O CINISMO CRESCENTE DA INDÚSTRIA DA FÉ
Tratei desse tema no meu livro A indústria da fé. Fi-lo com foco
diverso anteriormente, agora quero de novo expô-lo sem rodeios e com foco mais
estreito.
Existe algo assombroso no mundo de hoje que
deve ser visto como uma emergência intelectual. É a crença cega, que pertenceu
e deveria continuar pertencendo aos tempos antigos. A crença não evoluiu. As
coisas mudaram e mais da metade da população da Terra continua a acreditar em
besteiras por pura preguiça de refletir o mínimo sobre o que significa crer em
algo de forma cega. Passados os séculos e o mecanismo da crença continua o
mesmo!
Esse mecanismo repousa sobre paliçadas
psicológicas: o instinto de rebanho, que é o devir absoluto de comunidade; de
comunhão em diversos níveis, representa as estacas para a elaboração da religião.
É inevitável a busca frenética por mistérios em tudo como combustível para a
manutenção da fé e do encontro inadiável de significados que provoquem a
sensação de eternidade.
Seguiu-se o repetitivo. Modelos existentes
foram desdobrados e os humanos se fatigaram do ensino contraditório e confuso da
religião. As pessoas se enjoaram com o mau-hábito dos religiosos: há séculos
esmiuçando passagens bíblicas isoladas para justificar os seus interesses,
inclinações íntimas, e essa atitude não é filosófica de per si – é apenas repúdio ao mau-hábito citado. A demonstração de
cansaço dos modelos impostos pelo processo da civilização, um pragmatismo inevitável.
Reconhecer o óbvio não deixa de ser uma ação pragmática. A religião chegou ao
esvaziamento.
Se o mundo agora tende a ter o Deus bíblico
como ficção, que deus deixaria de ser ficção? Quando me dizem “vai com Deus”;
“fica com Deus”; “Deus te abençoe”, normalmente respondo: “Qual deus?”... Em
resposta, ouço quase sempre: “Ah, mas Deus é um só”... Isto é um equívoco como
declaração. Claro, pois para cada deus formatado, existe a razão básica para a
sua formatação – a dogmática –, sem a qual Deus não é concebível. O religioso
não identifica um deus sem o conjunto dos dogmas. Fica no escuro.
Enfim, encontraram o remédio no programa
monoteísta e, depois, imprimiram a bula: o bom Livro. O único jeito encontrado
pelo homem para que os devotos pudessem racionalizar tanta complexidade. Nesse
faz de conta, o homini religiosi[1]
descobre as suas referências de nobreza como um alvo e a simulação de certeza
deixa de ser vergonha, suspeição, para se tornar algo elevado.
Nesse programa monoteísta, foi inserido o
mistério da regressão infinita – Deus como criador do universo, o que propõe o
criador de Deus –, dando-se por inventada a causa de si mesma... Mesmo se
falando de monoteísmo, não adoramos o mesmo Deus. Porque caímos no plural:
monoteísmos. Ainda que fosse um, as maneiras não deixariam de ser variegadas.
Assim, foi proposta uma entidade superior, um ser mágico que reúne a causa de
si mesmo e esmaga aqueles que não creem nele, porque os ama...
Por que a Igreja detém o monopólio da
virtude? Tem origem no fole e na bigorna do pensamento distorcido, isto é, na
antifilosofia. De acordo com Michel Onfray, “essa corja de uma filosofia que
colabora – com a religião e o poder de Estado – já existe no século XVIII...”.
Padres da igreja na posse da verdadeira
filosofia, não só da virtude, mas o monopólio de tudo. “Todas as sabedorias
antigas, por serem pagãs, são errôneas; todos os cristianismos alternativos,
gnósticos notadamente, são heréticos, assim como os pensamentos autônomos ou
independentes são proibidos de fato. A Ágora? O fórum? O jardim? Acabou-se... A
igreja fica com o cacife e escolhe os trunfos episcopais – logo imperiais”.
Essa Igreja que propala a felicidade
suprema no céu, mas quer o poder no mundo. Pois, assim, nos legou Sêneca: “A
religião é verdadeira para as pessoas comuns; mentirosa para os sábios; útil
para os governantes”...
O que é a religião senão um anestésico brutal,
que nos ensina a fórmula da felicidade por não entendermos o mundo e a vida? O
real é substituído pelo imaginário com muita facilidade, pois as crenças não se
fundamentam em evidências, daí virarmos presas fáceis pela nossa necessidade de
crer em alguma coisa. Será que Deus, ao dar-nos inteligência, nos castigaria
por usá-la? Aí está o problema, a brecha que faltava para o clero dominar o
homem: a questão do medo e da culpa.
Os religiosos profissionais chegam na hora
certa para explorar esses pontos fracos, como uma aranha usa a teia para imobilizar
a presa. Importa que Deus seja
exaltado, pois é preciso que se sobressaia o devir da alienação completa, que
os seres humanos permaneçam anestesiados intelectualmente e, assim, a reflexão
seja extinta no mundo de uma vez por todas.
Hoje, perplexos, assistimos a banalização
das promessas que foram aceitas um dia como eternas. As instituições
eclesiásticas caíram através do desgaste doutrinário, pelo que semearam. Então,
chegaram os carniceiros clericais para se instalar na zona de conforto dos feudos,
que eles ajeitaram convenientemente. Bispos, evangelistas, missionários e até
“apóstolos”, atores histriônicos supervenientes, pululam, transitam em todos os
níveis sociais, num esforço derradeiro para impedir que as ovelhas apáticas fujam
do aprisco romano para o redil do fradinho Lutero...
Chegamos ao tempo do cinismo. O que é
isso?!... Esgotaram-se os resquícios de dignidade no mundo da fé? Pelo
contrário, a competição ficou mais acirrada. Reverências a Hobbes, porque “o
homem vive em permanente estado de guerra com o seu semelhante e é uma guerra
de todos contra todos”. A seleção natural-social, que teve seu início nos
átrios sagrados, passou pelos púlpitos e se espraiou pelo mundo!
Não são meras diatribes o que faço a seguir,
pois simplesmente não perderia meu tempo com críticas infundadas e vazias ao
clero. O que registro tem o caráter de denúncia, também de apelo ao bom senso e
à reflexão, na esperança de que as pessoas despertem de um sono de séculos, ou
talvez milênios. Despertar não pelo uso da minha dialética mais do que modesta,
mas pelos indícios de mudança nas fés pelo mundo, que são muito mais fortes do
que em qualquer outra época da história. O homem sabe que foi enganado pela mentira de séculos, mas percebe que não
há mais espaço no palco da falácia religiosa para atuar vida afora.
As coisas não são mais as mesmas, uma vez
que respostas clássicas da religião eram em si suficientes para que o mundo
continuasse com a sua trajetória cínica, sem tirar a poeira debaixo do tapete. O
questionamento milenar sobre as fés canônicas, que outrora não chegava à
ebulição, transbordou o bule. O ser humano está sufocado e caminha para a
rejeição das transcendências. Isto tem que ser pensado e discutido, já que é
sintoma grave.
Hoje, temos a vigarice institucionalizada.
Líderes evangelistas encontraram a porta da festa escancarada e entraram sem
convite! Descobriram a fraqueza do povo: o desespero da vida. Então, a
convulsão social aumentou o nosso medo, a ânsia por segurança, e apagou o foco
das verdades eternas para substituí-las
pelo imediato – a busca da prosperidade, prato feito para o time dos
profissionais da fé. A prioridade é a mesma dos não religiosos: o espaço aqui.
Fala-se do céu, mas como pano de fundo de um cenário qualquer.
Miríades de pregadores, com a voracidade
descontrolada, se organizam em redes mafiosas para perseguir o ouro e a prata.
Fazem treinamentos intensos de impostação de voz com os seus sequazes, para que
os tais simulem o mais fielmente possível o estilo de discurso do líder maior,
o santo patrão. Normalmente, o cara é bispo – até apóstolo. Menos do que isso,
como ostentação de título inventado não serve, não tem impacto. É a síndrome
dos títulos eclesiásticos dos circuitos fechados alienantes. Pastor ou
missionário não tem mais força popular. Apóstolo é porreta!
O gestual acompanha a mesma abordagem
dolosa: movimentos e gestos do líder escolhido devem ser imitados para que a
imagem do tal se consolide com sucesso na mente do povo. Os líderes evangelistas,
usando técnicas teatrais, fixam a sua imagem a qualquer preço... Elaboram um branding[2],
fazem pastiche, imitam as agências de propaganda. Esses monstros predeterminam
estilos comportamentais de fala, gestos, reações, olhares ensaiados, enfim, o típico
encarceramento perceptivo imposto. Porque existe a necessidade de criar um rótulo,
que recebe autenticidade a partir de um conjunto de ações que sustente uma
teologia qualquer.
As idiossincrasias introjetadas no devoto vão
construir um “modo teológico”, uma diferenciação qualquer, intuída, para
concretizar novo grupo social na igreja. É preciso a implantação de novidades
para atrair o povo, pois a vida é um processo em constante mudança. Na indumentária
dos fiéis, nos gestos de piedade assentados por intuição, que seja um código
implantado e embebido em vaidade, uma vez que o crente precisa ser identificado
por seus iguais, como pelos líderes. Não importa o grupo cristão, dos mais
despojados aos mais paramentados, da Igreja de Roma ou de Lutero, o processo é
o mesmo na preparação das ovelhas: a
implantação da culpa e do medo.
Por
que o ensinamento moral tem que ser permeado pelas fantasias e ameaças de danos
eternos como propõe a religião do Livro? É fácil entender: sem ameaça, medo e
culpa as pessoas não são doutrinadas com sucesso. Nessa linha de raciocínio, como
então dogmatizar um desigrejado? O
ensinamento que uma criança recebe dos seus pais não vem acompanhado de dogmas,
mas sim embasado com a simplicidade do bom caminho que ela deve seguir na vida.
Do mesmo jeito que a boa moral não vem da Bíblia, que não é parâmetro para o
nosso tempo. Vem dos pais, da família, dos professores e amigos verdadeiros.
Ora, nem toda família tem condições de transmitir princípios morais elevados,
porém, muito menos um livro escrito há milênios, quando as regras sociais e as leis
eram completamente díspares das que temos hoje, a exemplo de apedrejarem a
mulher ou os próprios filhos até a morte quando cometiam certos pecados
previstos na lei de Moisés...
Hoje, temos na pista do ouro a mais nova
invenção evangélica: a teologia da prosperidade. Foi plantada a semente da
cobiça pelos abutres da fé, a pastorada da corrida do ouro, hoje encontrada no
bloco da neopentecostalhada – fazendo
a massa pobre e desfavorecida acreditar que o reino de Deus é a busca pela
prosperidade. Os fiéis miseráveis, nos estertores pessoais, com fome, sem
saúde, sem emprego, não têm possibilidade de pensar na salvação da alma. É aí
que entram os apóstolos da teologia
da prosperidade, porque esse negócio de “salvação” ficou para trás – o que vale
é prosperar!
Seriam, por acaso, traços de uma herança
judaica recrudescente com o neopentecostalismo? Repare-se que o cristianismo é
nada e tudo ao mesmo tempo. É como o chocolate, com mil maneiras de ser
apresentado e, no final, tudo é chocolate. Escamoteando aqui e ali, consegue-se
atender ao gosto mais exigente no self-service
da teologia que temos ao alcance. Outros grupos, entretanto, da mesma seara dos
evangélicos, se escandalizam com tal teologia e abominam a busca da
prosperidade como meta de fé, esses são os pilares da fé, os crentes “das
antigas”...
Assim, os monstros de Deus, que furtam a
massa de manobra santa, separada para servir, mas também cheia de dolo, marcham
triunfantes em direção a – Jesus? Ou a auri
sacra fames[3]?
Esses monstros do púlpito sequestram a programação normal dos meios de
comunicação para construir a própria imagem de grandes heróis da fé, que não
passam de anões viciosos e anticristos absconditus[4]...
Se eu pudesse compará-los a animais, situar-se-iam próximos ao dragão de Komodo[5],
que esperam as presas com paciência.
Esses líderes, vampiros-clericais, exploram
a cura divina como uma alavanca emocional, que aplicam no público. Utilizam
fotos dúbias para exibir o antes e depois de doenças escabrosas, onde
predominam acidentes dermatológicos repugnantes, que deixam o público ainda
mais impressionado. Perfeito apelo emocional, bem engendrado, para que seja
mantido o deslumbramento com a “cura” alcançada. O espírito é tão bem envolvido
que os olhares mais analíticos são logo desviados através dos truques e milagres, confirmados pela eloquência do
pregador histriônico.
Em meio à teatralidade recorrente,
predominam as dores no ombro, no pé, no joelho, que acompanhavam a vítima até
aquele momento. Depois da oração a dor some. Outros, que chegaram sobre
cadeiras de roda, voltam sem elas, mas tortos, capengando... Continuam
aleijados e agora sem as cadeiras. Bem que poderiam pendurar uma faixa no
evento: “Festival do êxtase religioso neuropatológico da prosperidade”.
As promessas são variadas para a cura: dos
cânceres mais enraizados às dores de cabeça mais inocentes, passando pela
experiência da cura total da aids,
bem como a solução da cegueira, da surdez e outras tantas mazelas presenteadas
pela natureza, ou pelo Diabo. Se não foi curado, não é porque a oração do pastor
falhou, é porque a fé do freguês não serve para nada. Problemas financeiros, no
casamento, com os filhos, tudo pode ser resolvido pela fé, ou não, mas sempre solucionado
independente de qualquer oração. Se o devoto rezar, pode demorar até uma semana
para o problema ser resolvido, ou não. Mas se ele não rezar, o problema pode
durar até sete dias...
O clero jamais revelou ao público que orar
por um milagre é a mesma coisa que esperar as leis do universo mudarem em favor
de um indivíduo e dos seus interesses, contra o desamparo de outro, talvez mais
merecedor de um milagre. O clero é tão melífluo que nos induz ao egoísmo, à fé egocêntrica, fazendo-nos acreditar
como idiotas que somos merecedores da alteração das leis do universo em favor
dos nossos interesses pessoais. Daí, esse mesmo clero, para despistar o egoísmo
que retemos, induz-nos a orar para agradecer as bênçãos supostamente recebidas
e a interceder pelo nosso próximo. De pronto, nos sentimos fortalecidos, até
que a culpa volte para os nossos ombros. Depois, nos coloca de novo na pista
para perseguir os interesses materiais, que são os deles no final. Se
falharmos, a falha é da nossa fé, ou, então, o tempo de Deus para que algo
sobrenatural acontecesse não chegou.
Devemos recomeçar, filiados a um templo, é claro. É ali que acontece uma
sinistra doação de sangue. A agulha fura a nossa veia e o sangue flui. Somos
esvaziados. Desaparece a alegria pessoal em troca da alegria coletiva, oriunda
de um método pietista qualquer. Vai embora o que nos é mais caro: a
individualidade e o poder de reflexão. Nessa transfusão metafórica, nosso
dinheiro também se vai... Entregamos o dízimo e as ofertas alçadas. Alguns
passam fome para dar o dízimo e as
ofertas. A bispalhada, entretanto, não gosta do termo “dar” o dízimo, dizendo
que, se não for cumprido o ato, significa roubar a Deus. Não é dar, é pagar!
Mas que história é essa de dízimo? Até onde sei é um rito antigo, destinado aos
hebreus e repassado pelos levitas ao Templo na forma de colheitas periódicas.
Ordenança para o antigo “povo de Deus”, portanto, os gentios não foram
obrigados a tal proeza. Mas, se essa obrigação não fosse também destinada aos gentios
que entraram pela janela, por que a pastorada imporia o jugo da lei aos libertos da lei?
Não dizem as Escrituras que “aquele que
quiser guardar a lei e tropeçar num só ponto torna-se culpado de todos?”... Por
que os pastores sugam as ovelhas, através de ofertas, dízimos, ao aplicar até o
uso covarde de carnês, cartões de crédito e outras firulas contemporâneas? Já
não basta proteger um deus que se sente roubado nos dízimos? Advogados do Diabo
que atendem outro cliente? Quer dizer que o gentio não pode guardar nenhum item
da lei, mas pode quebrar a lei sendo obrigado a pagar o dízimo, uma vez que
essa lei é apenas destinada aos judeus? Povo ignorante que gosta de ser
enganado! Esse povo tem dolo no coração, pois busca com extremo esforço a
prosperidade e as posições sociais de destaque. São mestres da troca.
Pastores de Israel que se alimentam da
gordura das ovelhas! Todos conhecem o mito de Vlad Tepesh, bem romântico, mas
me refiro apenas aos vampiros do púlpito – recorrência mais grave e desoladora.
Condicionar pessoas a um sistema, ao escravizá-las intelectualmente, fazê-las
“felizes” apenas na condição de grupo dogmatizado, é roubar-lhes a identidade,
privá-las de liberdade, imputando-lhes a cultura do “tudo é pecado”. Prática que
significa sugar-lhes o sangue vampirescamente. Assim é o clero doloso, notívago,
pelo hábito das sombras – hematófago em busca dos submissos. Não preserva a
saúde espiritual dos devotos, nem se preocupa com o seu equilíbrio emocional,
tampouco a felicidade, mas sim com a míngua que eles guardam nos bolsos,
coitados. Se forem milhares de bolsos, ainda que com modestas quantias, muitos
serão os milhões que fluirão como rios de água viva direto para os cofres
pastorais. É na quantidade que eles ganham e ainda dizem: “Eles querem doar,
nós não pedimos”... Pedem sim! A todo instante, mesmo indiretamente. As
religiões mais tradicionais são reservadas e o fiel nem vê o sangue sair. Mas
as “neo” alguma coisa são bem mais descaradas, vivem para o dinheiro. Com a paz
do Senhor, pagou, levou! Bênçãos dos céus e promessas de prosperidade. Até o
Vaticano tem um banco – e o clero se devora!
Como fé é a mesma coisa que ignorar a
verdade, com boa dose de teimosia dos crédulos, o clero se aproveita dos
iludidos. Esses tais comem quilos de ilusão, gostam disso, precisam disso, como
viciados em sexo mental. Alimentam as ilusões porque têm medo de que lhes
faltem os sonhos dourados, que são mantidos pelo “amigo imaginário dos adultos”.
Então, a porta está aberta para os abutres fideístas, num ato prometeico. Lá se
vão os fígados dos crentes... Diz o líder santo: “Bem-me-quer, mal-me-quer, eu
fico com a grana e vocês ficam com a fé”.
Veja-se que o surto do circo
neopentecostalista ainda permanece montado. Até que a moda passe. Quando os
crédulos perceberem que a moda não era mais do que uma arrumação pantomimada,
que as “curas” eram resultado de puro desvio cognitivo, enfeitado por um
espetáculo neuropatológico, aí sim, terão que enfrentar a realidade cruel: nada
disso é uma questão teológica, mas científica. Facilmente explicável pelos
psiquiatras. Já dizia Lawrence Krauss: “A ciência tem sido eficaz em promover
nossa compreensão da natureza porque o ethos
científico é baseado em três princípios: 1) siga a evidência aonde quer que ela
o leve; 2) se alguém tem uma teoria, precisa provar que ela está tão errada
quanto certa; 3) o árbitro supremo da verdade é o experimento, e não o conforto
que se tira das suas crenças a priori,
nem a beleza ou a elegância que se atribui aos próprios modelos teóricos”.
Nessa linha, segui a evidência. Quando,
anos passados, pesquisei de perto a onda das curas divinas, em igrejas que eram
referência no tema, fui vítima de desvios cognitivos e acabei por me filiar a
uma dessas instituições, que por pouco não destruiu a minha vida. A tônica era
a cura divina, portanto embarquei. Depois de algum tempo, parei para analisar
os casos estranhos que me chamaram a atenção por serem duvidosos, virando alvo
de pesquisa. Foi medida empírica, mas apliquei a seguinte divisa: a dúvida de
tudo. Descobri o que não queria – uma conjuntura fraudulenta –, pois busquei
muitos líderes para obter respostas. Aquele que mais me chamara atenção, missionário
que operava “milagres autênticos”, foi denunciado com o seu esquema e preso por
atentar contra a fé pública. A Igreja, então, como um autêntico Tribunal do
Santo Ofício, para não se comprometer, queimou
o pastor na hora certa.
Descobri porque questionei. Cheguei, então,
à conclusão clara e convicta de que todas as “curas” aconteceram na minha mente,
amparadas pelos artifícios dos mágicos que desviam nossa atenção do centro do
truque aplicado. Com certeza, o truque consistia na desestabilização emocional
do público presente, levando todos às lágrimas... O espetáculo tinha o apoio
dos gritos histéricos, hinos em volume alto, desvio dos olhares para bengalas
brancas sendo arremessadas, feridas abertas e infeccionadas, indução a orações
intermitentes para manter o clima, aparência de autoridade crística do líder,
êxtase contínuo para disfarçar, enfim, atitudes cênicas variadas para reforçar
os milagres... A maioria era mantida crédula, inclusive eu, que aceitei o
engodo com medo de duvidar de Deus. Descoberta
a fraude, o milagreiro foi execrado, principalmente pelos irmãos da própria fé.
Depois, sem desafinar o tom, a igreja providenciou outro missionário de curas divinas
para não perder a concorrência com igrejas da mesma linha. Lógico, com a adoção
de novas técnicas e artimanhas.
O novo missionário, sucessor do embusteiro,
tinha um topete nojento, que não lavava nunca e o colarinho tão ensebado, que
virou gozação entre os fiéis. Os crentes chamavam-no de pastor “cabeça de
sebo”... Mas era santo. Faltava-lhe o pescoço, por ser tão curto, nem virava
direito. Comerciante e dono de muitas lojas, gostava de olhar para os outros
com ar professoral, empoleirado no púlpito. Aconteceu que, mesmo velho que era,
envolveu-se num escândalo com uma jovenzinha, motivo para o fim da sua carreira
funesta... Menos um santo no rol dos oportunistas. Enfim, o povo alimenta seus
líderes famintos.
Povo estúpido. Carente e com aparência de coitadinho.
Mas talvez nem seja tão coitado, pois também é doloso. No fim das contas, todo
mundo quer a mesma coisa: o reino de Deus, mas antes ajeitar a vida por aqui...
Alguns, até parecem buscar primeiro o reino e a sua justiça, para depois
ajeitar a vida. Comigo, há muitos anos, não deu lá muito certo priorizar o
sonho, pois caí no real, meu burrinho escorregou e se estropiou. Bem, pelo
menos tentei prestar um serviço a mim mesmo, vivendo a fantasia como eles
mandam, mas nem tudo foi perdido, pois tive a oportunidade e o privilégio de ajudar bastante a pastorada a prosperar.
Um deles, inspirado, até me disse que Deus vai me recompensar no céu por tanta
generosidade com a Igreja. Ruborizei-me de emoção. Então, pude dormir tranquilo
com a bondade de Deus...
Se o engano existe é porque o povo o
cultiva. Em todos os níveis – da política à religião. De que adianta, portanto,
varrer o sectarismo da face da terra? Enquanto só existir um humano nesse
planeta, a religião existirá com ele, porque o homem insiste que tem
necessidade biológica de crer em alguma coisa. Vai ver que não passa da crença
na sensação – de fé; de proteção; de amor; de justiça; de eternidade.
A
fortiori ratione, o presente livro é escrito, não como diatribes em oposição
à Igreja, mas como um bloco de texto em que insiro denúncia contra o sectarismo
e o testemunho que me preocupei em buscar incansavelmente: algo verdadeiro
oculto por trás da religião. Ninguém me ajudou, achei o atalho sozinho, por
isso estou certo de que posso dar uma pequena contribuição àqueles que se
encontram sufocados pela religião, como eu estava no passado. Afinal de contas,
nunca é tarde para prosseguirmos em busca da verdade.
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