DOS DOGMAS, CONTRADIÇÕES E FRAUDES III
Infelizmente, em toda a história da Igreja,
só temos assistido a decepções, varridas como a poeira para baixo do tapete, pelos
próprios cristãos, numa atitude vexatória... Isso parece mais pura teimosia fideísta
com princípios que nos remetem aos tão citados desvios cognitivos. Esses desvios
naturais nunca são admitidos por ninguém, pois o ego humano não se rende às
verdades científicas.
O crente prefere ruminar, mastigar
eternamente um chiclete sem gosto, que representa as suas decepções, do que
torná-las públicas, em uma demonstração de humildade e grandeza. O religioso só
dá o braço a torcer quando a cortina da fantasia cai por terra. Então, ele se
vê sozinho, sem meios para recomeçar, desorientado. Sentindo o peso de
toneladas de culpa pela sua ingenuidade, é obrigado a fingir mais do que nunca
para manter o disfarce. A alternativa é se dobrar e catar os cacos do vaso
quebrado. Depois, colar os cacos, recomeçando, na compreensão de que o ser
feliz não pode ser construído por historias que o alienem da realidade. O homem
não precisa representar uma felicidade teatral, própria de um ser moldado
artificialmente. Basta ser autêntico.
Todas essas falsas atribuições a Paulo e a
outros apóstolos, também se refletem em Colossenses, Efésios, II
Tessalonicenses, I Pedro, Judas, etc. O que pretendo com meu argumento, é
mostrar que as falsificações da Antiguidade não ficaram apenas fora da Bíblia,
milhares de falsificações foram canonizadas e são seguidas como algo santo até
os dias de hoje! Por isso, insisto no meu princípio da inferência paradigmal injuntiva. Inferir é deduzir, concluir.
Paradigmal é uma definição abrangente de um modelo qualquer – paradigma é um
modelo, um padrão. Injuntivo é algo imperativo, obrigatório – porque injunção é
uma mera situação criada por circunstâncias obrigatórias. Então, deduz-se que
tudo isso é “a conclusão de um padrão imperativo”, causada por uma dedução nem
sempre verdadeira. Exatamente o que vemos nas ilusões religiosas. Portanto, meu
princípio da inferência paradigmal
injuntiva é exatamente o que se traduz pela expressão universal e plena de
significado: “o desvio cognitivo”!
A principal fórmula usada pelos filólogos
para detectar uma falsificação em nome de algum apóstolo é o estilo de redação.
Por exemplo, no caso de Paulo, sete das suas epístolas conservam uma unidade
estilística, enquanto que as outras seis já demonstram pontos dubitáveis no
contexto geral. E nos leva a crer que, ainda que Paulo não tenha redigido
diretamente as sete cartas mais confiáveis, ao usar secretários, ainda assim,
revela uma unidade no seu bojo. Mas as outras já denotam um autor anônimo,
claramente tardio, tentando se passar por Paulo...
Depois de descobrir algumas contradições na
Bíblia e obter a confirmação científica das mesmas, a tristeza se instalou na
minha vida cristã, mas eu não conseguia mais me enganar. Desta feita, prossegui
nas pesquisas e aconteceu o pior: as contradições foram se multiplicando numa
progressão desconcertante.
Enfrentei o que não queria jamais, tampouco
imaginei que viesse a descobrir o quanto fora enganado, então, honestamente, cheguei
à fria conclusão de que a Bíblia não é a palavra de Deus. É a palavra dos
homens alterada, com enfeites, embora bela, mas duvidosa, construída durante
séculos para ficar parecida com alguma coisa deixada por Deus para a
humanidade.
Assim, minha vida mudou novamente.
Primeiro, embarquei num trenzinho com destino ao paraíso. Depois, no meio do
caminho, comecei a achar a viagem meio esquisita... O trenzinho estava cheio de
pessoas que falavam tanto de Deus, mas eram profundamente infelizes por trás de
uma vida de representação. Verdadeiros artistas na tarefa de atuar num
espetáculo de alegria desmedida, que camuflavam os tons de cinza chumbo e
sombras soturnas. Esses passageiros também mentiam muito uns para os outros:
diziam-se irmãos, mas se conduziam de forma contrária... Coisa horrível que vi:
de manhã à noite falavam mal uns dos outros como um eczema que vai e volta. Até
diziam que Deus era um só, mas cada um daqueles passageiros defendia uma
doutrina diferente e sempre esquisita. Chegavam a rosnar quando entravam em
choques doutrinários... Acho que facilmente enfiariam uma agulha de tricô no
tímpano do outro. Ou, até quem sabe, um furador de gelo no fígado do
irmãozinho. O ego daquelas pessoas não era nem um pouco diferente dos tubarões
sociais, ficava bem escondido por trás de uns livrinhos surrados de capa preta.
Às vezes, não eram nem livros, mas santinhos de barro com pintura em decapê, medalhinhas no pescoço ou uns
amuletos que tinham a forma de cruz. Aquelas pessoas não eram do meu universo.
A viagem começou a ficar chata. Então, pedi
para descer do trem porque percebi que aquelas pessoas queriam me usurpar a
possibilidade de ser feliz. Disseram-me, já sem o “amor” que demonstraram na
ocasião do embarque no trenzinho, que se eu descesse do trem seria torturado
para sempre numa fogueira junto com os que haviam desembarcado antes. Achei
tudo aquilo muito esquisito, até porque, o cheiro de queimado que vinha da
locomotiva não era de carvão, mas de enxofre. “Ihhh...”, pensei. Mais que
depressa, então, abri uma das janelas e pulei! Foram pequenas as lesões
externas. Até que foi fácil. No íntimo é que ficaram as maiores feridas, mas,
na medida em que eu caminhava pela estrada de volta à vida, elas cicatrizaram. Pequenas
sequelas sempre sobram, mas fazem parte de decisões dúbias do passado.
Os espinhos estavam ali, continuavam à
beira da estrada, mas agora eu sabia que eles eram reais, pois antes os
passageiros diziam que alguém iria sempre me ajudar a afastar os espinhos do
meu caminho, mas até hoje não apareceu ninguém para me prestar esse tipo de
ajuda. O pior é que eles também me disseram que, se não aparecesse ninguém para
me ajudar com os espinhos, era porque eu precisava deles na minha vida para crescer
na fé, ou, quando não, os espinhos só poderiam ser o castigo pelos meus
pecados... Eles mentiram, é lógico, pois são fracos. Descobri, então, que se eu
não tirar os espinhos da minha alma, ninguém vai tirá-los para mim e que a
noção de pecado, com a dose de terror que a religião aplica, é uma indústria
extremamente lucrativa.
O fato da insistência dogmática na tradição
textual apostólica não repousa no simples fato da importância dos apóstolos em
si. Repousa no pressuposto de que, sendo eles autoridade máxima em matéria de
fé, o que fosse postulado significava, com efeito, a expressão do próprio Espírito
Santo, o que constitui uma situação extemporânea e bastante conveniente.
A própria Bíblia declara a presença de um
“secretário” de Paulo, chamado Tércio. Ora, já temos um intermediário para o
principal dos apóstolos e isso significa um desdobramento interpretativo por
mais que se refute essa ideia. Só o fato de lermos um texto, já significa a
prática de um tipo de interpretação, pois a nossa leitura interior está associada aos conceitos que nos são
familiares, às nossas limitações perceptivas e à formação da imagística na
mente.
Ao lermos, interpretamos os fatos.
Imagine-se, então, quanto mais ao escrevermos, porque, com o uso das palavras,
raspamos impressões incomuns sedimentadas nas nossas mentes ao longo da vida e
fazemos delas um registro inevitável. Isso é visto pela ciência como um
processo automático em que apreendemos vocábulos, signos, sinais, referências
equívocas, símbolos, coisas empilhadas na memória por décadas e passamos a traduzi-las
em minutos. Tudo isso sem que possamos nos dar conta das nossas ações
interferentes.
Constatamos, assim, o procedimento dos
antigos – o mesmo de hoje. As epístolas de Pedro foram escritas séculos depois
da época anunciada e por quem dominava o grego com refinamento na redação,
portanto, não poderia ser obra de um pescador iletrado. É lamentável, mas as
fraudes “escriturísticas” eram muito frequentes na Antiguidade – habent sua fata libelli![1]
As
fraudes e falsificações foram os meios utilizados no curso da história para o
estabelecimento da verdade, que nada
mais é do que uma convenção, segundo o farsalhão humano na elaboração da mesma.
Demasiado humano. O que é uma convenção senão um ajuste? Uma combinação. Entre
os homens. Um acordo. Logo, a verdade é um ajuste? Mas se é tal, deixa de ser
absoluta. O pior é que deixa de ser perfeita. Tudo que é pactuado é imperfeito,
porque o pacto propõe a política e, consequentemente, a mentira. Se a mentira é
uma contradição, aí temos algo belíssimo na Bíblia: “Saibam, pois, irmãos, que
nenhuma mentira provém da verdade”.
Verdade não se convenciona, é algo que
intuímos. Está gravada como um código genético em cada um de nós. A verdade não
é um ajuste, ela existe mesmo. É absoluta enquanto ocorrência, mas não
significa o deus da religião. Não guarda relação com um deus construído. Não é
o que proclamam, que “uma mentira dita muitas vezes se torna uma verdade”.
Sofisma. Os governos praticam isso – dizem muitas palavras com mais areia do
que cimento para que se cristalizem como “verdade” na mente ignara. Mas sabemos
de tudo, apenas fingimos em relação às doutrinas religiosas, pois o que fazemos
melhor é mentir para nós mesmos.
O tecido dogmático está por trás da
religião. É uma urdidura que vem com a atração e o apelo de uma superfície
encantada, mas lançando-se um olhar mais profundo, suas bases necrosadas são percebidas
com clareza. Diante disso, não é difícil a compreensão da natureza humana,
corrompida desde as suas origens, em relação à invenção e falsificação das
Escrituras.
No nosso planeta tudo faz parte de um
complexo arcabouço espiritual para dar sustentação a intrincadas nuances do
mundo político-religioso, que tem como finalidade perpetuar a teocracia através
dos tempos – o atalho mais econômico e seguro para a dominação dos povos.
Um fato não só estranho, mas risível pela
ingenuidade do povo, sempre me intrigou: se os cristãos são realmente a
representação da unidade de Deus, por que a igreja dos cristãos nunca teve
unidade?... A resposta está no simples fato exposto até então: a Bíblia nunca
foi palavra de Deus e fica evidente sua construção tendenciosa, através dos voos
humanos cheios de criatividade. O Livro nos deixa a herança de infinitas
interpretações doutrinárias, contidas no seu corpo textual, para decepção dos
que investiram a vida nos desafinados caminhos da fé.
Ainda na linha dos pressupostos escriturísticos, passemos pelos escritos
pseudoclementinos, que alguns insistem ser de autoria de Clemente, o quarto
papa na sucessão histórico-apostólica romana. Embora sejam apócrifos, esses
“escritos” abordam um ponto nevrálgico, controverso, mas dialeticamente
bastante significativo, que é o episódio da visão de Paulo a caminho de
Damasco. Com tendência para o lado do apóstolo Pedro, os pseudoclementinos
relatam a querela entre Paulo e Pedro, principalmente sobre a ocorrência
duvidosa da estrada de Damasco. Pedro questiona o evento nesses escritos,
afirmando que Paulo não ouvira a voz de Jesus, mas a “voz interior” própria,
que nos vitima com desvios cognitivos múltiplos. Pedro reivindicava a estatura
de apóstolo maior, pois convivera com Jesus, ao passo que Paulo baseava seu
apostolado na visão que teria mudado sua vida a caminho de Damasco – o
perseguidor que passa a ser perseguido... Pedro, então, acusa Paulo de ser um
sonhador e o nega como apóstolo, segundo a interpretação pseudoclementina do
século III.
O motivo da citação pseudoclementina sobre
a estrada de Damasco, assunto recorrente na Igreja, é com a intenção de uma
volta ao tema do desvio cognitivo. Insisto nisso, pois é a razão de todos os
nossos fracassos – a má interpretação da realidade. A fé é algo tão relativo
que, a meu ver, estará sempre sujeita às variantes interpretativas. Essa
acusação de Pedro, afirmando que a carreira de Paulo era fundada numa aparição,
nos coloca diante de um problema tão grave que, se analisado livre de emoções,
gera uma sensação de desânimo devido à distância doutrinária e desarmonia entre
os dois apóstolos. De um lado, a importância em observar as leis da Torah como
cristãos; do outro, a valorização da fé sem a guarda das leis mosaicas. Então,
temos ou não uma contradição bíblica decepcionante? Isso, lógico, estabelece
rumos distintos e conflitantes para os cristãos. Pior que hebreus e cristãos
antigos se conduziam sobre argumentos sólidos, demonstrando princípios
obstinados. Fica o registro de uma grande discrepância.
Hoje, há unanimidade entre os mais
importantes acadêmicos – filólogos, arqueólogos e historiadores –, que
sustentam uma tese chocante: as epístolas de I e II Pedro foram escritas
tardiamente, depois do Pedro histórico,
por um autor pseudonímico. Isso, com o objetivo maior de conciliar os pontos de
vista dos apóstolos em questão, transmitindo a ideia de que não disputavam na
doutrina, recontextualizando a reputação teológica dos mesmos. Nessa ótica, as
epístolas de I e II Pedro dão corpo ao conceito de sintonia doutrinária e, até,
impressão de amizade entre os dois apóstolos, o que não deixa de ser
interessante para a Igreja.
Enfim, não há prova histórica de
praticamente nada em torno desses contos miraculosos. Por exemplo, a história
de Roma não registra nenhum censo no período do imperador César Augusto. Assim,
também, como a história não registra qualquer massacre de bebês pelo rei
Herodes... Bem, jamais sairemos dessa roda viva. É matéria de fé, das coisas
ditas muitas vezes, tautológicas, para que se transformem em regras de fé.
Infelizmente, o que aconteceu nos tempos
bíblicos, melhor ainda, em todas as épocas da história do mundo, foi
manipulação do homem pelo homem. Homo
hominis lupus[2].
A religião que, na ânsia de fincar os seus dogmas na mente humana, promoveu a
“verdade” através da mentira.
Rodrigo Constantino, na sua obra Esquerda caviar, nos presenteia com
Freud: “É necessário algum desenvolvimento intelectual para se acreditar no
acaso; o primitivo, o ignorante e também uma criança já sabem atribuir uma
razão para tudo o que acontece”...
Constantino com seu texto: “A angústia de
viver sabendo que desgraças simplesmente acontecem, sem necessariamente uma
causa específica, leva muitos à busca de bodes expiatórios – vivos ou mortos.
Há os vilões espirituais também, como o karma
de vidas passadas, os espíritos malignos, a 'energia' negativa dos inimigos
etc.”. Por que não algumas releituras?
Segundo a declaração de Freud sobre a
criança e o ignorante já saberem atribuir uma razão para tudo o que acontece,
de que vale continuar na tentativa de abrir os olhos do primitivo? No meu caso,
vale por atender a uma imposição íntima de dever com a consciência na etapa da
vida em que me encontro. Necessidade biológica. Também a esperança de alcançar
pelo menos um que me ouça no insulamento desse mundo superpopuloso e sujo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário