quinta-feira, 15 de janeiro de 2015


SUIS-JE CHARLIE?

    O homem, mesmo carregando as mazelas da sua baixa origem, fabrica santos. O papa, em visita recente ao Sri Lanka, com a missão de canonizar mais um, promoveu Joseph Vaz a santo cingalês. Ainda nos mandou mais uma pérola da sua coleção de declarações: “Todo indivíduo deve ser livre, sozinho ou associado a outros, para buscar a verdade, expressar abertamente suas convicções religiosas, livre de intimidações e de coações exteriores”.
    Todo indivíduo deve ser livre – ponto. Ciente das sanções legais, mas livre para buscar a sua verdade, pois sempre será relativa. Qual a verdade do papa? O indivíduo ainda deve ser livre para expressar abertamente, não só as suas convicções religiosas como, também, as antirreligiosas.
    Hoje, o mundo vive uma situação singular. Je suis Charlie tornou-se um slogan, agora até com uso mercantil. Mas abriu-se um caminho com o desdobramento de fatos de futuro imprevisto. É um funil que se tornou inevitável – todos tínhamos que entrar. A humanidade ficou saturada da religião, pois descobriu, pouco a pouco, que isso não vem no leite materno. Achávamos que a crença poderia ser biológica, que chegávamos ao mundo com a necessidade de religião. Mero equívoco, a ciência derrubou o mito. A religião é inoculada, não importa se a cultura é ocidental ou oriental. É fenômeno social recorrente para promover o freio comportamental e o ethos civilizatório. Afinal, a civilização só foi possível com os mecanismos do religare. Só que agora o processo não repousa mais no constructo civilizatório. Trata-se de um ajuste social urgente com viés de alforria do próprio homem para que seja possível a sua sobrevivência no planeta. O homem precisa entender agora que as divisões religiosas vão travar o processo imediato que se impõe, no dar as mãos, para salvar o que nos resta no mundo. Que essas mãos não estejam mais postas em orações fantasiosas, mas que sirvam para puxar rapidamente o nosso próximo do lodaçal formado. 
    Os simples esboços de algum maître dessinateur do Charlie Hebdo detonou a bomba interior de dois malucos. Tem-se o pavio histórico. Acontece que a bola do engodo religioso foi regurgitada entre os homens e parou na garganta. Aquele algo preparado para ser engolido na Antiguidade, voltou na pós-modernidade e se tornou um problema bem grande para todos nós: a intolerância à religião. Sim, porque, mais cedo ou mais tarde, seria conscientizado o fato de que nenhuma religião representa a verdade de per si. Logo, deixa de existir a verdade religiosa absoluta e, talvez, até o próprio absoluto.
    Um judeu tem as mesmas razões que um cristão para seguir a sua religião. Chamam isso de fé. Mas o muçulmano também tem as suas razões e não abre mão. Os cristãos citam a Bíblia como palavra de Deus inspirada. Os judeus reivindicam a antiguidade da Torah como sendo a regra de ouro e os muçulmanos alegam piamente que o Corão é a palavra perfeita do Criador. Fé é convicção ou contumácia? Se for convicção, como sustentar o que deveria ser uno e indivisível? Por que tantas fés? Maomé disse que Jesus não era divino. Yaweh diz que seu filho amado é Jesus. O papa diz que Maria é nossa mãe. Acho que Alá e Yaweh não conseguiram se entender desde o início... Mas dizem que Deus é o mesmo, não? Como pode existir verdade em coisas que divergem?
    O episódio nefasto do Charlie Hebdo deve-se exclusivamente à saturação da humanidade em relação à mentira de séculos, segundo o discurso de Nietzsche. O balde da saturação transbordou. A retórica e a dialética da crítica da religião não servem para o senso comum, então, o que resta é a charge – a vingança do populacho com a catarse dos desenhos de humor... Isto serve para a política, a religião, enfim, para o day-by-day do imenso vazio da existência. E esse é o papel da religião: a venda de sensações – de paz, salvação, prosperidade merecida, etc.
    Engraçado é que o onus probandi de cada religião e da natureza de Deus fica sempre no vazio. Ninguém produz prova científica das matérias de fé e querem nos fazer deglutir as baboseiras santas de antanho em nome de dogmas hilários. O anjo visitou Maria na anunciação, mas o anjo Gabriel visitou Maomé na caverna. Então, elas por elas...
    Segundo Michel Onfray, existe o gosto muçulmano pelo sangue. O profeta Maomé exterminou com regularidade as pessoas em batalhas do islã. Entretanto, Moisés também matou um egípcio. Josué, Elias e outros, no Antigo Testamento, também mataram centenas de infelizes... Se formos contabilizar, chegamos à inquisição com os papas fazendo churrasco humano nas praças públicas aos borbotões... Mas tem sempre a justificativa atual de que só Deus é perfeito. Os quase cento e cinquenta versículos, entre os mais de seis mil que compõem o Corão, aprovam a “guerra santa”, o jihad. Isto é muito mais do que necessário para anular a sustentação dos ditos de paz no restante do livro. Na história de Maomé, encontramos com frequência a espada e as expedições punitivas.
    O que destaco aqui é a natureza beligerante do islamismo e a não tão beligerante das demais religiões. Os judeus fizeram guerras, mataram em nome de Deus na Antiguidade e hoje. Os cristãos fizeram guerras, mataram na Idade Média e hoje. Entretanto, os muçulmanos, que também mataram muita gente, devido à natureza de fábulas e feitos heroicos da sua religião, geram braços de terrorismo que não conseguem ser controlados pelo próprio sistema religioso islâmico. E isso é um peso que, infelizmente, recai sobre eles. Enfim, é o próprio ego religioso o responsável pela sustentação das crenças que não fazem mais sentido nos dias de hoje. É nessa direção que firmo minha opinião de que, se o homem não abrir mão do sectarismo religioso, em prol de uma união necessária e que estabeleça um modus operandi de resgate urgente da civilização, em pouco tempo tudo vai naufragar... Em New Orleans, na ocasião do furacão Katrina, a população se descontrolou, cada um apegado à sua religião e saíram para comprar armas, fuzis, pistolas, na ansiedade de criar proteção para as suas famílias. Vedaram as casas, criaram barricadas, mas não deixaram de cometer estupros contra os vizinhos mais fracos... Talvez se não estivessem tão aferrados às religiões, teriam obtido um caminho de maior equilíbrio e resultados positivos de forma coletiva.
    Convenhamos, entretanto, que o princípio da crítica de humor do Charlie Hebdo, às vezes, perde a sutileza que o próprio gênero propõe. O negócio é fazer rir com a crítica, o que nem sempre acontece. Mas terrorismo é outra coisa. Não vi até agora nenhum cristão matar humoristas porque "pegaram pesado" com o papa. É preciso que se comece a entender que os homens ainda respeitam a figura do religioso, mas perdem, cada vez mais, o respeito pelas religiões no mundo de hoje. É um comportamento social crescente: respeita-se a opção do religioso, mas não as crendices, que desabam rápido! Contudo, nada justifica o gosto sectário pelo sangue. 
    É na religião que o homem encontra o saco de engodo para explorar o seu semelhante, a zona de conforto ideal e a justificativa até para a violência em massa. E isso é bem típico no próprio islã. Muitos dos seus líderes criticam os grupos terroristas, citam o Corão de forma pedagógica, mas no fundo, repetem: "Allahu akbar"... Com esta expressão, que significa "Deus é grande", os muçulmanos conquistaram o Oriente e invadiram o Ocidente. Também gritaram isto quando fuzilaram os cartunistas do Charlie Hebdo... Será que o profeta precisa ser vingado nos desenhistas esquálidos e intelectuosos que fazem piadas com a irresponsabilidade necessária ao século vinte e um? Jesus não precisou de advogados nem da vingança dos seus seguidores. Andou pela Galileia exposto a tudo, sem papamóvel e sem palácio de mármore com teto pintado por Michelangelo... E os judeus que se inventaram como povo escolhido? E o homem criou Deus segundo a sua imagem... A religião é pura divisão! 
    Por que razão o fio condutor dogmático do Corão jamais pôs um fim aos grupos terroristas que usam o mesmo livro? No passado distante, quando tanto sangue foi vertido em nome de Alá com a expansão do islã, não existiam grupos terroristas... Será que a nação islâmica não vive sem o terror ou não sabe acabar com ele?  
    Bem, num sentido mais amplo, não visando apenas o fanatismo islâmico, mas deitando um foco sobre todas as religiões do mundo, oui, je suis Charlie!


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