quarta-feira, 27 de maio de 2015

A INVENÇÃO DO MONOTEÍSMO I

Tudo se resume à necessidade de venerar, que parece surgir com o homem. Viria, como já disse, misturada ao leite materno e as primeiras representações de divindades têm mais de dez mil anos.

Nos tempos pré-históricos, os mamíferos do gênero homo já demonstravam preocupações com a morte e praticavam rituais fúnebres, os mais estranhos imagináveis. Nesses ritos, as cores eram fundamentais; juntavam quinquilharias aos corpos; perfumes; enfim, um monte de coisas esdrúxulas que representavam a crença na existência dos seres no além.

As primeiras manifestações de deidades eram de figuras fêmeas, até desembocarem numa entidade “deusa-mãe”. Exatamente a necessidade materna, já que a fêmea sempre se manifestou mais dadivosa e compreensível do que os machos. Tem-se em vida uma fabricação da Nossa Senhora mais recente, que assumiu, por sua vez, não poucas identidades... Bem, a mulher já tem um grande trunfo: ela é sempre a doadora da vida.

Figura preponderante nas culturas antigas é a “grande-mãe”, a deusa-vaca Hathor, ama de leite dos primeiros reis da Suméria, onipresente no céu, na terra, nas águas abaixo da terra e no útero. No estágio neolítico, era a “deusa-terra”, mãe-protetora-nutridora da vida e que abarcava os mortos para que fossem renascidos. Nela estavam reunidos os valores transcendentais e místicos da grande deusa protetora. O pai, simplesmente, não existe nessa mitologia. A grande mãe é nutridora, protetora, destrutiva e devoradora, era dualista – mãe boa e má ao mesmo tempo. Essa figura da grande mãe foi o primeiro objeto de adoração do homo sapiens. A entidade do alvorecer da nossa espécie.

Adiante, desenvolveu-se o conceito da deusa-mãe, que copulava e dava à luz touros. Depois que a grande mãe, a grande deusa, virou instituição, iniciaram-se as atividades ritualísticas, segundo a cabeça daqueles paranoicos, é lógico. A partir daí, os homens descobriram que certas práticas necessitavam ser transformadas em normas indiscutíveis, pois seriam administradas por seres do além e, invariavelmente, o “sagrado” tinha que virar convenção. Assim, cada comunidade aceitava as regras do seu xamã e pronto.

Como sagrado é sentimento, os primeiros manipuladores da fé descobriram meios de enganar os seus iguais – a exploração do homem pelo homem. Quando existe um forte respeito a alguma coisa com o assentimento coletivo, tal coisa eleita como sagrada jamais pode ser contestada ou rejeitada. São engraçadas essas baboseiras sobre o sagrado, não? Paremos para pensar nisso. Se refletirmos honestamente e priorizarmos a razão, perceberemos que o “sagrado” é a maior peça já pregada na civilização... É algo tão hipócrita, tolo, infantil, que riremos algum dia do nosso passado de crendices e fantasias.

No período em que o homem primitivo abandonou as cavernas para construir as primeiras casas, tornou-se sedentário. O conceito de xamanismo foi diluído. O homem deixa de lado a adoração das ocorrências fenomênicas da natureza, como as tempestades, os raios, os trovões, o fogo, as formações de nuvens, para achar um processo de identificação com ele mesmo, o antropomorfismo. Essas formas teriam que ser idênticas ao próprio homem, mas com alto nível de perfeição admitida, mas superior aos homens em tudo. Consubstanciaram-se, então, os graus de sacralização.

Do xamã ao sacerdote, do sujeito que dançava, fazia piruetas e urrava para invocar os espíritos, àqueles que usavam mais a mente para enganar os seus iguais – a classe sacerdotal se masculiniza de repente. O porquê, ninguém chegou à conclusão, mas foi o início do machismo na propagação da fé e os deuses pressupunham-se masculinos – é óbvio.

Vale, por antecipação, que Michelangelo, com base nesses primórdios, pintou um deus no teto da Sistina que toca o dedo de Adão. Imagine-se aquela vasta barba branca cheia de ácaros – de dermatoses por baixo –, sem fazer absolutamente nada até criar Adão. Aquele deus “jogava paciência” por milênios seguidos até, supostamente, chegar à conclusão de criar essa coisa inviável, nojenta, reles e indolente, chamado homem, que povoou a terra só criando problemas, já que o vazio teria sido bem melhor... Depois ainda surgiu o culto aos antepassados – deu-se uma febre de venerar ossos, na aurora da humanidade.

Freud, no início do século vinte, reuniu-se com Jung num congresso de psicanálise em Viena e discutiram fortemente sobre o patriarcado na história, a ponto de Freud cair no chão motivado por uma síncope provocada pelos ataques de Jung. Principiava a ruptura entre os dois. Deu-se o problema quando discutiam os mitos judaicos. Freud sustentou o nascimento do monoteísmo baseado no faraó Amenófis IV, da décima oitava dinastia (alguns afirmam que era Amenhotep IV), que tomou a posteriori o nome de Akhenathon, “Adorador do sol e herético”.

Os faraós seguiam o politeísmo. Mas Amenófis, com sua mulher Nefertite, contrariou as regras e instituiu o deus Athon, que era o sol, em lugar do culto a Amon, deus oficial do Egito. Amon deveria ser preterido, dando lugar a Athon, único deus – o sol divino. Amenófis entendeu a superioridade do deus sol sobre todos os outros deuses, por isso foi reconhecido como pai comum dos homens, o Dadivoso. Os ideais do faraó elevaram-no ao principal dos reis egípcios e um dos primeiros reformadores da humanidade. Amenófis, que encabeçou batalhas, aprofundou a filosofia do antigo Egito, impôs reformas religiosas e sociais como nenhum outro – ficou famoso por seus feitos heroicos. Divulgou os ensinamentos de Athon nas raízes da verdade e do amor.

No seu palácio, em 1370 a.C., ao lado de Nefertite e seu séquito, proclamou: “Egípcios, desde que uso a coroa, examinei tudo o que existe. Nosso povo se prende à idolatria e venera um exército de deuses que estão abaixo de Amon, cujo pontífice é Beckanchos. Eu, porém, declaro que não há nenhuma divindade que deseje ser adorada por meio de sangue, homicídio e sacrifícios; afastai-vos do culto aos deuses. Só há um Deus que paira sobre tudo e dirige nosso destino. Nosso deus é Athon! Deus do sol, o próprio sol, que a todos sustenta. Renuncieis a Amon e a seus deuses e segui minha doutrina. Sejamos todos iguais agora, antes que a morte nos iguale. Os seminários estão fechados, os sacerdotes nunca foram servos de deus. Sua doutrina é uma heresia e deve ser negada! Fecho todos os templos de Amon, as fontes de renda dos sacerdotes. Confisco seus estaleiros e navios, oficinas e pedreiras, todas as terras e celeiros, e todo o gado dos sacerdotes, que, em raiva incontida e despotismo, constituem um Estado dentro da nação. Os sacerdotes não são mais imunes e podem ser levados ao tribunal. Todos os semíticos, provenientes da Babilônia e que introduziram costumes reprováveis no Egito, devem ser expulsos”.

As coisas caminharam em paz por muito tempo, até que Akhenathon começou a radicalizar o culto a Athon de tal forma que o povo se revoltou e, aos poucos, diante dos fanatismos de Akhenathon, a doutrina do deus sol apagou-se. A ideologia de Akhenathon só durou dezenove anos, embora tenha exercido uma política de clemência, justiça e tolerância. Os amigos deixaram-no; a própria esposa e seu sacerdote. Abandonaram-no todos, como os ratos abandonam o navio a naufragar. Até seu médico coroou a traição quando ministrou ao rei um “medicamento”, a mando dos sacerdotes, que era puro veneno...

Nesse ângulo, deixou o Egito um dos maiores pacificadores da Antiguidade. Suas últimas palavras (devidamente documentadas) foram: “O reino eterno não pode ser colocado dentre dos limites terrestres. Tudo retornará ao antigo. O medo, o ódio, e a injustiça voltarão a reinar e os homens sofrerão novamente. Teria sido melhor não ter nascido, para que não viesse todo o mal que há sobre a terra”.

A religião de Amon retornou, com o turbilhão de deuses, e sua vitória foi proclamada pelo novo faraó, através de um decreto. Numa concordata entre os sacerdotes e outros faraós, a religião de Amon foi restabelecida. Aqui, então, começa a história que nos interessa: a invenção do Livro – logo, da religião do Livro –, a construção da “infalível” palavra de Deus... Quantos tijolos, pedras gravadas, papiros, pergaminhos, milhares de cópias forjadas. Livro, objeto, decepção – “e os homens sofrerão novamente”.

Once upon a time[1], um grupelho bronco, xucro, mas ardiloso, concebeu por intuição cheia de veneno o marketing mais esperto arquitetado até então. Diante da confusão daquele mundinho cego, barbárie das antigas, o grupo esperto começou a cogitar na criação de um deus que poderia ter uma prole inicial e se tornar o pai de uma grande nação. Essa pretensa nação poderia dar ao deus grandes alegrias, aborrecimentos, mas, sobretudo, alimentar um marketing perfeito do seu nome pelos quatro cantos da Terra... Por que não usar os fatos recentes que um novo monoteísmo poderia exibir? Por que não um paizão protetor de uma raça inteira?

Um povo escolhido por Deus. Para que mais? Na mente de quem tenha nascido no século vinte e um, esse conceito poderia encontrar espaço? Onde há coerência no fato de Deus priorizar um povo cheio dos mesmos erros que outros povos “ímpios” cometiam e ainda ser escolhido como povo de Deus? É uma questão de pura reflexão. Que Deus seria esse? O de um pretérito lendário! Qual o motivo dessa crença hoje? De manter sagradas as lendas! Por isso, ainda nos arrastamos como répteis cognitivos em plena época dos genomas, bóson de Higgs e arquivos nas nuvens...

Mas lenda quando fica sagrada, dura. Pertencer a um povo eleito que não precisa fazer força para ser feliz, aliás, para nada, deve ser muito bom. De forma natural, esse povo se assume como dono do ouro e da prata, conforme conta a Torah.

Para que um povo escolhido se caracterize como tal, entretanto, pressupõe-se uma nação, regras, leis, ordenanças, conquistas, bem-aventuranças, deveres e obrigações. É preciso, então, que um livro contenha tudo isso e ainda mais: que o relato da epopeia do tal povo eleito se torne inquestionável. Sagrado. Aí está o sucesso do livro. O sagrado é temido, amado e obedecido pela massa.

O que significa sagrado? Algo sagrado não seria um desvio cognitivo enviado pelo cérebro à nossa mente para também nos dar a sensação de paz e ordem social? Esse é o tema central a ser analisado neste livro, pelo questionamento do sagrado hoje.

A única referência escrita nos anais egípcios sobre os hebreus da Antiguidade, foi a descoberta entre as ruínas de uma coluna do templo do faraó Merenptah, cerca de 1200 a.C., que diz: “Israel foi destruída e não existe mais a sua semente”. É só o que se tem escrito pelos egípcios sobre Israel. Não há nenhum Abrahão histórico. Nenhum Moisés histórico. Absolutamente nada que possa ser sustentado sob o ponto de vista científico ou pelo método histórico-crítico sobre o “povo de Deus” e sua epopeia. A não ser a própria Torah, o Pentateuco, que são os cinco livros que compõem a lei judaica: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Nasce a suspeição de literatura exclusivista.

Aquele grupinho mesopotâmico, autóctone, xucro, sumamente fossilizado, porém esperto em contrapartida, esperto no que entendemos hoje: o malandro mesmo. O “safo”! Autóctone, o sujeito da região, do local, do pedaço... Pois o cara mais esperto sempre foi o que se deu melhor! Eles eram daquela região do mapa e precisavam inventar algo maior que resolvesse a situação da existência social do próprio povo.

Aquele grupo autóctone achou um jeito de driblar um monte de deuses desgastados que não funcionavam, nem para um lado, nem para o outro. Todo mundo na época já sabia disso, pois era uma mentira de polichinelo mais do que sem vergonha, desgastada há séculos e, então, resolveram firmar a ideia já meio conhecida de um deus supremo sem nenhum outro por perto, sozinho dando as cartas – soberano de verdade!... Mas com um detalhe: deveria ser uma história registrada num livro, sobre o povo escolhido pelo novo deus. Um povo que seguisse as regras divinas para receber, como recompensa, uma Terra Prometida cheia de privilégios, com todas as garantias.

Começava um grande negócio por ali. A invenção, formalizada e escrita, do monoteísmo. Um negócio que iria virar povo e nação, bastando um pouquinho de esforço. Tinha que se achar um nome para o deus, um motivo muito criativo que convencesse o povaréu da paternidade divina, que foi a ideia de raça eleita, e o mais difícil: enfiar na cabeça de todo mundo que aquele livro era sagrado! Embora essa ideia não seja minha, o momento da história antiga favoreceu tudo e a coisa está aí até hoje. Só não sei até quando...

Christopher Hitchens, na sua honestidade filosófica, nos deixou textos profundos e desafiadores: “Não é preciso dizer que nenhum dos acontecimentos medonhos e desordeiros no Êxodo jamais se deu. Os arqueólogos israelenses estão entre os mais profissionais do mundo, mesmo que seu estudo tenha sido algumas vezes infectado por um desejo de provar que o pacto entre Deus e Moisés teve algum fundamento. Nenhum grupo de escavadores ou acadêmicos trabalhou mais duro ou com maior expectativa que os israelenses que vasculharam as areias do Sinai e de Canaã. O primeiro deles foi Yigael Yadin, cujo trabalho mais conhecido foi realizado em Massada e que foi encarregado por David Ben-Gurion de desenterrar os ‘pequenos documentos’ que justificariam a reivindicação por Israel da Terra Prometida. Até bem pouco tempo, esses esforços evidentemente politizados tiveram alguma plausibilidade superficial. Depois, foi realizado um trabalho mais abrangente e objetivo, apresentado principalmente por Israel Finkelstein, do Instituto de Arqueologia da Universidade de Tel-Aviv, e seu colega Neil Asher Silberman. Esses homens consideravam a ‘Bíblia Hebraica’ bela, ou Pentateuco, e viam a história da moderna Israel como uma grande inspiração no que diz respeito a um humilde apelo à indiferença. Mas a conclusão deles é definitiva, e ainda mais confiável por colocar as provas acima do interesse pessoal. Não houve fuga do Egito, ninguém vagou pelo deserto (muito menos durante o inacreditável período de quatro décadas mencionado no Pentateuco), nem houve a conquista dramática da Terra Prometida. Tudo foi de forma incompetente inventado em uma época posterior. Também não há nenhuma crônica egípcia que mencione esse episódio, mesmo que de passagem, e o Egito foi a grande potência militar em Canaã e na região do Nilo em todas as épocas. Na verdade, boa parte das provas indica o contrário. A arqueologia confirma a presença de comunidades de hebreus na Palestina há milhares de anos. Devido à ausência de ossos de porco nos monturos e vazadouros, que mostra a existência de um modesto ‘reino de David’, pode-se deduzir tal coisa. Todos os mitos mosaicos, porém, podem ser fácil e seguramente descartados. Não acho que isso seja o que os críticos amargos da fé algumas vezes chamam de conclusão ‘reducionista’. É possível extrair um grande prazer do estudo da arqueologia e dos textos antigos, e também aprender muito. E isso sempre nos leva mais perto da verdade. Por outro lado, mais uma vez, é levantada a questão do antiteísmo. Em O futuro de uma ilusão, Freud destaca o ponto óbvio de que a religião sofria de uma deficiência incurável: era excessivamente fruto de nosso próprio desejo de fugir da morte ou sobreviver a ela. Essa crítica ao pensamento positivo é forte e irrespondível, mas ela na verdade não lida com os horrores, as crueldades e as loucuras do Velho Testamento. Quem, com exceção de um antigo sacerdote – tentando conseguir poder se valendo do recurso aprovado do medo –, poderia desejar que essa trama, lamentavelmente tecida de fábula, contivesse qualquer verdade?”.

A primeira tentativa honesta de sistematizar o conceito de monolatria foi a do faraó Akhenathon. Não deu certo e ele morreu frustrado. Mas o sol não era tão robusto e convincente para ser um deus, pois logo levantaria questionamentos de quem o teria criado. A bandalheira egípcia do politeísmo era bem mais interessante, mormente quanto às licenciosidades aceitas. Ninguém quer nada certo... Basta refletir um pouco sobre o turbilhão de santos, que nada mais são do que deuses menores que povoam o mundo católico. Isso não é politeísmo? É henoteísmo? É incompetência de Deus para justificar tantos assistentes? O que significa isso? Veneração de ossos ou de fantasmas? Deus com anemia.


[1] Era uma vez, há muito tempo...


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