que a Inquisição praticara em tempos idos, mas não esquecidos... Foi a perfeita cortina de fumaça criada pelo Vaticano para ocultar os séculos de horror contra a cristandade: vitupérios, crimes e monstruosidades geradas pelo sectarismo católico!

Assim, apresentada ao mundo uma nova primavera da Igreja, dezenas de decretos foram anunciados aos cristãos para suavizar as manchas de sangue espalhadas pelos umbrais da história. Sangue inocente, anônimo, oculto por trás de paredes úmidas, ambientes empoeirados e misturados às cinzas de fogueiras oficiais. Decreto disso, decreto daquilo. Pilhas de constituições dogmáticas sobre a Igreja, a “sagrada liturgia” em torno do ecumenismo. Sim, porque é tempo de politicalha e não mais de fogueira. Decretos que envolvem as atividades missionárias, o ministério e a vida dos presbíteros. Sobre o apostolado dos leigos – pois é conveniente a cautela com os leigos –, o controle dos meios de comunicação social, conveniência com abrangência; sobre a liberdade religiosa e, finalmente, as relações da Igreja com as religiões não cristãs. Que estratégia! Atualmente, a “santa Igreja” imaculada, inspiradora. Apenas, outrora, berço de sangue. Agora limpa, perdoada pelas ovelhas paridas nos lupanares da Inquisição – berço luciferino.

Para o mundo desatento, parece que o mais grave da imagem foi resolvido. A Igreja recuperada, tudo esquecido pelos adeptos, e aí surge outro impasse, a Igreja ficou mais anacrônica do que antes. Com esse último concílio, na tentativa de adaptá-la à força ao nosso tempo, dissipou-se a nuvem de mistério que envolvia o romanismo. O gosto de história, de sangue inocente na boca, as luzes filtradas, através dos vitrais, nas colunas góticas geladas, o desfile em chiaroscuro das silhuetas encapuzadas nas confabulações pelos cantos penumbrosos... Bulas papais, fogueiras punitivas, na relação direta com a tirania do papado. Chegou-se, então, a um resultado ridículo, pois as referências imagísticas[xxiv] viraram uma salada, misturaram-se. Agora, nem o onírico romano, nem uma coisa discreta com o selo pós-moderno. Para piorar, ainda se fortalece o grande concorrente previsto: o astuto Lutero deu certo! Os protestantes pegaram carona, fizeram ajustes e cercaram o terreno. Para melhor entendimento, bom mesmo é consultar o Manual napoleônico de ataque da cavalaria ligeira, ou o célebre relato sobre The retreat from Russia[xxv], para sublimar o lado cômico.

Digno de reflexão é o fato de que a Bíblia tem como fim a conversão dos homens à obediência a Deus. A autoridade que emana da Bíblia é o somatório de doutrinas morais, consoante à razão, e essas normas não aparecem à toa, pois se apresentam como leis eternas. Entretanto, a grande questão é como detectar a presença da fina linha divisória que separa as coisas metafísicas (e seus pressupostos) das puramente materiais. Não é tão difícil. Busquem-se as nascentes que geram interesse próprio e dinheiro. De certo, absolutamente todos os concílios se circunscrevem nessa linha tendenciosa, que explora a fé dos infelizes há muito tempo. Foi nos concílios que se encontrou o caminho para a legalização dos crimes hediondos cometidos pela Igreja... A Inquisição[xxvi] e o Tribunal do Santo Ofício.

Há anos me pergunto o porquê da razão do povo não conseguir enxergar a base falsa em que está fincada a Igreja romanista e o rosário de absurdos que compõe a sua teocracia. Um passado de absoluta fantasia entre os neófitos e de insídia entre os líderes. Como é possível o povo aceitar tantas fábulas, anedotas e crimes monstruosos em nome de algo que pretende regular a fé da humanidade? Como podem seus seguidores fechar os olhos para uma Igreja que hoje é puro disfarce de um passado assombroso, que se esconde atrás de histórias da Carochinha com anjinhos de bochechas cor-de-rosa? A instituição é a mesma! Mudaram a tática, mas as vísceras e as intenções contidas são as mesmas. Se possível fosse, derramariam hoje aquele mesmo sangue do passado para se perpetuarem no poder e queimariam a carne de mais inocentes.

Seria a Igreja de Roma a raiz dos males religiosos? Essa não é a questão. Talvez seja o absconditus – o sectarismo –, o vírus da Igreja! Atualmente, temos um perigo de iguais proporções à espreita do momento histórico para arrebatar o poder romano: o espírito da secta, que deixou o corpo anêmico da Igreja romana e reencarnou em outro corpo, o da Igreja protestante. Se, entretanto, aplicarmos um polissilogismo[xxvii], concluiremos: a religiosidade, enquanto carregada de exagero formal, gera o sectarismo pela falsificação da verdade; ora, a verdade não pode ser falsificada porque não guarda relação com a mentira, logo o sectarismo pode ser gerado pela falsificação da verdade; ora, se o sectarismo é a própria mentira, logo a religiosidade é a própria geradora da mentira. Igualmente, qualquer instituição religiosa pode gerar o sectarismo, e, portanto, projetar a mentira, ainda que parcialmente. Fato indubitável. A religiosidade é a hipocrisia dos bem intencionados, logo, o sectário crônico é a maior ameaça à verdade. Porém, como a religião é o máximo veículo para a realização fantástica do homem, a ilusão assume a pretensão, ainda que imprópria, da verdade. Assim, a mais nociva das ilusões é a de ter razão religiosa. A ilusão da religião ideal. O espetáculo da religião! Como dizia Nietzsche, “a mentira de séculos”. Será que a religião é o próprio sectarismo? Será que ela é o ovo, a própria secta? Até agora não tocamos nisso... O sectarismo estaria enraizado na religião, ou a religião seria o próprio sectarismo? Um pouco de reflexão basta.

A mentira de séculos, inspiradora da oração dos sectários: “Ó Deus de misericórdia que lega à tua Igreja a prerrogativa da santa Inquisição, do fogo purificador. De queimar a bela Jeanne d’Arc, jogar suas entranhas no Sena, e ainda tê-la santa depois! Ó Deus magnânimo que nos permite perseguir os infiéis, ao estimular a delação entre seus familiares. Humilhá-los e torturá-los de todos os meios possíveis com a habilidade dos carrascos inquisidores. Forjar as confissões dos miseráveis para o engrandecimento da tua Igreja, ó Senhor! Quão pura a dádiva do retentum[xxviii] outorgada à tua Igreja! Que beneplácito: poder torturar os judeus para que se tornem cristãos... Quanta emoção nas procissões dos autos de fé para inspirar o teu povo. Como tu és bom ao permitir a tua Igreja reunir em seus cofres todos os bens dos condenados! Como tu és compreensivo ao permitir que a Inquisição invente as heresias e, depois, a condenação dos hereges! Como tu és sábio em instituir o Estado eclesiástico! Como tu és longânime ao permitir, antes de Maquiavel, que os fins justifiquem os meios... Tu és grandioso em autorizar que a Igreja diga: então, vamos inventar o mal?...”.

Chegamos ao ponto mais difícil de compreensão da nossa obra, o objeto da desconstrução do sectarismo, com toda a carga que Perry[xxix] nos propõe: o problema da dificuldade egocêntrica, o motivo de permanecermos em total encarceramento ao nosso mundo perceptivo. A prisão setorizada da noêsis[xxx]. Aquilo que nos coloca, a cada dia, diante do espelho: aceitarmos a cegueira, por fim? Prosseguirmos? Para tal feito, resta-nos admitir o fato da ininteligibilidade de Deus. Então, quebremos antigos preconceitos e preparemo-nos para percorrer uma longa estrada onde a principal pergunta sempre será: o que é certo, o que é errado? Admitir o incognoscível e, ainda, a possibilidade do agnosticismo.

Há, também, polos complicadores, como a dualidade entre a razão e o ascetismo laico – o resultado estéril da filosofia para o senso comum, em contraposto à alienação da ascese. Só é possível, desta feita, vislumbrar um tipo específico de renúncia, de esvaziamento de conceitos impostos (formadores do nosso mundo perceptivo), para a compreensão da dialética da desconstrução do sectarismo, aqui proposta.

A abordagem dessa dialética antissectária é o entendimento de um deus que seja preterido na concepção-secta, mas intuído na própria admissibilidade, in totum.

Falando de maneira mais direta, como descobrir se somos religiosos apenas e não sectários? Fato que nos deixaria em uma posição superconfortável: “sou religioso, não sectário”. Seria isso mesmo? E se a religião for o exato sinônimo do sectarismo, como fica todo tipo de desvio aqui exposto até agora? Se o sectarismo for apenas metástase e a religião o verdadeiro tumor que envenena tudo? Cabe um pouco mais de reflexão. Talvez um olhar diante do espelho, olhar honesto, introspectivo, ou continuar o disfarce de uma vida no “faz de conta” diário e sair para dar mais um passeio, ignorando o peso de uma decisão inadiável. Este livro é dedicado aos que se cansaram do palco e das pantomimas da religião.


[i] Ficaria bem melhor a abrangência da palavra pecado.
[ii] Homens religiosos.
[iii] Caius Flavius Valerius Aurelius Constantinus – Constantino I, o Grande, 306-337, imperador romano, filho de Constantius Clorus e sua concubina Helena.
[iv] Com este signo vencerás. Visão que ele teve à véspera da batalha da ponte Mílvia e que o levou à “conversão” ao cristianismo. Seu império se tornou uma monarquia absolutista de direito divino. Fundou a cidade de Constantinopla, que gerou o Império Bizantino.
[v] Inteiramente.
[vi] Padre de Alexandria, 256-336, autor da mais importante heresia cristológica que negava a unidade do Deus trino, a consubstancialidade das três pessoas da santíssima trindade. Assim, representava a negação da divindade de Jesus.
[vii] Mãe de Deus.  
[viii] Venda ilícita de coisas sagradas.  
[ix] Bispo Patriarca de Constantinopla do século V. 
[x] Mãe do homem-Cristo.
[xi] Destruição de imagens ou ídolos.
[xii] Movimento encabeçado por Pierre de Vaux que, baseado na Bíblia, pregava a pobreza evangélica, contestando o sistema romano, o sistema feudal, assim como as indulgências, a existência do purgatório e a adoração de imagens.
[xiii] Puros. Movimento cristão nascido em Limousin (França) no século XI. A doutrina dos cátaros defendia um tipo de dualismo que preconizava a existência de dois princípios: o do bem (responsável pela criação do mundo espiritual) e o do mal (responsável pela criação do mundo material). O homem, ao renunciar à matéria, livra-se de Satanás e fica ligado a Deus. Relegavam os sacramentos da Igreja romana e praticavam o Consolamentum um tipo de batismo no Espírito Santo que, imediatamente, os revestia para que vivessem em conformidade com as coisas puras.
[xiv] O mesmo que cátaros.
[xv] Ordem militar de cavaleiros do templo, fundada por Hugues de Payns em 1119. Essa Ordem, com o nome de Pobres Cavaleiros de Cristo, destinava-se a proteger os peregrinos da Terra Santa. Atrás dos bastidores, essa ordem servia de banco para os Papas e soberanos.
[xvi] Maneira de viver.
[xvii] Que coisa ridícula e tipicamente medieval: usar artifícios como esses para iludir o povo... Papas e antipapas! Ó clero trapaceiro, tal qual o cupinzeiro recheado da bosta dos próprios insetos...
[xviii] Do latim inquinatio - mancha; nódoa; mácula.
[xix] Reformador religioso tcheco, professor da Universidade de Praga, excomungado por denunciar a podridão da igreja e adotar as idéias de Wycliffe.
[xx] Reformador religioso tcheco, discípulo de Jan Huss e seguidor de Wycliffe.
[xxi] Teólogo inglês (1330-1384), anticlerical por excelência, alegava que a Igreja deveria dar o exemplo de pobreza e proclamava a autoridade exclusiva da Bíblia sobre o papado.
[xxii] Declaração em favor de uma igreja nacional na França.
[xxiii] Monge que estabeleceu a Reforma protestante, nascido em Eisleben, Alemanha, em 1483. Lutero, revoltado com o comércio da Igreja Romana, especialmente com o abuso da prática das indulgências, redige as suas famosas 95 teses, fixando-as nos portões da Igreja de Wittemberg. Em 1520, o papa Leão X edita a bula Exsurge, dando ao reformador um prazo para retratação. Lutero, diante dos seus seguidores, queima numa fogueira a bula papal, o documento pontifício da sua própria excomunhão.   
[xxiv] Um neologismo, como imagética.
[xxv] Retirada da Rússia. 
[xxvi] É dramático e um tanto hipócrita ter que grafar, por amor às letras vernáculas, estas palavras com maiúsculas...
[xxvii] Duas ideias que convêm a uma terceira, convêm entre si. No caso em questão, temos um polissilogismo.
[xxviii] Aditamento na sentença da fogueira que permitia ao carrasco poupar o sofrimento do herege através de uma morte abreviada.
[xxix] Filósofo americano (1876-1957) criador do Egocentric Predicament.
[xxx] Do grego noetós (da mente). Segundo Platão, um tipo de pensamento mais elevado que conduz às formas de conhecimento da justiça e do bem.

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