sexta-feira, 5 de junho de 2015

DOS DOGMAS, CONTRADIÇÕES E FRAUDES III

Infelizmente, em toda a história da Igreja, só temos assistido a decepções, varridas como a poeira para baixo do tapete, pelos próprios cristãos, numa atitude vexatória... Isso parece mais pura teimosia fideísta com princípios que nos remetem aos tão citados desvios cognitivos. Esses desvios naturais nunca são admitidos por ninguém, pois o ego humano não se rende às verdades científicas.

O crente prefere ruminar, mastigar eternamente um chiclete sem gosto, que representa as suas decepções, do que torná-las públicas, em uma demonstração de humildade e grandeza. O religioso só dá o braço a torcer quando a cortina da fantasia cai por terra. Então, ele se vê sozinho, sem meios para recomeçar, desorientado. Sentindo o peso de toneladas de culpa pela sua ingenuidade, é obrigado a fingir mais do que nunca para manter o disfarce. A alternativa é se dobrar e catar os cacos do vaso quebrado. Depois, colar os cacos, recomeçando, na compreensão de que o ser feliz não pode ser construído por historias que o alienem da realidade. O homem não precisa representar uma felicidade teatral, própria de um ser moldado artificialmente. Basta ser autêntico.

Todas essas falsas atribuições a Paulo e a outros apóstolos, também se refletem em Colossenses, Efésios, II Tessalonicenses, I Pedro, Judas, etc. O que pretendo com meu argumento, é mostrar que as falsificações da Antiguidade não ficaram apenas fora da Bíblia, milhares de falsificações foram canonizadas e são seguidas como algo santo até os dias de hoje! Por isso, insisto no meu princípio da inferência paradigmal injuntiva. Inferir é deduzir, concluir. Paradigmal é uma definição abrangente de um modelo qualquer – paradigma é um modelo, um padrão. Injuntivo é algo imperativo, obrigatório – porque injunção é uma mera situação criada por circunstâncias obrigatórias. Então, deduz-se que tudo isso é “a conclusão de um padrão imperativo”, causada por uma dedução nem sempre verdadeira. Exatamente o que vemos nas ilusões religiosas. Portanto, meu princípio da inferência paradigmal injuntiva é exatamente o que se traduz pela expressão universal e plena de significado: “o desvio cognitivo”!

A principal fórmula usada pelos filólogos para detectar uma falsificação em nome de algum apóstolo é o estilo de redação. Por exemplo, no caso de Paulo, sete das suas epístolas conservam uma unidade estilística, enquanto que as outras seis já demonstram pontos dubitáveis no contexto geral. E nos leva a crer que, ainda que Paulo não tenha redigido diretamente as sete cartas mais confiáveis, ao usar secretários, ainda assim, revela uma unidade no seu bojo. Mas as outras já denotam um autor anônimo, claramente tardio, tentando se passar por Paulo...

Depois de descobrir algumas contradições na Bíblia e obter a confirmação científica das mesmas, a tristeza se instalou na minha vida cristã, mas eu não conseguia mais me enganar. Desta feita, prossegui nas pesquisas e aconteceu o pior: as contradições foram se multiplicando numa progressão desconcertante.

Enfrentei o que não queria jamais, tampouco imaginei que viesse a descobrir o quanto fora enganado, então, honestamente, cheguei à fria conclusão de que a Bíblia não é a palavra de Deus. É a palavra dos homens alterada, com enfeites, embora bela, mas duvidosa, construída durante séculos para ficar parecida com alguma coisa deixada por Deus para a humanidade.

Assim, minha vida mudou novamente. Primeiro, embarquei num trenzinho com destino ao paraíso. Depois, no meio do caminho, comecei a achar a viagem meio esquisita... O trenzinho estava cheio de pessoas que falavam tanto de Deus, mas eram profundamente infelizes por trás de uma vida de representação. Verdadeiros artistas na tarefa de atuar num espetáculo de alegria desmedida, que camuflavam os tons de cinza chumbo e sombras soturnas. Esses passageiros também mentiam muito uns para os outros: diziam-se irmãos, mas se conduziam de forma contrária... Coisa horrível que vi: de manhã à noite falavam mal uns dos outros como um eczema que vai e volta. Até diziam que Deus era um só, mas cada um daqueles passageiros defendia uma doutrina diferente e sempre esquisita. Chegavam a rosnar quando entravam em choques doutrinários... Acho que facilmente enfiariam uma agulha de tricô no tímpano do outro. Ou, até quem sabe, um furador de gelo no fígado do irmãozinho. O ego daquelas pessoas não era nem um pouco diferente dos tubarões sociais, ficava bem escondido por trás de uns livrinhos surrados de capa preta. Às vezes, não eram nem livros, mas santinhos de barro com pintura em decapê, medalhinhas no pescoço ou uns amuletos que tinham a forma de cruz. Aquelas pessoas não eram do meu universo.

A viagem começou a ficar chata. Então, pedi para descer do trem porque percebi que aquelas pessoas queriam me usurpar a possibilidade de ser feliz. Disseram-me, já sem o “amor” que demonstraram na ocasião do embarque no trenzinho, que se eu descesse do trem seria torturado para sempre numa fogueira junto com os que haviam desembarcado antes. Achei tudo aquilo muito esquisito, até porque, o cheiro de queimado que vinha da locomotiva não era de carvão, mas de enxofre. “Ihhh...”, pensei. Mais que depressa, então, abri uma das janelas e pulei! Foram pequenas as lesões externas. Até que foi fácil. No íntimo é que ficaram as maiores feridas, mas, na medida em que eu caminhava pela estrada de volta à vida, elas cicatrizaram. Pequenas sequelas sempre sobram, mas fazem parte de decisões dúbias do passado.

Os espinhos estavam ali, continuavam à beira da estrada, mas agora eu sabia que eles eram reais, pois antes os passageiros diziam que alguém iria sempre me ajudar a afastar os espinhos do meu caminho, mas até hoje não apareceu ninguém para me prestar esse tipo de ajuda. O pior é que eles também me disseram que, se não aparecesse ninguém para me ajudar com os espinhos, era porque eu precisava deles na minha vida para crescer na fé, ou, quando não, os espinhos só poderiam ser o castigo pelos meus pecados... Eles mentiram, é lógico, pois são fracos. Descobri, então, que se eu não tirar os espinhos da minha alma, ninguém vai tirá-los para mim e que a noção de pecado, com a dose de terror que a religião aplica, é uma indústria extremamente lucrativa.

O fato da insistência dogmática na tradição textual apostólica não repousa no simples fato da importância dos apóstolos em si. Repousa no pressuposto de que, sendo eles autoridade máxima em matéria de fé, o que fosse postulado significava, com efeito, a expressão do próprio Espírito Santo, o que constitui uma situação extemporânea e bastante conveniente.

A própria Bíblia declara a presença de um “secretário” de Paulo, chamado Tércio. Ora, já temos um intermediário para o principal dos apóstolos e isso significa um desdobramento interpretativo por mais que se refute essa ideia. Só o fato de lermos um texto, já significa a prática de um tipo de interpretação, pois a nossa leitura interior está associada aos conceitos que nos são familiares, às nossas limitações perceptivas e à formação da imagística na mente.

Ao lermos, interpretamos os fatos. Imagine-se, então, quanto mais ao escrevermos, porque, com o uso das palavras, raspamos impressões incomuns sedimentadas nas nossas mentes ao longo da vida e fazemos delas um registro inevitável. Isso é visto pela ciência como um processo automático em que apreendemos vocábulos, signos, sinais, referências equívocas, símbolos, coisas empilhadas na memória por décadas e passamos a traduzi-las em minutos. Tudo isso sem que possamos nos dar conta das nossas ações interferentes.

Constatamos, assim, o procedimento dos antigos – o mesmo de hoje. As epístolas de Pedro foram escritas séculos depois da época anunciada e por quem dominava o grego com refinamento na redação, portanto, não poderia ser obra de um pescador iletrado. É lamentável, mas as fraudes “escriturísticas” eram muito frequentes na Antiguidade – habent sua fata libelli![1]

As fraudes e falsificações foram os meios utilizados no curso da história para o estabelecimento da verdade, que nada mais é do que uma convenção, segundo o farsalhão humano na elaboração da mesma. Demasiado humano. O que é uma convenção senão um ajuste? Uma combinação. Entre os homens. Um acordo. Logo, a verdade é um ajuste? Mas se é tal, deixa de ser absoluta. O pior é que deixa de ser perfeita. Tudo que é pactuado é imperfeito, porque o pacto propõe a política e, consequentemente, a mentira. Se a mentira é uma contradição, aí temos algo belíssimo na Bíblia: “Saibam, pois, irmãos, que nenhuma mentira provém da verdade”.

Verdade não se convenciona, é algo que intuímos. Está gravada como um código genético em cada um de nós. A verdade não é um ajuste, ela existe mesmo. É absoluta enquanto ocorrência, mas não significa o deus da religião. Não guarda relação com um deus construído. Não é o que proclamam, que “uma mentira dita muitas vezes se torna uma verdade”. Sofisma. Os governos praticam isso – dizem muitas palavras com mais areia do que cimento para que se cristalizem como “verdade” na mente ignara. Mas sabemos de tudo, apenas fingimos em relação às doutrinas religiosas, pois o que fazemos melhor é mentir para nós mesmos.

O tecido dogmático está por trás da religião. É uma urdidura que vem com a atração e o apelo de uma superfície encantada, mas lançando-se um olhar mais profundo, suas bases necrosadas são percebidas com clareza. Diante disso, não é difícil a compreensão da natureza humana, corrompida desde as suas origens, em relação à invenção e falsificação das Escrituras.

No nosso planeta tudo faz parte de um complexo arcabouço espiritual para dar sustentação a intrincadas nuances do mundo político-religioso, que tem como finalidade perpetuar a teocracia através dos tempos – o atalho mais econômico e seguro para a dominação dos povos.

Um fato não só estranho, mas risível pela ingenuidade do povo, sempre me intrigou: se os cristãos são realmente a representação da unidade de Deus, por que a igreja dos cristãos nunca teve unidade?... A resposta está no simples fato exposto até então: a Bíblia nunca foi palavra de Deus e fica evidente sua construção tendenciosa, através dos voos humanos cheios de criatividade. O Livro nos deixa a herança de infinitas interpretações doutrinárias, contidas no seu corpo textual, para decepção dos que investiram a vida nos desafinados caminhos da fé.

Ainda na linha dos pressupostos escriturísticos, passemos pelos escritos pseudoclementinos, que alguns insistem ser de autoria de Clemente, o quarto papa na sucessão histórico-apostólica romana. Embora sejam apócrifos, esses “escritos” abordam um ponto nevrálgico, controverso, mas dialeticamente bastante significativo, que é o episódio da visão de Paulo a caminho de Damasco. Com tendência para o lado do apóstolo Pedro, os pseudoclementinos relatam a querela entre Paulo e Pedro, principalmente sobre a ocorrência duvidosa da estrada de Damasco. Pedro questiona o evento nesses escritos, afirmando que Paulo não ouvira a voz de Jesus, mas a “voz interior” própria, que nos vitima com desvios cognitivos múltiplos. Pedro reivindicava a estatura de apóstolo maior, pois convivera com Jesus, ao passo que Paulo baseava seu apostolado na visão que teria mudado sua vida a caminho de Damasco – o perseguidor que passa a ser perseguido... Pedro, então, acusa Paulo de ser um sonhador e o nega como apóstolo, segundo a interpretação pseudoclementina do século III.

O motivo da citação pseudoclementina sobre a estrada de Damasco, assunto recorrente na Igreja, é com a intenção de uma volta ao tema do desvio cognitivo. Insisto nisso, pois é a razão de todos os nossos fracassos – a má interpretação da realidade. A fé é algo tão relativo que, a meu ver, estará sempre sujeita às variantes interpretativas. Essa acusação de Pedro, afirmando que a carreira de Paulo era fundada numa aparição, nos coloca diante de um problema tão grave que, se analisado livre de emoções, gera uma sensação de desânimo devido à distância doutrinária e desarmonia entre os dois apóstolos. De um lado, a importância em observar as leis da Torah como cristãos; do outro, a valorização da fé sem a guarda das leis mosaicas. Então, temos ou não uma contradição bíblica decepcionante? Isso, lógico, estabelece rumos distintos e conflitantes para os cristãos. Pior que hebreus e cristãos antigos se conduziam sobre argumentos sólidos, demonstrando princípios obstinados. Fica o registro de uma grande discrepância.

Hoje, há unanimidade entre os mais importantes acadêmicos – filólogos, arqueólogos e historiadores –, que sustentam uma tese chocante: as epístolas de I e II Pedro foram escritas tardiamente, depois do Pedro histórico, por um autor pseudonímico. Isso, com o objetivo maior de conciliar os pontos de vista dos apóstolos em questão, transmitindo a ideia de que não disputavam na doutrina, recontextualizando a reputação teológica dos mesmos. Nessa ótica, as epístolas de I e II Pedro dão corpo ao conceito de sintonia doutrinária e, até, impressão de amizade entre os dois apóstolos, o que não deixa de ser interessante para a Igreja.

Enfim, não há prova histórica de praticamente nada em torno desses contos miraculosos. Por exemplo, a história de Roma não registra nenhum censo no período do imperador César Augusto. Assim, também, como a história não registra qualquer massacre de bebês pelo rei Herodes... Bem, jamais sairemos dessa roda viva. É matéria de fé, das coisas ditas muitas vezes, tautológicas, para que se transformem em regras de fé.

Infelizmente, o que aconteceu nos tempos bíblicos, melhor ainda, em todas as épocas da história do mundo, foi manipulação do homem pelo homem. Homo hominis lupus[2]. A religião que, na ânsia de fincar os seus dogmas na mente humana, promoveu a “verdade” através da mentira.

Rodrigo Constantino, na sua obra Esquerda caviar, nos presenteia com Freud: “É necessário algum desenvolvimento intelectual para se acreditar no acaso; o primitivo, o ignorante e também uma criança já sabem atribuir uma razão para tudo o que acontece”...

Constantino com seu texto: “A angústia de viver sabendo que desgraças simplesmente acontecem, sem necessariamente uma causa específica, leva muitos à busca de bodes expiatórios – vivos ou mortos. Há os vilões espirituais também, como o karma de vidas passadas, os espíritos malignos, a 'energia' negativa dos inimigos etc.”. Por que não algumas releituras?

Segundo a declaração de Freud sobre a criança e o ignorante já saberem atribuir uma razão para tudo o que acontece, de que vale continuar na tentativa de abrir os olhos do primitivo? No meu caso, vale por atender a uma imposição íntima de dever com a consciência na etapa da vida em que me encontro. Necessidade biológica. Também a esperança de alcançar pelo menos um que me ouça no insulamento desse mundo superpopuloso e sujo.




[1] Citação de Terêncio, “Os livros têm os seus destinos, os seus fadários!”.
[2] Citação de Plauto, repetida por Hobbes – “O homem é o lobo do homem”.


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