A RITUALIZAÇÃO DO SEM-SENTIDO
O conhecimento humano não consegue abarcar
nenhuma prova da existência de Deus ou da sua inexistência. Só pressupostos de
ambos. Como conceito primário e mínimo da existência, inferimos normalmente
Deus como a causa primeira do universo, a Causa
Sui[i].
Quando Lutero declara que “a razão é a prostituta do Diabo”, representa o golpe
de morte na questão filosófica sobre a existência de Deus. O reformador, monge
astuto, propõe-nos o credo quia absurdum
est[ii].
Bem, Lutero não era em nada melhor que os clérigos de hoje.
Com o vazio existencial, que é próprio da
natureza humana, surge o impulso básico natural da busca pela divindade desde
os primórdios. Esse ato súbito que escapa do controle do indivíduo é de
questionável necessidade biológica e psíquica. É o impulso natural da criatura
em busca do criador. No meio desse
vão, inicia-se a formação de uma crença qualquer, instala-se um processo que
propõe respostas lúcidas. A esse complexo processo, sem qualquer interferência
divina, sendo a verdade fatalmente relativa do ponto de vista do sujeito, e
tendo como fim último evitar o caos, dá-se o nome de religião. O caos,
simplesmente, porque “se Deus morreu, tudo é permitido”. Ora, sem fé suspeita-se
que a moral não se justifique, o que poderia gerar a anomia[iii].
Para Durkheim, o risco de dissolvência das normas sociais seria produzir o
estado de ruptura e caos social. Então, Deus é mesmo necessário, mas como o
homem não vislumbra o criador sem a máquina litúrgica e dogmática, façamos Deus
à nossa imagem e semelhança. Isto quer dizer, vamos montar a peça, pois os fins
justificam os meios – os deuses sempre atuam no palco do espetáculo da farsa –,
da brutalidade humana.
Há milhares de anos, um beato achou que poderia
se comunicar com os bichos a fim de tirar partido deles. Procurou um macaco e
passou horas balbuciando coisas dúbias diante dele. Gesticulava com a ênfase de
um preceptor. Durante todo o tempo, o macaco coçava a cabeça, dava uns pulinhos
discretos, coçava o traseiro e, por fim, num gesto estranhíssimo, impossível de
ser descrito, foi embora, explodindo numa gargalhada final com os seus dentes
amarelos à mostra. O beato prosseguiu desanimado até que se deparou com um
asno. Repetiu a mesma coisa com o bicho por um longo tempo e o asno, em sinal
de aceitação, resolveu segui-lo. No caminho, cada novo asno que surgia passava
a integrar o grupo irmão. Assim, o sectarismo foi inventado...
Hoje, milhares de anos depois desse caso
infeliz, existem multidões de homenzinhos manipuladores, com a mediocridade
sendo expulsa pelos poros, formando exércitos de seguidores e nadando em
dinheiro. A religião mais sedutora, sem dúvida, é aquela que promete prosperidade
ao povo, assim como os favores aos seus líderes, os mesmos que celebram suas
negociatas sobre altares, oferecem bênçãos, distribuem dons e, às vezes, a
gente ouve falar que copulam com algumas irmãzinhas.
No probabilismo, jogamos com a hipótese
mais cética de não se poder atribuir probabilidades a todas as coisas e a
hipótese mais dogmática de atingirmos a certeza dessas coisas. Na segunda
concepção, é provável que um deus nos ouça através da nossa criatividade
fideísta cega. Quanto maior for o grau de estupidez e ingenuidade alcançado por
nós, mais atrativa poderá ser a nossa fé.
No mercado do fideísmo, grandes
oportunidades são abertas para os que esperam as coisas caírem do céu. No
balcão, alguns mimos que conduzem a Deus: o rosário eletrônico que funciona com
baterias e que, apertando uma tecla, repete as rezas por você – bastante
prático; o pastor americano Robert Tilton, oferece ao público pelo correio um
belo pôster com a sua cara equina, mais um calendário de vinte e um dias para o
início de uma série de milagres, por ofertas que vão até bem mais de mil
dólares; já o Vaticano se prontifica a enviar um pergaminho com certificado de aprovação,
decorado em letras góticas, com a bênção papal, pela irrisória quantia de trinta
e cinco dólares. Existem ainda, por todo o mundo, centenas de engarrafadoras de
água do rio “Jordão”, pronta para envio, com certificado de autenticidade em
ouro e o mesmo acontece com vidrinhos de terra do “Sinai”. Pastorecos
americanos enviam chaves de plástico pelo correio para abrir a porta das bênçãos;
rosas e alianças ungidas são ofertadas aos fiéis depois dos cultos em algumas
igrejas; lenços ungidos, ainda, para aplicar sobre as enfermidades e muitos
amuletos mais... Autênticos exemplos da religião como paranoia. Mas o povo,
doente da alma, precisa ser feliz. Povo desafortunado, que precisa
constantemente de um pajé urbano.
O ideário pentecostalista assenhoreou-se do
Brasil, notadamente do Brasil xucro[iv].
Nos entremeios da pobreza e da ignorância é que estão as melhores vítimas para
serem exploradas. O lema sedutor aplicado pelos líderes ao rebanho infeliz -
“dinheiro, saúde e prosperidade”. O rebanho já nem é infeliz, é nauseabundo!
Um fato que desperta a maior das
curiosidades, no meio de tantas dissensões doutrinárias, entre as centenas de
denominações protestantes, é que há uma harmonia perfeita quando se fala em
dinheiro. Certa vez, no passado distante, perguntei a um pastor sobre a questão
da guarda do sábado pelos evangélicos. A resposta foi a de sempre, a mesma:
“Filho[v],
os adventistas do sétimo dia se dizem evangélicos, mas insistem em guardar o
sábado que é uma coisa da lei de Moisés e foi abolida por Jesus... Os
verdadeiros filhos de Deus reservam o domingo para o espírito!”. Em seguida,
pensei: “Onde será que esta besta foi buscar na Bíblia a guarda do domingo?”.
Disse-me o tal mais: “Você ainda não entendeu que Jesus morreu na cruz para nos
libertar do peso da lei?”. Ao que, novamente, indaguei: “Então, já que não é
para guardarmos nada da lei mosaica, por que temos que dar o dízimo?”. A
resposta foi uma onomatopéia do engolir em seco: “Blurp!”... A retórica de um
grimo da velhacaria sectária.
A torpeza é a seguinte: nos tempos do
apóstolo Paulo, a Igreja dizia-se mais do que militante, era triunfante. Daí
então, dizem que as coisas aconteciam, dava-se tudo ao próximo para que ninguém
tivesse falta de coisa alguma. Não dez por cento apenas. Os judeus entregavam o
dízimo aos sacerdotes do Antigo Testamento e não eram dólares, mas o resultado
das colheitas. O que acontece hoje é bem diferente. Os líderes espirituais,
sutis, aterrorizam o rebanho acuado com declarações bíblicas dos judeus da
antiguidade: “Roubará o homem a Deus? Todavia vós me roubais e dizeis: em que
te roubamos? Nos dízimos e nas ofertas alçadas”[vi].
Leiloeiros! Oportunistas abençoados...
Lembro-me, há muitos anos, quando fui
adepto convicto da neurose pentecostalista, meu filho era criança e adoeceu. O
único dinheiro que tinha para pagar ao médico era o dízimo guardado numa latinha
com desvelo extremo. Minha mulher e eu tememos o castigo por “roubar ao Senhor”
e decidimos investir na fé, não usamos o dinheiro. Sim, porque o Deus que nos
foi apresentado poderia ter um rompante e jogar um raio na cabeça do meu filho[vii].
Felizmente, isso não aconteceu. Meu filho recuperou-se sem o médico. Alguns
poderiam dizer que venci a prova e Deus poupou meu filho. Que pai fervoroso! Tempos
depois, vi-me um pai inconsequente, louco e fanático, podendo ter acontecido
algo ruim por causa do sectarismo. Mais adiante, ele voltou a ter novos
problemas de saúde. Desta vez, fui até a latinha e paguei o tratamento ao
médico. Meu filho ficou bom –, deixei de ser paranoico; de presentear a
pastorada com o dízimo e acabei com a festinha deles. A adoção do dízimo hoje,
ou melhor, a extorsão sobre o pobre cristão, é de caráter obsceno tipificado.
Se os crentes são coagidos a dar o
dízimo, que guardem toda a lei! Caso queiram guardar a lei, que seja na
íntegra.
Ainda, na mesma passagem bíblica, lemos:
“Trazei todos os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na minha
casa, e depois fazei prova de mim, diz o Senhor dos exércitos, se eu não vos
abrir as janelas do céu, e não derramar sobre vós uma bênção tal, que dela vos
advenha a maior abastança”. Ora, será que os crentes não enxergam a sua própria
realidade? Onde está a abastança dos protestantes? Seria abastança espiritual?
Mas o texto se refere exclusivamente à abastança em vida, que era a meta de Yahweh
para o seu “povo eleito”, o judeu. O Deus do Antigo Testamento não prometia céu
nem inferno. As promessas eram de prosperidade, saúde, paz e a terra de Canaã.
Quantos judeus já vimos na penúria extrema, moradores de rua ou em barracos
partilhados com ratos? Será que Yahweh os protege quando recebe o dízimo deles?
Não. Simplesmente, eles “se protegem”! Porque são mais inteligentes do que os
cristãos, ao entenderem com perfeição o que significa grupo social. Melhor
ainda, o que significa “grupo étnico forjado a ferro e fogo”, imposto através
da capa de tradição da Torah. Nacionalismo religioso! Isso é coisa de gênios
antigos: grupos autóctones na antiga Mesopotâmia vislumbrarem a possibilidade
de se tornar nação escolhida, criando leis, inscritas num livro santo. Uma
ideia genial de um povo eleito por uma força monoteísta, extremamente bem
construída por eles para, em seguida, dominar o mundo!
Então, os pastores protestantes dolosos pegaram
carona: a lei que era para os judeus da Antiguidade, passou a ser “lei” também para
os cristãos... Assim triunfou a pastorada criativa, que hoje até parcela o
dízimo no cartão de crédito. Mas, se o povo gosta de ser enganado, por que
defender o povo? Os fiéis não querem ajuda. São autossuficientes. Santificação
já não importa como no passado, querem pagar por ilusão... Acham-se salvos e
isto é o bastante.
Todas as agremiações eclesiásticas
protestantes têm em comum o pagamento do dízimo que era imposto,
exclusivamente, ao povo judeu da Antiguidade. Hipócritas e tendenciosos! Pregam
que Jesus cumpriu a lei em si mesmo para nos libertar, desobrigam os fiéis de
cumprimento da lei, mas mantêm o jugo do dízimo sobre os pobres! Sobre aqueles
que, muitas vezes não têm o que comer, mas são leais na entrega dos dízimos aos
seus líderes, abutres da fé, que aterrorizam o povo ingênuo. Como se, de
repente, esse povo deixasse de abrir a bolsa e Deus o castigasse por não
cumprir o dever de dizimista. É aí que se instala o infame sectarismo – a porcalha[viii]
da ditadura dogmática –, que não deixa de ser uma covardia e um truque de conveniência
aplicado no pobre.
Surgem os clubes denominacionais protestantes,
empenhados numa cruzada para recolher o dinheiro e engordar as instituições.
Lei só do dízimo. Lógico, como não existe mais a Igreja triunfante (onde seus
fiéis morriam no Coliseu), o jeito é manter a aparência e proliferar com os
movimentos de crendice popular. Lei da conveniência! Por isso, o textus receptus: a Bíblia como cartilha.
É fato antigo a exploração dos sentimentos
religiosos e, no panorama atual, ela encontra lugar entre os desfavorecidos. A
falta de instrução média, o desinteresse completo do povo na aquisição de
saberes, constitui o adubo do sectarismo, pois é nessa terra inculta que as
sementes de má-fé vão germinar. É nessa condição, igualmente, que as seitas
inoculam doses de elementos estratégicos para o processo de massificação
engendrado pela auri sacra fames[ix].
Dinheiro! Mais dinheiro para o Senhor!
No Brasil, há bem pouco tempo, tivemos um
presidente da República eleito pela maioria do povo evangélico e, pasme-se, o
candidato assumia, para fazer sua campanha, o púlpito de uma importante
“assembleia de santos” cheia de hipocrisia... O pior é que essa igreja teatral
sempre afirmou que os políticos jamais subiriam ao seu púlpito – um vir a ser
de picadeiro circense.
Felizmente, já estamos no crepúsculo desse
modelo atrasado em que o povo menos instruído é a vítima, pois ele já percebe a
fraude em que foi envolvido por tanto tempo. No princípio desse novo século,
certamente haveremos de presenciar a ruína de todos os valores cobertos de
ranço[x]
e brindaremos por uma forma menos massificada, talvez mais individualizada de
intuir o deus que bem entendermos. Ou, até, de não intuir nada, considerando-se
o livre-arbítrio como um pressuposto metafísico de botequim, direito que
pertence à esfera personalíssima do indivíduo. Isto, diga-se de passagem, é um
problema de cada um, assim como o pagamento das contas no final do mês. Então,
posso intuir ou não o que quiser e não tenho que dar satisfações a cristão nenhum.
Uma das coisas mais desconcertantes que já
li, foi quando, às vésperas da sua coroação, Napoleão Bonaparte, mantendo a sua
habitual atitude arrogante, dirigiu-se ao papa: “Porventura, Vossa Santidade
deixou de lembrar que o povo não precisa de Deus, mas sim de religião?...”. Arrazoando,
para que Deus sem religião? O povo não alcança tal feito. Entretanto, Marx, ao
falar sobre o ópio do povo, descartou não somente Deus, mas toda e qualquer
forma de religião. Quer seja como Napoleão, como Marx, ou mesmo como um religioso
qualquer, vale pensar, antes, na desconstrução de toda forma de sectarismo para
dar lugar à construção de uma paisagem moral, íntima, que nos faculte o direito
inalterável e inalienável de entendimento do particular ao universal.
A
partir do que começaremos? Simples: da tolerância com o próximo e de um banho
completo para remover a inhaca[xi]
do sectarismo. O começo, obviamente, não pode ser através de mitos e histórias
como as do dilúvio, ou mesmo a lenda adâmica. Aliás, por falar em dilúvio,
sempre tive a curiosidade de saber se algum casalzinho de cupins se apresentou
para embarcar na arca...
[v] “Filho”, porque eles
precisam ser “carinhosos”, mas devem antes estar acima do rebanho, agindo
sempre como psicólogos que não perdem o controle da situação, aí então, é
filho, amado, você, etc. Sempre acima, no púlpito, em cena no pedestal.
[vii] Eu desconhecia que Deus
só jogava os raios na cabeça dos judeus, pois eles é que estavam obrigados a
cumprir a lei.
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