A INVENÇÃO DO MONOTEÍSMO I
Tudo se resume à
necessidade de venerar, que parece surgir com o homem. Viria, como já disse,
misturada ao leite materno e as primeiras representações de divindades têm mais
de dez mil anos.
Nos tempos
pré-históricos, os mamíferos do gênero homo
já demonstravam preocupações com a morte e praticavam rituais fúnebres, os mais
estranhos imagináveis. Nesses ritos, as cores eram fundamentais; juntavam
quinquilharias aos corpos; perfumes; enfim, um monte de coisas esdrúxulas que
representavam a crença na existência dos seres no além.
As primeiras
manifestações de deidades eram de figuras fêmeas, até desembocarem numa entidade
“deusa-mãe”. Exatamente a necessidade materna, já que a fêmea sempre se
manifestou mais dadivosa e compreensível do que os machos. Tem-se em vida uma
fabricação da Nossa Senhora mais recente, que assumiu, por sua vez, não poucas
identidades... Bem, a mulher já tem um grande trunfo: ela é sempre a doadora da
vida.
Figura preponderante nas culturas antigas é a
“grande-mãe”, a deusa-vaca Hathor, ama de leite dos primeiros reis da Suméria,
onipresente no céu, na terra, nas águas abaixo da terra e no útero. No estágio
neolítico, era a “deusa-terra”, mãe-protetora-nutridora da vida e que abarcava
os mortos para que fossem renascidos. Nela estavam reunidos os valores
transcendentais e místicos da grande deusa protetora. O pai, simplesmente, não
existe nessa mitologia. A grande mãe é nutridora, protetora, destrutiva e devoradora,
era dualista – mãe boa e má ao mesmo tempo. Essa figura da grande mãe foi o
primeiro objeto de adoração do homo
sapiens. A entidade do alvorecer da nossa espécie.
Adiante, desenvolveu-se
o conceito da deusa-mãe, que copulava e dava à luz touros. Depois que a grande mãe,
a grande deusa, virou instituição, iniciaram-se as atividades ritualísticas,
segundo a cabeça daqueles paranoicos, é lógico. A partir daí, os homens
descobriram que certas práticas necessitavam ser transformadas em normas indiscutíveis,
pois seriam administradas por seres do além e, invariavelmente, o “sagrado”
tinha que virar convenção. Assim, cada comunidade aceitava as regras do seu
xamã e pronto.
Como sagrado é sentimento, os primeiros
manipuladores da fé descobriram meios de enganar os seus iguais – a exploração
do homem pelo homem. Quando existe um forte respeito a alguma coisa com o
assentimento coletivo, tal coisa eleita como sagrada jamais pode ser contestada
ou rejeitada. São engraçadas essas baboseiras sobre o sagrado, não? Paremos
para pensar nisso. Se refletirmos honestamente e priorizarmos a razão, perceberemos
que o “sagrado” é a maior peça já pregada na civilização... É algo tão hipócrita,
tolo, infantil, que riremos algum dia do nosso passado de crendices e fantasias.
No período em que o
homem primitivo abandonou as cavernas para construir as primeiras casas,
tornou-se sedentário. O conceito de xamanismo foi diluído. O homem deixa de
lado a adoração das ocorrências fenomênicas da natureza, como as tempestades,
os raios, os trovões, o fogo, as formações de nuvens, para achar um processo de
identificação com ele mesmo, o antropomorfismo. Essas formas teriam que ser
idênticas ao próprio homem, mas com alto nível de perfeição admitida, mas superior
aos homens em tudo. Consubstanciaram-se, então, os graus de sacralização.
Do xamã ao sacerdote, do
sujeito que dançava, fazia piruetas e urrava para invocar os espíritos, àqueles
que usavam mais a mente para enganar os seus iguais – a classe sacerdotal se
masculiniza de repente. O porquê, ninguém chegou à conclusão, mas foi o início
do machismo na propagação da fé e os deuses pressupunham-se masculinos – é
óbvio.
Vale, por antecipação,
que Michelangelo, com base nesses primórdios, pintou um deus no teto da Sistina
que toca o dedo de Adão. Imagine-se aquela vasta barba branca cheia de ácaros –
de dermatoses por baixo –, sem fazer absolutamente nada até criar Adão. Aquele
deus “jogava paciência” por milênios seguidos até, supostamente, chegar à
conclusão de criar essa coisa inviável, nojenta, reles e indolente, chamado
homem, que povoou a terra só criando problemas, já que o vazio teria sido bem melhor...
Depois ainda surgiu o culto aos antepassados – deu-se uma febre de venerar
ossos, na aurora da humanidade.
Freud, no início do
século vinte, reuniu-se com Jung num congresso de psicanálise em Viena e
discutiram fortemente sobre o patriarcado na história, a ponto de Freud cair no
chão motivado por uma síncope provocada pelos ataques de Jung. Principiava a
ruptura entre os dois. Deu-se o problema quando discutiam os mitos judaicos.
Freud sustentou o nascimento do monoteísmo baseado no faraó Amenófis IV, da
décima oitava dinastia (alguns afirmam que era Amenhotep IV), que tomou a posteriori o nome de Akhenathon, “Adorador
do sol e herético”.
Os faraós seguiam o
politeísmo. Mas Amenófis, com sua mulher Nefertite, contrariou as regras e
instituiu o deus Athon, que era o sol, em lugar do culto a Amon, deus oficial
do Egito. Amon deveria ser preterido, dando lugar a Athon, único deus – o sol
divino. Amenófis entendeu a superioridade do deus sol sobre todos os outros
deuses, por isso foi reconhecido como pai comum dos homens, o Dadivoso. Os
ideais do faraó elevaram-no ao principal dos reis egípcios e um dos primeiros reformadores
da humanidade. Amenófis, que encabeçou batalhas, aprofundou a filosofia do
antigo Egito, impôs reformas religiosas e sociais como nenhum outro – ficou famoso
por seus feitos heroicos. Divulgou os ensinamentos de Athon nas raízes da
verdade e do amor.
No seu palácio, em 1370
a.C., ao lado de Nefertite e seu séquito, proclamou: “Egípcios, desde que uso a
coroa, examinei tudo o que existe. Nosso povo se prende à idolatria e venera um
exército de deuses que estão abaixo de Amon, cujo pontífice é Beckanchos. Eu,
porém, declaro que não há nenhuma divindade que deseje ser adorada por meio de
sangue, homicídio e sacrifícios; afastai-vos do culto aos deuses. Só há um Deus
que paira sobre tudo e dirige nosso destino. Nosso deus é Athon! Deus do sol, o
próprio sol, que a todos sustenta. Renuncieis a Amon e a seus deuses e segui
minha doutrina. Sejamos todos iguais agora, antes que a morte nos iguale. Os
seminários estão fechados, os sacerdotes nunca foram servos de deus. Sua
doutrina é uma heresia e deve ser negada! Fecho todos os templos de Amon, as
fontes de renda dos sacerdotes. Confisco seus estaleiros e navios, oficinas e
pedreiras, todas as terras e celeiros, e todo o gado dos sacerdotes, que, em
raiva incontida e despotismo, constituem um Estado dentro da nação. Os
sacerdotes não são mais imunes e podem ser levados ao tribunal. Todos os semíticos,
provenientes da Babilônia e que introduziram costumes reprováveis no Egito,
devem ser expulsos”.
As coisas caminharam em
paz por muito tempo, até que Akhenathon começou a radicalizar o culto a Athon
de tal forma que o povo se revoltou e, aos poucos, diante dos fanatismos de Akhenathon,
a doutrina do deus sol apagou-se. A ideologia de Akhenathon só durou dezenove
anos, embora tenha exercido uma política de clemência, justiça e tolerância. Os
amigos deixaram-no; a própria esposa e seu sacerdote. Abandonaram-no todos,
como os ratos abandonam o navio a naufragar. Até seu médico coroou a traição
quando ministrou ao rei um “medicamento”, a mando dos sacerdotes, que era puro
veneno...
Nesse ângulo, deixou o
Egito um dos maiores pacificadores da Antiguidade. Suas últimas palavras
(devidamente documentadas) foram: “O reino eterno não pode ser colocado dentre
dos limites terrestres. Tudo retornará ao antigo. O medo, o ódio, e a injustiça
voltarão a reinar e os homens sofrerão novamente. Teria sido melhor não ter
nascido, para que não viesse todo o mal que há sobre a terra”.
A religião de Amon
retornou, com o turbilhão de deuses, e sua vitória foi proclamada pelo novo
faraó, através de um decreto. Numa concordata entre os sacerdotes e outros
faraós, a religião de Amon foi restabelecida. Aqui, então, começa a história
que nos interessa: a invenção do Livro – logo, da religião do Livro –, a construção
da “infalível” palavra de Deus... Quantos tijolos, pedras gravadas, papiros,
pergaminhos, milhares de cópias forjadas. Livro, objeto, decepção – “e os
homens sofrerão novamente”.
Once upon a time[1], um grupelho bronco, xucro, mas ardiloso, concebeu por intuição
cheia de veneno o marketing mais
esperto arquitetado até então. Diante da confusão daquele mundinho cego, barbárie
das antigas, o grupo esperto começou a cogitar na criação de um deus que poderia
ter uma prole inicial e se tornar o pai de uma grande nação. Essa pretensa nação
poderia dar ao deus grandes alegrias, aborrecimentos, mas, sobretudo, alimentar
um marketing perfeito do seu nome
pelos quatro cantos da Terra... Por que não usar os fatos recentes que um novo
monoteísmo poderia exibir? Por que não um paizão protetor de uma raça inteira?
Um povo escolhido por
Deus. Para que mais? Na mente de quem tenha nascido no século vinte e um, esse
conceito poderia encontrar espaço? Onde há coerência no fato de Deus priorizar
um povo cheio dos mesmos erros que outros povos “ímpios” cometiam e ainda ser
escolhido como povo de Deus? É uma questão de pura reflexão. Que Deus seria
esse? O de um pretérito lendário! Qual o motivo dessa crença hoje? De manter
sagradas as lendas! Por isso, ainda nos arrastamos como répteis cognitivos em
plena época dos genomas, bóson de Higgs e arquivos nas nuvens...
Mas lenda quando fica
sagrada, dura. Pertencer a um povo eleito que não precisa fazer força para ser
feliz, aliás, para nada, deve ser muito bom. De forma natural, esse povo se
assume como dono do ouro e da prata, conforme conta a Torah.
Para que um povo
escolhido se caracterize como tal, entretanto, pressupõe-se uma nação, regras,
leis, ordenanças, conquistas, bem-aventuranças, deveres e obrigações. É preciso,
então, que um livro contenha tudo isso e ainda mais: que o relato da epopeia do
tal povo eleito se torne inquestionável. Sagrado. Aí está o sucesso do livro. O
sagrado é temido, amado e obedecido pela massa.
O que significa sagrado? Algo sagrado não seria um
desvio cognitivo enviado pelo cérebro à nossa mente para também nos dar a
sensação de paz e ordem social? Esse é o tema central a ser analisado neste
livro, pelo questionamento do sagrado hoje.
A única referência
escrita nos anais egípcios sobre os hebreus da Antiguidade, foi a descoberta
entre as ruínas de uma coluna do templo do faraó Merenptah, cerca de 1200 a.C.,
que diz: “Israel foi destruída e não existe mais a sua semente”. É só o que se
tem escrito pelos egípcios sobre Israel. Não há nenhum Abrahão histórico.
Nenhum Moisés histórico. Absolutamente nada que possa ser sustentado sob o
ponto de vista científico ou pelo método histórico-crítico sobre o “povo de
Deus” e sua epopeia. A não ser a própria Torah, o Pentateuco, que são os cinco
livros que compõem a lei judaica: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e
Deuteronômio. Nasce a suspeição de literatura exclusivista.
Aquele grupinho
mesopotâmico, autóctone, xucro, sumamente fossilizado, porém esperto em
contrapartida, esperto no que entendemos hoje: o malandro mesmo. O “safo”! Autóctone,
o sujeito da região, do local, do pedaço... Pois o cara mais esperto sempre foi
o que se deu melhor! Eles eram daquela região do mapa e precisavam inventar
algo maior que resolvesse a situação da existência social do próprio povo.
Aquele grupo autóctone
achou um jeito de driblar um monte de deuses desgastados que não funcionavam,
nem para um lado, nem para o outro. Todo mundo na época já sabia disso, pois
era uma mentira de polichinelo mais do que sem vergonha, desgastada há séculos
e, então, resolveram firmar a ideia já meio conhecida de um deus supremo sem
nenhum outro por perto, sozinho dando as cartas – soberano de verdade!... Mas
com um detalhe: deveria ser uma história registrada num livro, sobre o povo
escolhido pelo novo deus. Um povo que seguisse as regras divinas para receber,
como recompensa, uma Terra Prometida cheia de privilégios, com todas as
garantias.
Começava um grande
negócio por ali. A invenção, formalizada e escrita, do monoteísmo. Um negócio
que iria virar povo e nação, bastando um pouquinho de esforço. Tinha que se achar
um nome para o deus, um motivo muito criativo que convencesse o povaréu da
paternidade divina, que foi a ideia de raça eleita, e o mais difícil: enfiar na
cabeça de todo mundo que aquele livro era sagrado! Embora essa ideia não seja
minha, o momento da história antiga favoreceu tudo e a coisa está aí até hoje.
Só não sei até quando...
Christopher Hitchens, na
sua honestidade filosófica, nos deixou textos profundos e desafiadores: “Não é
preciso dizer que nenhum dos acontecimentos medonhos e desordeiros no Êxodo
jamais se deu. Os arqueólogos israelenses estão entre os mais profissionais do
mundo, mesmo que seu estudo tenha sido algumas vezes infectado por um desejo de
provar que o pacto entre Deus e Moisés teve algum fundamento. Nenhum grupo de
escavadores ou acadêmicos trabalhou mais duro ou com maior expectativa que os
israelenses que vasculharam as areias do Sinai e de Canaã. O primeiro deles foi
Yigael Yadin, cujo trabalho mais conhecido foi realizado em Massada e que foi
encarregado por David Ben-Gurion de desenterrar os ‘pequenos documentos’ que
justificariam a reivindicação por Israel da Terra Prometida. Até bem pouco
tempo, esses esforços evidentemente politizados tiveram alguma plausibilidade
superficial. Depois, foi realizado um trabalho mais abrangente e objetivo,
apresentado principalmente por Israel Finkelstein, do Instituto de Arqueologia
da Universidade de Tel-Aviv, e seu colega Neil Asher Silberman. Esses homens
consideravam a ‘Bíblia Hebraica’ bela, ou Pentateuco, e viam a história da
moderna Israel como uma grande inspiração no que diz respeito a um humilde
apelo à indiferença. Mas a conclusão deles é definitiva, e ainda mais confiável
por colocar as provas acima do interesse pessoal. Não houve fuga do Egito,
ninguém vagou pelo deserto (muito menos durante o inacreditável período de
quatro décadas mencionado no Pentateuco), nem houve a conquista dramática da
Terra Prometida. Tudo foi de forma incompetente inventado em uma época
posterior. Também não há nenhuma crônica egípcia que mencione esse episódio,
mesmo que de passagem, e o Egito foi a grande potência militar em Canaã e na
região do Nilo em todas as épocas. Na verdade, boa parte das provas indica o
contrário. A arqueologia confirma a
presença de comunidades de hebreus na Palestina há milhares de anos. Devido à
ausência de ossos de porco nos monturos e vazadouros, que mostra a existência
de um modesto ‘reino de David’, pode-se deduzir tal coisa. Todos os mitos
mosaicos, porém, podem ser fácil e seguramente descartados. Não acho que isso
seja o que os críticos amargos da fé algumas vezes chamam de conclusão
‘reducionista’. É possível extrair um grande prazer do estudo da arqueologia e
dos textos antigos, e também aprender muito. E isso sempre nos leva mais perto da
verdade. Por outro lado, mais uma vez, é levantada a questão do antiteísmo. Em O futuro de uma ilusão, Freud destaca o
ponto óbvio de que a religião sofria de uma deficiência incurável: era excessivamente
fruto de nosso próprio desejo de fugir da morte ou sobreviver a ela. Essa
crítica ao pensamento positivo é forte e irrespondível, mas ela na verdade não
lida com os horrores, as crueldades e as loucuras do Velho Testamento. Quem,
com exceção de um antigo sacerdote – tentando conseguir poder se valendo do
recurso aprovado do medo –, poderia desejar
que essa trama, lamentavelmente tecida de fábula, contivesse qualquer verdade?”.
A primeira tentativa
honesta de sistematizar o conceito de monolatria foi a do faraó Akhenathon. Não
deu certo e ele morreu frustrado. Mas o sol não era tão robusto e convincente
para ser um deus, pois logo levantaria questionamentos de quem o teria criado.
A bandalheira egípcia do politeísmo era bem mais interessante, mormente quanto
às licenciosidades aceitas. Ninguém quer nada certo... Basta refletir um pouco
sobre o turbilhão de santos, que nada mais são do que deuses menores que povoam
o mundo católico. Isso não é politeísmo? É henoteísmo? É incompetência de Deus para
justificar tantos assistentes? O que significa isso? Veneração de ossos ou de
fantasmas? Deus com anemia.
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