sábado, 23 de maio de 2015

DESVIOS COGNITIVOS II

O indivíduo só vê qualquer coisa dentro do que acredita, porque já perdeu uma série de pontos de conexão com a realidade e o maior perigo não é a crença em si, mas a convicção dela. Esse princípio guarda relação com o problema da ancestralidade. A família, semente da religião: os pais primeiro, depois, os parentes mais chegados e os amigos que servem de modelo moral. São aqueles que parecem trazer a novidade que oferece o resgate para todos os problemas. Os que impressionam – merecem ser ouvidos e seguidos. Enfim, trata-se de uma nova vida. Pelo menos no verniz das coisas... Toda crença, porém, não passa de verdade provisória e sempre está baseada na inferência paradigmal injuntiva. É também uma questão de segurança interior, o que a religião paterna outorga ao indivíduo de maneira invariável.

Existem duas vertentes para a crença no todo-poderoso. A primeira delas se manifesta como crença numa energia vital, num absoluto impessoal, que se resume à força superior tão somente, sem que haja interferência com os moradores da Terra. Um tipo de deísmo. A segunda vertente, mais corriqueira, é a crença num deus pessoal que nos orienta até quando devemos tomar um cafezinho...

Se algo positivo ocorre em nossa vida, significa que nossas orações foram atendidas pela misericórdia de Deus, ou pelos atributos da nossa fé. Se, ao contrário, algo ruim acontece, é porque Deus prova a nossa fé para aumentá-la, ou porque ainda não é o momento de respostas e isso sempre fará parte do plano divino. Ou, até mesmo, porque Ele resolveu “pesar a mão” sobre nós por várias concupiscências... Essas explicações foram bem construídas, dos antigos hebreus até a cristandade.

Os desvios cognitivos, responsáveis pelas nossas crendices, é que nos fazem desdobrar nossas fantasias, na “constatação” de experiências pessoais com o divino, a ponto de pedir a Deus a vitória do nosso time de futebol e outras besteiras correlatas, que fazem parte da compreensão neanderthalensis.

Notícias políticas, conflitos, tragédias do mundo e fatos sociais narrados pela imprensa, assumem ares escatológicos para os crentes, apocalipsistas enfermos. Intérpretes do catastrofismo nas ocorrências no planeta. Os dias que passam representam para eles o fim do mundo e nos vemos diante do inequívoco ultimatum para a conversão, caso contrário, o que nos sobra é a danação eterna. Só que para cada “conversão” existe uma cor doutrinária e limites diferentes que estabelecem a intensidade da margem estreita do dogma certitudo salutis[1], ilusão que representa passaporte para o céu.

A propagação e difusão do medo regulam o dia a dia dos crentes. Eles não conseguem chegar à percepção de que tantos fatos trágicos, presenciados hoje por nós, são o resultado das leis da natureza em reação à superpopulação mundial. Não entendem que a explosão demográfica desproporcional se espalha sobre a Terra e que o controle da natalidade seria a solução para o planeta, entretanto, eles mal aceitam o planejamento familiar, quanto mais controle da natalidade. Seria do Asmodeus a invenção da pílula?...

A grande prova de que passamos pouco de primatas sociais, é a existência da crença na magia, no xamanismo, desvio que pertence ao gênero homo. A estrutura biológica favorável à crença é tão forte que parece ter nascido com o homem. O cérebro do crente[2], predisposto ao além, envia para a mente a capacidade de “ver” coisas, de encontrar paradigmas significantes em tudo, para depois infundir lógica a esses modelos. Trata-se da ação neural que cria mecanismos pseudonecessários ao equilíbrio emocional. “Achismos” do senso comum situam-se na ordem da inferência paradigmal injuntiva, enquanto que a tentativa de incutir uma lógica infundada estaria num plano menos racional ainda, que denomino de relata refero.[3]

É do homem a presunção de dominar o próximo. Nada melhor, então, do que a invenção das fábulas grosseiras que encerrem ameaças primitivas e promovam o desenvolvimento do medo, através da criação de figuras imaginárias, numa expressão mais ampla do termo. Não importa o grau de incoerência dessas figuras, isso até ajuda no distanciamento da lógica para que as fés se justifiquem. No binômio culpa-medo se hospeda a força religiosa.

Quanto mais irracional é a fé, embora contenha uma nuvem passageira, mais rápida é a possibilidade de chamar atenção. As novidades são uma isca cativante para despertar o interesse dos incautos. En passant, pelos atalhos da subversão intelectual, cabe ao sacerdote provocar um incidente ilusório-perceptivo para chegar à sujeição do homem pelo homem. É aí, então, que contemplamos em cheio o maior exemplo de que a religião não passa de um subproduto da atividade neural.

Outro componente básico, que parece ser imanente ao homem, usado de forma sutilíssima pelo clero, é a superstição. Um mal de várias faces de ignorância rasteira, como no caso das crendices populares, à potencialização, quando é camuflada na aparência e escamoteada na intenção por instituições mais pretensiosas. Por isso, são muitas as formas de superstição criadas pela cristandade.

A Igreja alimenta e utiliza tal sentimento de medo com jeito velado, sob muitas carapuças, para conduzir os fiéis aos grilhões da fé, pois a superstição é instrumento eficaz do clero. Os próprios sacerdotes condenam seus arquétipos explícitos em público, enquanto fazem uso dissuasório dos venenos menos aparentes, em silêncio. Se observarmos com atenção a técnica empregada pelo clero para inocular a superstição na mente dos que não têm a razão como seu fio condutor, entenderemos o que é um devoto. É aquele que constrói castelos, busca no sobrenatural a felicidade, deixa-se envolver ingenuamente por emoções banais que procura no além e nunca dá o braço a torcer.



[1] Salvo conduto – a própria salvação – a convicção de ser eleito para a eternidade com Deus.
[2] Quando me refiro à palavra crente, quero acentuar que trato de um sentido abrangente e não de um devoto do cristianismo apenas.
[3] “Conto o que me contaram” – processo popular de tentativa de isenção de um boato qualquer.

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