quinta-feira, 11 de junho de 2015

UM MUNDO DE DISCREPÂNCIAS

Decidi, neste capítulo, expor uma relação muito reduzida de contradições da Bíblia, mesmo porque são milhares as que existem, sendo as Escrituras a origem da ideia do deus que concebemos e fixamos na mente. São intermináveis as situações de montagem de texto que a filologia classifica como infantilidade; episódios com pretensões históricas que a arqueologia ignora; a geologia deplora; como também fantasias teológicas que dão a impressão de terem sido criadas numa creche, no recreio, como um jogo de crianças.

Para dar mais movimento ao texto, resolvi utilizar um critério aleatório de exposição, sem nenhum compromisso com a ordem cronológica dos fatos. Isso cria uma onda de questionamentos que podemos até evitar, mas não devemos negar se quisermos ser honestos. Até quando adiaremos essa posição de fraqueza, que se torna pesada e elimina a possibilidade de vida feliz, justamente por sabermos que nos falta boa dose de coragem para repensarmos a religião? É só uma questão de termos disposição para refletir sobre a religião do Livro e os horizontes ficarão mais claros.

As contradições no texto bíblico já adquirem corpo logo no primeiro capítulo do Gênesis. Somente depois do cativeiro da Babilônia, no século VI a.C., é que anexaram o livro da criação aos demais que compõem a Torah... Uma verdadeira batalha de testes com o intuito de medir a reação psicológica do povo da época para tornar sagrado o livro dos hebreus. Desta maneira, como bem dizia Nietzsche, “e criaram-se umas tais escrituras”...

Ainda existem grupos que proclamam a completa inerrância da Bíblia. São fundamentalistas incorrigíveis. Afirmam que Adão e Eva existiram literalmente no tempo, no espaço. De jeito doentio, proclamam a Bíblia como palavra de Deus e não admitem nenhum tipo de discussão contrária a isso. Então, o que vamos fazer? Nada, porque já me reservei: não jogo mais pérolas pela janela e acho que você deve fazer o mesmo. Não se muda ninguém – as pessoas precisam sofrer e se decepcionar para enxergar a realidade. Tenho certeza de podermos ajudar pessoas, quando forem receptivas e respeitosas, ao demonstrarem necessidade de ajuda de quem já viu como as coisas funcionam.

Os tais fundamentalistas chegaram à loucura de construir um projeto de silogismo para defender a fé cristã: “Deus não pode errar. A Bíblia é a palavra de Deus. Portanto, a Bíblia está isenta de erros”. De onde esses filósofos tiraram as duas premissas de que Deus não pode errar e a Bíblia é a palavra de Deus? Da própria Bíblia! Temos, então, um sofisma dos bons... Citam a Bíblia como prova da própria Bíblia. O Livro defende o Livro.

Os mesmos fundamentalistas afirmam que os erros existentes nas Escrituras foram cometidos pelos copistas, mas os originais são perfeitos, sem qualquer erro. Mas que originais, se eles não existem? Chegam a dizer que os erros, se encontrados, jamais afetariam a doutrina cristã... Têm a opinião lunática de Deus ter adotado a revelação progressiva, assim, revelações últimas vão sobrepujar as anteriores, criando a situação ideal para dissipar os erros grosseiros com boas justificativas mais recentes – uma forma divina de inventar um up grade do Livro!

Hoje, surge mais uma terrível ameaça: se não existe o Adão histórico, as Escrituras desabam e com ela os dogmas cristãos. Mas a realidade é que, descartada a infantilidade oriunda das mentes obtusas, a ciência já provou que nossa espécie tem a origem nos seus ancestrais, fixada há milhões de anos. Isto é indiscutível para as pessoas que tenham razoável formação acadêmica.

Exemplo tosco da revelação progressiva hipotética: o fato de Deus, quando teria criado Adão, ter-lhe ordenado que comesse apenas ervas que dão sementes e frutos de árvores, que também dão sementes. Bem mais tarde, entretanto, quando Noé teria saído da arca após o dilúvio, houve a autorização do Eterno para que ele passasse a comer de “tudo que se move e vive”. Sendo a revelação anterior revogada, agora era permitido comer carne. Afinal, caro leitor, o mundo mudou bastante depois da enchente...

As Escrituras dizem que Deus é onipresente. Mas, como o Deus dos hebreus era dado a teofanias[1], aparecia lá e cá. Não é à toa que desceu para inspecionar a torre de Babel que os homens edificavam; também teria vindo para conversar com Moisés, Gideão e Josué. A natureza pessoal divina perdera a onipresença temporariamente para atender a necessidades de algumas visitas de caráter mais individualizado – de onipresença a aparições pessoais.

As questões relativas ao emprego da terceira pessoa em muitas passagens bíblicas, como no caso de Êxodo 6:26-27, que se refere a Moisés e Arão como “são eles”, caracteriza que a passagem foi escrita por outro autor e não Moisés. Mesmo assim, os defensores da inerrância das Escrituras declaram que os escritos antigos seguem essa linha de construção de texto na terceira pessoa... Fica-se sem meios de debate com os sectários, pois tudo é sustentado pela própria Bíblia e nunca através do método científico.

A doutrina cristã diz que Deus não muda. Por que razão fala-se tanto que Deus se arrependeu de ter criado o homem? Está lá em Gênesis 6:6: “Então se arrependeu o Senhor de haver feito o homem sobre a terra, e pesou-lhe em seu coração”. No livro de Êxodo, o Criador se declara arrependido do mal que faria ao povo. Em I Samuel 15:35, Deus se arrepende de haver escolhido Saul como rei de Israel. Instabilidades de Deus? Não, é falta de um projeto literário melhor dos hebreus. Ao inventar a Bíblia, não deveriam ter descuidado nos traços elaborados da personalidade divina. Em Números 23:19, escrevem: “Deus não é homem para que minta; nem filho do homem para que se arrependa”. No livro de I Crônicas 21:15, Deus manda um anjo destruir Jerusalém, mas, no meio do caminho, se arrepende e manda o anjo voltar... Em Jeremias 15:6, Deus diz que está cansado de se arrepender. No mesmo livro 18:8, o Criador promete se arrepender. Em 26:3, novos possíveis arrependimentos. Mais adiante, no verso 13, outra recaída de arrependimento. No capítulo 42 do mesmo livro, verso 10, Deus se diz arrependido do mal que fizera ao povo. Em Amós 7:3, outra crise. Três versos adiante, a crise se agrava... Caramba, que temperamento! O que é isso? É o que o povo gosta.

Ao longo de toda a Bíblia, um livro diz isso e outro aquilo. Desabono em cadeia e o clero ajusta tudo para dar colheradas de doutrinas para os ingênuos necessitados de sonhos. O livro de Êxodo diz que Moisés recebeu as leis no Monte Sinai, já em Deuteronômio, ele teria recebido em Horebe. Em Deuteronômio, Arão morre e é enterrado em Moserá, mas em Números, Arão morre no monte Hor. Em Deuteronômio, Deus permite que se tome bebida forte; em Levítico, o uso de bebida forte é proibido.

Em Deuteronômio, Moisés, um poço de sabedoria, determinou que os israelitas poupassem a vida dos prisioneiros e os fizessem escravos, mas em seguida mandou matar todos. Era inspirado, o escolhido de Deus... A conclusão de Moisés foi de que o grau de pecado deles não podia ser suportado por Deus. Mas por que as abominações dos israelitas, também terríveis, eram suportáveis? Se você decidir comer maná por quarenta anos vai descobrir!

Caso pitoresco na Bíblia é a ridícula defesa dos fundamentalistas de hoje em relação ao voto de Jafté[2]. Na lenda bíblica da batalha contra Amon, Jafté teria feito um voto a Yahweh, caso vencesse: ofereceria em holocausto quem saísse pela porta da sua casa ao seu encontro. Diz a Bíblia que foi a sua filha! Jafté, então, não pôde voltar atrás na sua palavra, oferecendo a filha em holocausto. Mas os sectários, defensores do Livro, insistem que o holocausto se referia à preservação da virgindade da filha e não ao sacrifício da sua vida... Engraçado é que qualquer dicionário diz que holocausto é sacrifício expiatório, imolação. Ainda que fosse a virgindade o mérito, os redatores do Livro deveriam usar melhor as palavras. Agora, à conclusão – veja-se o brado de Jafté depois de rasgar as próprias vestes em desespero: “Ai! Ai! Filha minha! Tu me prostraste em angústia! Tu estás entre os que me fazem infeliz! Fiz uma promessa a Yahweh e não posso recuar!”. Todos os anos, as filhas de Israel iam por lá para prantear e lamentar o que acontecera à filha de Jafté. Prantear o que, a virgindade?...

As contradições não ficam somente nas palavras, as Escrituras estão repletas de números conflitantes. Em I Samuel 13:5, para dar continuação às brigas com os israelitas, os filisteus reuniram um exército com trinta mil carros de guerra e seis mil cavaleiros. Como teriam sido feitos esses carros? Na história de qualquer povo da Antiguidade, jamais houve registro de tantos carros de combate. Nem mesmo nos grandes impérios.

Na visão dos hebreus, o todo-poderoso precisava de uma morada. O livro de I Reis 8:12, diz que Deus habitaria nas trevas. Em II Crônicas 6:1, Salomão diz que o Senhor habitaria nas trevas. Já em I Timóteo 6:16, Deus habita na luz inacessível. Bem, Salomão declarou que edificara uma casa para Deus, justamente porque o todo-poderoso habitava nas trevas. Depois, o Senhor teria aparecido a Salomão, dizendo-lhe que ouvira as suas orações e escolhera o templo para o seu local de sacrifícios... O templo, assim, fora escolhido e santificado. Mas tudo mudou com o tempo. Em Atos 7:48,49, lemos: “Mas o Altíssimo não habita em templos feitos por mãos de homens, como diz o profeta, o céu é o meu trono e a terra o estrado dos meus pés. Que casa me edificareis? Diz o Senhor: ou qual é o lugar do meu repouso?”. O Eterno mudou de ideia.

Em I Samuel 17:50, diz que Davi feriu Golias e o matou. Em II Samuel 21:19, afirma que foi El-Hanã quem matou Golias. Em I Samuel 17:54, Davi teria levado a cabeça de Golias para Jerusalém. Mas Davi só foi para Jerusalém muito tempo depois, quando a conquistou, de acordo com o livro de II Samuel 5:6-9. Será que Davi guardou a cabeça de Golias embaixo da cama?

Números novamente. No livro de I Reis 4:26, diz que o rei Salomão tinha quarenta mil cavalos. Em II Crônicas 9:25, fala de outra história: apenas quatro mil cavalos, o que, para mim, já são cavalos demais para um rei de um povo paupérrimo. Os sectários biblistas, entretanto, também gostam de jogar a culpa nos copistas antigos, para continuar com o uso do rótulo palavra de Deus. Sobre a lambança dos copistas já falamos o bastante, mas eles também são alvo dos protetores do Livro, desde que comedidamente, para que não se chegue a questionar as Escrituras.

Fala-se hoje bastante sobre intolerância religiosa. Imagine-se um grupo religioso do nosso tempo alegar que Deus lhes outorgara o poder de matar outro grupo, também religioso, sob a acusação de crença espúria e idolatria. No antigo livro de Reis, o profeta Elias disse ao povo: “Lançai mão dos profetas de Baal; que nenhum deles escape e lançaram mão deles; e Elias os fez descer ao ribeiro de Quisom, e ali os matou”. Pois é, mas acontece a mesma coisa na época em que vivemos. Na Irlanda do Norte, se pudessem, católicos e protestantes arrancariam os olhos uns dos outros. Outro bom exemplo é o mundo árabe com a beligerância do islã – a Índia com seus milhões de deuses –, mas relembrando as carnificinas bíblicas, os judeus e palestinos de hoje.

Embora não seja aparente aos sectários, a Bíblia fere princípios básicos, como o da admissibilidade, quando força a crença em coisas absurdas e fantasiosas, a exemplo da lenda do dilúvio. Também, o princípio da razoabilidade, quando em II Reis 2:23-24, o profeta Eliseu, a caminho de Betel, é ofendido por jovens que gritavam: “sobe, calvo!”. Eliseu os amaldiçoou e, então, saíram duas ursas do bosque e despedaçaram os garotos... Interessante é o fato da ocorrência de ursos na região desértica e um bosque em tal lugar. O mais curioso é que ser chamado de careca, com resposta de carnificina, não é nem um pouco razoável.

Em II Reis 20:11, Ezequias, servo do Altíssimo, teria adoecido de morte. Segundo o texto, veio a ele o profeta Isaías com a ordem para que “fizesse os biscoitos para a viagem”, pois sua hora era chegada. Então, Ezequias entrou em oração, lembrou a Deus que andara de coração reto no mundo e chorou. Deus, assim, teria se comovido, repensado a situação e concedido mais quinze anos de vida a Ezequias, sendo o “ponteiro” do relógio de sol de Acaz retrocedido em dez graus. Mas que ponteiro? O ponteiro era a sombra do pino que compõe o relógio de sol! Por que razão um deus, concebido como onisciente, privilegiaria um sujeito com quinze anos a mais de vida, enquanto milhões de crianças morrem a cada instante no mundo da maneira mais injusta concebível? As leis físicas do universo têm que ser mudadas em benefício de um indivíduo qualquer apenas porque se intitula filho de Deus? Se for assim, isso não passa de um mingau teológico!

Para que a separação do “povo de Deus” fosse perfeita, o Livro teria que impedir o casamento dos hebreus com outros povos. Acontece que essa prática sem amor e discriminatória persiste até os nossos dias. Para suavizá-la, os crentes de hoje puseram o nome nesse princípio cretino de jugo desigual. No livro de Esdras 10:10-44, os israelitas expulsaram suas mulheres de casa porque não pertenciam ao povo de Deus... Já o apóstolo Paulo corrigiu o erro, dizendo: “Se algum irmão tem mulher descrente, e ela consente em habitar com ele, não a deixe”. Mas a realidade é bem outra: no meio evangélico, quem casa com incrédulo vai ter problemas pela quebra das regras... Embora eles digam que não há regras, elas permanecem veladas, tornando-se bem piores. É preciso, portanto, que o corpus eclesiástico permaneça homogêneo. Pertencimentos...

A Bíblia, por ser um livro heteróclito, é conflitante em assuntos essenciais, por isso ela cai em descrédito a cada dia. Por exemplo, no livro de Salmos 37:25, o salmista diz: “Fui moço, e agora sou velho; mas nunca vi desamparado o justo, nem a sua descendência mendigar o pão”. É isso, porventura, o que vemos? Se visitarmos uma favela hoje, a maioria dos seus moradores é cristã. Quando, raramente, conseguem comprar um carro caindo aos pedaços, colam um adesivo no vidro traseiro: “Este Jesus me deu”... Depois, desamparados, muitos cristãos morrem na imundície dos hospitais públicos. Seria uma bazófia do rei Davi? Os filólogos modernos, entretanto, afirmam que esse salmo jamais foi escrito por Davi. Alguns dirão: mas essa é uma promessa para o povo judeu! Bem, então, o cristão não é filho de Deus? Ih... Acho que se eu fosse salmista hoje, modificaria o tom: “Fui moço e agora sou velho, mas nunca vi um judeu na favela”...

Um salmo diz que “Deus não dormita, nem dorme”. Já o Salmo 44:26, declara: “Desperta! Por que dormes, Senhor? Acorda! Não nos rejeites para sempre”. Volta e meia, retorno às afirmativas de Nietzsche sobre a morte de Deus – mas o Criador não morreu de fato, apenas ficou sonolento... A verdade é que o Livro não nos convida a pensar, antes nos conduz à fé cega, longe da reflexão e do pensamento puro que a filosofia nos empresta. Tanto nos impede de pensar, que coisas absurdas em nome de Deus até nos fazem perder o juízo de valor que cultivamos pela vida afora. No livro de Salmos 137:9, lemos somente isso: “Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras”... Se na época de Gutemberg existisse o Juizado da Infância, sua oficina gráfica seria fechada e a leitura da Bíblia proibida.

No evangelho de Mateus 20:29-34, temos o relato da cura de dois cegos em Jericó. Já em Marcos 10:46-52 e em Lucas 18:35-43, apenas um cego fora alcançado pela cura. Mateus tinha predileção pelo número dois, pois anteriormente já mencionara o episódio de dois endemoninhados, enquanto que Marcos e Lucas afirmaram que era apenas um possesso gergeseno. Se o autor do evangelho de Mateus estiver certo, foram mais porcos perdidos pela legião que os incorporara – pobre dono dos porcos...

Os evangelhos, em geral, contradizem-se em pequenos detalhes que se tornam grandes. Ainda que os defensores do Livro ab-roguem as contradições, dizendo-as sem importância em relação ao todo, com um mínimo de erudição, sabe-se que isso é uma sofistaria teológica. Convenhamos, péssimo artesanato dialético, mantido por infinitos remendos fundamentalistas, aplicados por séculos na prática de cópias do Livro por meios ineptos e dolosos. A Bíblia, aliás, fala de remendos.

Mateus diz que Jesus anunciou a sua volta depois da Grande Tribulação[3], Lucas já nega: seria estabelecido antes o “tempo dos gentios”. Mateus e João afirmam que Pedro negaria a Cristo três vezes antes que o galo cantasse uma vez. Marcos já fala que isso se daria antes que o galo cantasse duas vezes. Outra contradição: as inscrições sobre a cruz são registradas com texto diferente em cada evangelho... Mateus expõe os dois malfeitores, que teriam sido crucificados com Cristo, lançando-lhe ofensas – Lucas diz que apenas um ofendera o Mestre, pois o outro teria se arrependido. Sobre a ressurreição de Cristo, Mateus declara que só um anjo estava no sepulcro, mas para João seriam dois anjos. No evangelho de Marcos, Jesus faz a promessa de que receberíamos tudo segundo o grau da nossa fé, mas o apóstolo Paulo pediu a Deus por três vezes que lhe fosse afastado um espinho da carne e Deus não o atendeu. Por quantas vezes só nos restou o silêncio de Deus? Falta de fé? Claro que não, nossa mente foi programada pela religião para que aceitássemos a culpa total.

Os evangelhos de Mateus e Lucas são talhados nos pormenores para se complementarem sobre o nascimento de Jesus. O ponto que precisa ser ressaltado a todo custo se refere ao nascimento virginal do Messias e a necessidade de ter ocorrido em Belém. Por quê? Porque no livro de Miqueias 5:2, há uma profecia de que um messias viria de Belém, uma vez que era a terra de Davi, rei de Israel: “E tu, Belém Efrata, posto que pequena entre milhares de Judá, de ti me sairá o que será senhor em Israel, e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade”.

Ora, é sabido que José e Maria eram de Nazaré, assim como Jesus, mas foi preciso adaptar os fatos para gerar um ponto teológico fundamental. Para tal, se fez necessário um motivo forte que constatasse a presença deles em Belém. Depois, o casal e o filho teriam que sair da cidade em fuga para o Egito. O motivo era a criação de um episódio bíblico que não tem nenhuma prova histórica: a “matança dos inocentes”, pelo rei Herodes, em Belém. Toda criança do sexo masculino, até dois anos, deveria ser morta através do decreto do rei. Por que, então, José e Maria foram para Belém, onde Jesus teria nascido? Pela razão de outro fato, talvez inventado, pois não existe nenhum registro ou prova histórica de sua veracidade: o decreto do imperador César Augusto, que criava um censo no império e determinava o retorno de cada cidadão à terra dos seus ancestrais para se apresentar aos censores. José tinha como ancestral a Davi, logo, teria que ir a Belém. Só que Davi existira, hipoteticamente, uns mil anos antes de José! Enfim, um esforço imenso para que Jesus nascesse em Belém por causa de um versículo escrito por Miqueias... O profeta do Antigo Testamento jamais poderia imaginar que seu texto fosse canonizado e se tornasse tão importante na confecção do cristianismo, mesmo com interpretação duvidosa.

O conflito de historicidade se instala quando Mateus sustenta que, após a matança dos inocentes, a família teria fugido para o Egito, enquanto que, no relato de Lucas, eles teriam seguido direto para Nazaré... Mesmo que os evangelhos de Mateus e Lucas pareçam se completar em relação ao nascimento do Messias, na verdade representam contradições mais significativas do que a maioria das pessoas imagina.

A questão das genealogias de Jesus, comparadas nos evangelhos de Mateus e Lucas, por serem diferentes, se tornam estranhas. Embora tenha feito comentário anterior, vale reiterar. A genealogia em Mateus retrocede até o rei Davi e, depois, até Abraão. Mas que história pode ser essa se José não era o pai biológico de Jesus? Maria não descendia de Davi, mas José sim. A genealogia de Lucas retrocede ainda mais: chega até Adão e Eva...

Sobre ascensões, no evangelho de Lucas 24:50-51, diz que Jesus ascendeu aos céus estando em Betânia, entretanto, no livro de Atos 1:9-12, declara que esse evento ocorreu mesmo no Monte das Oliveiras, em Jerusalém. Estudioso do tema, o Barão de Holbach[4], dizia que a crença em qualquer ser superior é o produto do medo e, em certa ocasião, quando foi indagado sobre ascensão, respondeu de forma generalizada: “O que foi dito sobre Deus é ininteligível ou perfeitamente contraditório; por esta razão, deve ser uma hipótese absurda para todo homem de bom senso”.

Em João 14:28, está escrito: “O Pai é maior do que eu”. Como o Pai pode ser maior se Jesus está colocado como igual a Deus? Ora, é porque tudo foi feito em família... Deus buscou acomodar a situação: inspirou os seus santos bispos, no concílio de Niceia, para repetirem assim direitinho: “Jesus é Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não criado, consubstancial ao Pai”. No segundo concílio da igreja, o de Constantinopla, em 381 d.C., o imperador Teodósio ajudou a bispalhada a confirmar a Trindade. Finalmente, no quarto concílio, o de Calcedônia, em 451 d.C., fecharam a questão trinitária em definitivo. São três em um – uma família que não se discute.

Sobre ressurreições, convém falar de Lázaro. O que me deixa boquiaberto é o nível da discussão protestante, cenário em que tudo mais se assemelha a um jardim de infância das ideias. Como os argumentos são primários... Quanto ao hipotético Lázaro, no evangelho de João 11:44, lemos: “E o defunto saiu, tendo as mãos e os pés ligados com faixas, e o seu rosto envolto num lenço. Disse-lhes Jesus: desligai-o e deixai-o ir”. O que me deixa pasmo não é a discussão sobre uma ressurreição dessas, mas a apologia que os crentes fazem de tal acontecimento, tecendo defesas bobas, por exemplo, o fato presumido de ele ter saído do túmulo aos pulinhos depois de “escorregar” da tábua em que o teriam depositado, uma vez que a múmia em questão estava com as mãos e os pés amarrados...

Para encerrar essa parte de leitura sofrida, falemos da castração santa – ou circuncisão. O apóstolo Paulo, com as próprias mãos, circuncidou a Timóteo para fazer política com terceiros. Paulo, porém, foi quem mais atacou a circuncisão nos tempos bíblicos, ao alertar sobre a sua total ineficácia para alcançar a salvação... O apóstolo dos gentios se dizia irrepreensível e acusava Pedro de ser repreensível, pois o resistira na “cara”, mas o cristianismo tem as suas bases fincadas na teologia de Paulo. Pergunto, então: por quê? Por causa de uma visão improvável? Uma interpretação pessoal? Será que não recebemos do apóstolo uma fetichização abscondita nos símbolos judaico-cristãos?

Na Bíblia encontramos milhares de remendos, desvios da história, filologia conflitante, adaptações, enfim, até fraudes inseridas pela própria Igreja. Para continuar com o discurso sobre contradições, seria preciso escrever mais uns dez volumes como este, e ainda acho pouco. O compromisso é com a ideia do produto livro, que foi usado para plantar a essência do monoteísmo. O Livro, então, foi inventado e impingido como “palavra de Deus”, porque se usou para tal feito o desvio cognitivo de toda a humanidade...


[1] Teofania é a aparição da divindade.
[2] Um guerreiro famoso do todo-poderoso de Israel e herói da fé em tempo integral.
[3] Período que sucederia a volta de Cristo, dando início às dores apocalípticas.
[4] Filósofo e enciclopedista franco-alemão, 1723-1789.


ATENÇÃO: todos os direitos reservados.



Nenhum comentário:

Postar um comentário