quarta-feira, 10 de junho de 2015

O DESGASTE DA IDEIA DE DEUS

Construíram um senhor fornido, de barba crespa e branca – em seguida, enfiaram-no numa camisola branca, lá na Antiguidade. Confesso que o acho parecido com Karl Marx. Um misto de aparência de bondade com um aspecto bruto e grosseiro. Isso mesmo, o gênio de Michelangelo nos deixou esse incrível retrato divino-anabolizado, da Antiguidade. Se os papas mantêm essa figura no teto da Sistina, é porque pegou. Ele é Deus!

Os outros também são parecidos com Deus, porque os demais pintores também tinham sua devoção. Mas, no meu simples ponto de vista, acho que fico mesmo com o Deus da camisola. Bem, retomando um tom mais sério, a ideia da deusa-mãe, anterior ao monoteísmo judaico, não prosperou. Por que razão o monoteísmo judaico triunfou com a formatação de um deus masculino, de voz grave? Pelo menos foi assim no filme de Cecil B. DeMille...

Foi concebido pelos hebreus um modelo de deus masculino, forte fisicamente como pintado, mas que resultou confuso e fraco nas atitudes, a ponto de ter se arrependido de haver criado o ser humano. Os antigos hebreus projetaram uma figura masculina que representaria o seu deus. Curioso, deram-lhe um nome que não poderiam repetir à toa, pois seria tomá-lo em vão – mas e agora?

Desde que as sociedades antigas se tornaram patriarcais, o deus tinha que ser macho e precisava de uma biografia. Biógrafos hebreus nunca faltaram, por isso, hoje temos o Livro, embora, com a evolução do mesmo, não pudessem mais mudar o sexo de Deus. Já estava registrado, senão o que seria da religião do Livro?

Revendo Michel Onfray sobre a construção do Livro: “Os evangelistas desprezam a história. Sua opinião apologética o permite. Não é preciso que as histórias tenham acontecido efetivamente, não é útil que o real coincida com a formulação e a narração que se oferece dele, basta que o discurso produza seu efeito: converter o leitor, obter dele uma aquiescência sobre a figura do personagem e seu ensinamento”. Temos, assim, a forma perfeita para o constructo teocrático do Livro, segundo Onfray, que prossegue: “Todos creditam realidade a uma ficção. Acreditando na fábula que contam, dão-lhe cada vez maior consistência. A prova da existência de uma verdade reduz-se com frequência à soma dos erros repetidos que um dia tornam-se uma verdade convencionada”.

O momento mais difícil na minha vida de credulidades, mas que não me desviou do enfrentamento com a questão em si, foi conhecer o que concluiu Michel Onfray: “Jesus é, portanto, um personagem conceitual. Toda a sua realidade está nessa definição. Certamente, ele existiu, mas não como figura histórica – a não ser que de maneira tão improvável que pouco importa a existência ou não. Ele existe como uma cristalização das aspirações proféticas de sua época e do maravilhoso próprio dos autores antigos, isto de acordo com o registro performativo que cria dando nome. Os evangelistas escrevem uma história. Com ela narram menos o passado de um homem que o futuro de uma religião. Artimanha da razão: eles criam o mito e são criados por ele. Os crentes inventam sua criatura, depois lhe prestam culto: o próprio princípio da alienação...”. Para mim, foi muito difícil enfrentar esta declaração.

O homem encontrou um meio para fixar a imagem de Deus desde a Antiguidade, sem o qual a imagem convencionada não teria alicerces, mudaria mais amiúde. Esse meio se mostrou eficaz através da escrita de uns livros sagrados. Como funciona o processo de aplicação pedagógica dos livros? Muito simples. Adotando o princípio da fidelidade do devoto, tomemos a Bíblia como modelo. Se um religioso admoesta alguém sem usar o Livro, dizendo que o tal cometeu o pecado de adultério, esse alguém pode mandar o religioso passear em outras bandas. Mas se esse mesmo religioso utilizar o Livro, citando uma passagem relacionada ao erro em questão, a pessoa advertida encarará a situação de outra forma. O medo toma conta dela, pois não é o religioso quem diz, mas o Livro sagrado. Sempre o medo e a culpa.

Nessa linha de raciocínio, o ensinamento sobre adultério seria absorvido anteriormente pela fé do devoto. Uma vez assentado o referido desvio cognitivo na mente crédula e, com a consequente confirmação emocional no indivíduo doutrinado, a estratégia da escrita responde ao resultado com êxito absoluto. É fato concreto, pois a escrita estabeleceu um estereótipo que, sem dúvida, passa a ser de aplicação universal.

O episódio, que relata a situação de adultério, torna-se uma história aceita universalmente pelos crentes. O assunto é mais forte do que o acontecimento, por isso, tende a configurar uma verdade admitida. Esse é o mecanismo do dogma, portanto, não é para ser questionado. A vontade de Deus sempre contou com a preguiça intelectual dos seus seguidores.

Os protestantes e os católicos já aceitaram, mesmo veladamente, o método histórico-crítico tão enfatizado neste livro. Os cursos de teologia das igrejas mais importantes adotam esse princípio por uma questão de inteligência, pois perceberam que o cristianismo precisa de adaptações, novas interpretações da Bíblia, para que ela não se revele como história da carochinha... Evangélicos, imãs muçulmanos e rabinos ortodoxos, cegos, insistem na ideia de que o Corão e a Torah provêm literalmente da boca de Deus.

Uma prova inconteste de que o cristianismo está mais lúcido em relação ao irreversível método histórico-crítico, é a declaração do papa João Paulo II, em 1996, sobre o desdobramento da teoria de Darwin, afirmando que ela é “bem mais do que uma hipótese...”, ao admitir que “se o corpo humano é originário de substâncias preexistentes, a alma tem que ser imediatamente criada por Deus”. Ora, ora... Isso é um grande sofisma, mas foi enviado pelo papa oficialmente à Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano. Falha que demonstrou a grande fraqueza da Igreja de Roma no século XX, pois agora eles não têm como refutar o princípio da seleção natural e do evolucionismo. Se o papa tivesse refletido mais, não prolataria uma sentença absolutamente romântica, na tentativa de salvar a fé católica. Na seleção natural, Deus é desnecessário.

Mais uma derrota da igreja: o sumo pontífice embolou fé com ciência. Ó grande papa, como vossa santidade vai resolver sobre os seis dias da criação e o sétimo, feriado de Deus? Para complicar mais, o sucessor, Bento XVI, demonstrou também ser adepto do método histórico-crítico, pois aderiu ao princípio do que Jesus poderia ter dito ou não, atribuindo isso aos acréscimos tardios e alterações textuais da Bíblia. Talvez seja esse um dos motivos da queda de Bento XVI. Mais do que nunca, ficaram flagrantes os sintomas de desmoronamento da Igreja de Roma no século presente. Qual será, então, o futuro da fé cristã?

Temos o Livro, a fortiori construído para firmar o perfil de Deus, agora, no sentido inverso, por revelar tantas contradições, passa a comprometer a ideia de Deus. Observe-se que o alicerce da casa já não se mostra suficiente, porque puseram na edificação muito saibro e pouco cimento... O caso é que o transcendente não basta mais! Então, convém que dissimulem, pois uma vez que a Igreja adere abertamente ao método histórico-crítico, seu futuro se torna incerto e ameaçado, mas os que já estão no poder permanecerão no reino aqui da terra ainda por um bom tempo.

Há quem ainda defenda a Bíblia como palavra de Deus, no rigor máximo da expressão. Sustentam que, quando canonizada, seus redatores deixaram de propósito os deslizes que a Bíblia apresenta como prova da honestidade dos seus escritos. Ora, seus primeiros redatores não quiseram alterar as contradições para que, através dos erros, as Escrituras mantivessem o selo de autoridade maior, justamente como prova da fraqueza humana. Acho difícil que isso tenha se passado dessa forma. Vejo nesse argumento a afirmativa da imperfeição humana, com a finalidade de reforçar a perfeição de Deus, o perdão divino e jogar a culpa na humanidade infeliz.

É preciso separar as coisas. Importa, então, a priori fazer mais uma observação sobre este trabalho: minha intenção não é discutir a natureza de Deus como objetivo primeiro, mas sim trazer à luz o problema da construção da Bíblia, que mantém o conceito de um deus específico, formatando-o. Mesmo porque, o presente livro perderia sua retaguarda científica, pois o que está em discussão permite a análise histórica e a abordagem da razão.

O Absoluto impessoal, ou Força superior, é uma hipótese. Por essa razão, não existem elementos probatórios da ciência para tratarmos de um assunto tão abstrato. Nem mesmo o Deus da Bíblia está num plano primacial de discussão. Ele é um produto do Livro. Somente dessa maneira, poderemos discutir a história do nascimento da religião do Livro, com todas as suas implicações.

Ao discutirmos um Ser Absoluto, caímos inexoravelmente na roda da religião e o que pretendo é ser racional. Hipóteses, na ótica científica, exigem provas. Na religião, interpretações. Não é à toa que ainda vivemos sufocados por uma emergência intelectual sem proporções, a contumácia da fé sem reflexão. Interpretações não me interessam, todos têm muitas. Comprovação histórica é outra coisa, nada tem a ver com o atraso da religião.

Todo devoto tem cegueira da razão e permanece encarcerado ao tenebroso mundo perceptivo que o engoliu. Ele detém uma visão parcial da realidade – fracionada –, longe de vislumbrar o todo. Lembremos, então, de um argumento primário, mas extenso na expressão: “todo religioso acha que sua religião é a certa”, ou, pelo menos, a que mais próxima está da verdade. Ora, se a sua religião é a certa, a minha tem que estar errada, porque não há verdade em coisas que divergem. Essa história de que todas as religiões são boas, só porque promovem o bem, não corresponde à realidade. Nenhum dogmático aceita o dogma do vizinho, antes combate o tal com uma espécie de ódio silencioso, esperando que Deus esclareça o vizinho ou castigue o incréu sem piedade. Concorrente bom é concorrente morto afinal...

Existe uma ética suspeita no meio religioso, que estabelece certa disputa silenciosa. É uma expectativa de comprovação divina nas doutrinas de cada um e, quando isso não acontece, sobrevém o desconcerto, amparado pelo silêncio do crente. Mas quando a comprovação “acontece”, ou melhor, um desvio cognitivo causa essa sensação, significa para ele a assertiva de Deus, a confirmação final. Confirmação emocional! Deus, então, “mostra” ao religioso vencedor, sempre com fundo doutrinário, que a sua religião é a certa, o que é motivo suficiente para que ele prossiga na fé, cheio de confiança, sem perceber sua própria cegueira intelectual pelo resto da vida. Essa é a confirmação emocional que vem depois do desvio cognitivo, a inferência paradigmal injuntiva, mãe de todos os “achismos” e distorções cognitivas.

Sobre mim, posso falar com segurança. Quando, no passado distante, ingressei no meio das seitas cristãs emocionantes, uma denominação atraiu minha atenção em particular. Chamava-se “Assembleia de Alguma Coisa”. Imediatamente, achei que havia encontrado meu caminho para o resto da vida e tudo parecia mais claro do que a água. Cheguei ao ponto delirante de admitir outras denominações como boas, que seus integrantes também eram salvos, mas que a “minha igreja” superava as demais, pelo simples fato das doutrinas serem mais próximas da verdade...

Meu primeiro grande desvio cognitivo! Uma viagem que quase me levou à ruína absoluta: distorção de valores, ruptura social – amigos, família –, tudo por água abaixo. Alienação total e neurose típica dos “escolhidos”. Assim minha mente foi formatada.

Depois do período pentecostal de lavagem do meu pequeno cérebro, fui conduzido à última fase: a confirmação emocional. Depois que fiquei imbuído do espírito de santidade, meu cérebro aumentou de tamanho, mas pelo excesso de estupidez e ela pesa. Era um separado para servir e isso mexe com a vaidade espiritual de qualquer um que acredita nessas coisas. Já pensou? Um escolhido de Deus? Pois é, assim encontrei a igreja certa e perfeita, uma “Assembleia de Alguma Coisa”, até que um dia, felizmente, acordei do pesadelo, da imbricação dogmática.

Foram anos de vida em uma nova experiência – algumas lições positivas, outras predatórias. Um mergulho na religião do Livro. A angulação mudou, a lente de imagem distorcida mostrava o paraíso ainda por aqui, com a extensão posterior, é claro. O reino por aqui significava a felicidade completa com a direção de Deus nos mínimos detalhes... A Bíblia era mais do que uma bússola, servia até para saber a hora do cafezinho, o que falar com os fulanos do caminho, as pessoas que deveriam ser doutrinadas por mim e a escolha, por inspiração divina, da minha cueca do dia...

O Livro santo era como o ar e a água, necessário à vida. Mas muitos anos se passaram em meio a dúvidas e o Livro ficava cada vez mais pesado. De engolir. Era, entretanto, a única alternativa conhecida por mim para chegar a Deus. Só em pensar em outros meios, os cabelos ficavam em pé, pois deixar o Livro seria negar a Cristo e passar a eternidade sem ele. Ideia assombrosa que me acompanhava. Passado um bom tempo, as sombras se dissiparam, o que me permitiu avaliar o quanto os religiosos destruíram os meus neurônios. Pus-me, então, a caminho da libertação e deixei a Igreja por uma questão cultural!

Quando toco neste assunto de razões culturais, os crentes me interpretam como pernóstico, mas é a realidade, pois o indivíduo que cultiva a razão e adere ao pensamento científico, não consegue viver no meio sectário, a menos que seja por interesses pessoais ou eliminação dos conteúdos acadêmicos. O conhecimento científico não pode conviver com dogmas religiosos. Se hoje contemplamos uma cena desgastada da ideia de Deus, deve-se isso exclusivamente aos livros que os homens chamam de palavra de Deus.

A ideia do Deus pessoal se esgotou. O Deus bíblico que se propunha a intervir nos negócios humanos caiu em desuso, talvez porque sua atuação não esteja mais convencendo os próprios fiéis. De um lado, a imagem do todo-poderoso, Pai de amor, com promessas infinitas, mas que emperrou na prática – deus do silêncio. Isto me lembra da história do garotinho pobre que pedia a Deus uma bicicleta todo dia e ela nunca veio. Ele percebeu que Deus não funciona dessa maneira. Então, o garotinho, cansado de esperar, roubou uma bicicleta e depois pediu perdão a Deus... Pedimos, pedimos e o silêncio permanece, mas Deus está ali. É só confiar. Depois de confiarmos, a vida passa. Na verdade, ele não estava ali como pensávamos. Tinha ido dar uma volta.

Quando cansamos do silêncio, achamos definitivamente que não somos ouvidos porque nossa fé não é mais a mesma, como a dos antigos, que movia montanhas. Conheci um físico teórico que se tornou um cristão metodista, lavaram-lhe o cérebro para que se sentisse cada vez mais culpado pela pobreza da sua fé, até que ele adoeceu e morreu de tristeza, culpando-se pelos próprios pecados. Enquadraram-no na visão clássica judaica do sofrimento: pecou, pagou! Quantas vidas se perderam nesse rumo?

Formaram-nos na cultura da bondade divina universal. Deus é sempre bom e nós sempre maus. Sabem o que acho de fato? Somos realmente maus, sempre tendenciosamente maus na prática e Deus eternamente bom no Livro, mas não na prática. Melhor interpretando, o deus criado no Livro é um monstro brincalhão... Um ogro santo e torturador ubíquo. Ora, Deus não seria isso.

Quero tocar num aspecto polêmico da crença: o que temos de melhor em nós? Exatamente o que queremos que Deus tenha em abundância, já que somos sua imagem e semelhança. A partir daí, esperamos, a qualquer custo, o amor absoluto de Deus. Amor justo, porque, pela razão de amarmos ou tentarmos amar, temos a sensação de sermos justos por entendermos que Deus é justiça pura. Em suma, projetamos no Ser maior imaginário aquilo que sentimos ser, para depois obtermos a recompensa dele. Fixamos assim a ideia de um ciclo divino. Chamo isso de catarse do desamparo.

Para nos desvencilharmos da ideia do “amigo imaginário”, temos que recomeçar. Reestruturarmo-nos para que fiquemos refratários aos falsos sinais do cérebro que chegam à mente, contando com o único meio defensivo disponível: o uso da razão. O cérebro quer preservar nosso equilíbrio psíquico, ainda que seja através dos meios ilusivos-cognitivos que tomam a mente de assalto. Por exemplo, sabemos que a questão da origem e evolução da vida na Terra já encontrou uma resposta satisfatória com o legado da obra de Charles Darwin. Então, qualquer explicação fantasiosa dada pela religião, não passa de mitologia dos tempos antigos. Logo, pensando com reflexão científica, o mito adâmico já caminha longe demais no século em que vivemos. A lenda de Adão e Eva tem um aspecto cultural desconcertante, ridículo e vexatório, sob a luz da razão, para ser levado a sério hoje.

Para considerarmos a ideia de desamparo, seria preciso que um deus qualquer tivesse antes nos amparado, independente da noção do Éden. Logo, construímos esse conceito para não termos que suportar o peso da solidão irreversível. Mas, ainda assim, seria mais fácil conviver com a ilusão do amparo do que com o insulamento do mundo sem Deus, onde nem caberia o conceito de um amparo qualquer. Debatemo-nos como insetos agarrados à crença num ser maior, pois a ideia do nada – a limine –, nos apavora.

Evitamos assuntos que nos amedrontem ou se desdobrem em argumentações que mexem com pontos de vista íntimos. Temos a religião como exemplo. As pessoas preferem não discutir verdades universais. Conservam as suas opiniões particulares, por medo e comodidade, fazendo uso de um instrumento social de defesa.

O ser humano, por ter a dúvida fazendo parte da sua natureza, recebe o encargo da religião: a obrigação de ter fé. Quem, então, teria a dimensão da fé bíblica? Ora, isso tudo faz parte de um projeto para encarcerar o homem, pois para termos esse modelo de fé, só enfiando a mão no bolso para tirar um santinho qualquer que sirva de referência. Qualquer santinho que se preze tem uma história – uma historinha cor-de-rosa.

Ninguém viu nem ouviu nada, mas a história do santinho de per si, mais o que o padre disse, confirmam a verdade. Sem contar com a pintura do beato, impressa no folheto, que também comove. O tal santinho teria vivido provavelmente no século XIII, na Alsácia-Lorena e curado uma criancinha de lepra quando essa veio lhe abraçar... Na verdade, as historinhas são todas inventadas. A partir daí, os teólogos, para dar corpo à historinha, enfeitam um pouco mais a invenção do populacho e beatificam o tal santinho séculos depois. Aos poucos, testa-se a reação dos devotos em cada caso. Tem que ser devagar para não ir contra os sentimentos do povo parvo, caso contrário não vamos ter uma canonização. Como diz o senso comum: “é assim que funciona”...

Pensando bem, nem precisa ser um santinho, qualquer filhote de Lutero serve como testemunho. Um caso ali, outro aqui, um versículo de apoio e temos uma história das grandes! Nas curas então nem se fala: bengala branca jogada fora; cadeira de rodas aposentada; a dor no ombro foi embora; o joelho ficou bom; resfriado também; a dor de cabeça passou; emprego novo da filha; marido que não bebe mais; “ô grória”; lencinho ungido na barriga para ter gravidez abençoada, “ô bênça”... Então, falou o incréu: “Larga de ser trouxa seu devoto e vai estudar!”.

Amantíssimos irmãos: Madre Teresa de Calcutá duvidou da existência de Deus por mais de quarenta anos! Então, quem sois vós, que tanta fala procede só da boca e não do coração? Quanto à atitude diante da vida a ser tomada, já que nos descobrimos meio preteridos pela divindade, falaremos mais adiante.

Na construção do cristianismo primitivo, desde as lutas entre os ebionitas, marcionitas, gnósticos e proto-ortodoxos, a arena dos confrontos era bem ativa até tomarem o caminho de Niceia. A partir do concílio, a beligerância teológica abrandou-se. Definiu-se, favorecendo os proto-ortodoxos. Mas é conveniente lembrar que os contornos doutrinários eram fornecidos pela teologia paulina.

No fio de uma análise crítica, voltemos o olhar para o apóstolo dos gentios. O cristianismo não teria a forma de hoje se não fosse delineado por Paulo. Os evangelhos difundiram-se depois das epístolas. Logo, elas conferem o tom e a dialética das vestiduras teológicas do cristianismo. O estranho, na arrumação do Livro, é que essas epístolas traçaram rumos dogmáticos ao ponto de suscitar querelas entre os próprios pais da igreja primitiva. Alguns até dizem que o apóstolo Paulo criou a cristandade a sua imagem e semelhança...

Não podemos negar que, considerando a história, houve uma construção teológica gradual da figura de Jesus – passo a passo – e não há como refutar o fato da ideia completa para perpetuá-lo. Ideia essa que extrapolou os textos canônicos; criou símbolos e alegorias, que são usadas por manipuladores até os dias presentes. Mas por que houve evolução dessa forma? Simplesmente, porque a verdade pertence aos filósofos, historiadores, cientistas e não aos seguidores da religião... Entretanto, nossas verdades religiosas são construídas com base na compreensão de mundo que nutrimos.

Na linha de raciocínio a priori, a Bíblia não se fundamenta na história, então, abre-se uma imensa janela para a licença poética de distorção. Porém, a finalidade do Livro não é outra, pois importa antes preencher as expectativas dos crédulos na sua visão de mundo, estabelecer a expectativa de verdade sem a preocupação de informações históricas corretas. Como? Sendo plausível com a compreensão do crente, a ficção se impõe como verdade histórica, adequada ao esperado por alguém que faz um acordo com os autores das Escrituras para encontrar o “jeito certo” de ser feliz. Esses contadores cristãos de histórias eram hábeis em agradar as massas e alimentaram a ilusão do povo com o primeiro livro de autoajuda no mundo.

Uma vez a fábula anunciada, desde que em nome de Deus, a força da linguagem vai conferir à lenda muito mais consistência, até que se torne uma verdade convencionada. Só que o mundo de hoje passou a prestar mais atenção a essas coisas e reconheceu a confecção mitológica das Escrituras, assim como a gigantesca oficina que forja os ilusionistas da fé... Essa é a razão do desgaste da ideia de Deus que chegamos, em pleno século XXI.

Bispos pentecostais, pastores e padres eletrônicos que disputam acirradamente espaço nas mídias, oferecendo curas fantasiosas – prosperidade como nova teologia. Já temos próteses clericais que se intitulam apóstolos, mesmo sem terem andado com Jesus, descendo de helicópteros particulares para fazer milagres no meio da multidão... Enfim, um absoluto festim social na busca do milagre, que nada mais poderia ser do que um efeito sem causa.

Esses heróis da fé duvidosa são os campeões da enxurrada do dinheiro fácil, que sai dos bolsos de apedeutas e que mantêm esses apóstolos como todo-poderosos da fé midiática. Torpes apóstolos com seus castelos de torneiras de ouro, inspirados em Hugh Hefner, como na mansão da Playboy. Qual a diferença? As torneiras e o espírito são exatamente os mesmos... Pintaram a cruz de dourado! Louvado seja o dólar, irmãos!

Até agora, vemos milhares de pessoas em situação silente. Por medo, já que ninguém quer se envolver em discussões que não costumam acrescentar nada aos seus bolsos. De mais a mais, tudo isso parece estéril, porque os humanos não se demovem dos seus pontos de vista religiosos, que são apenas estacas podres para as justificativas dos seus interesses pessoais. Ou pelo pavor da morte.

Assim, as pessoas falam de Deus como um discurso de hábito, não preocupadas com a retidão que o cristianismo propõe, mas apenas em repetir o que se conhece e que serve para todas as religiões. Por tudo isso, chegamos a uma situação irreversível de desgaste da ideia de Deus. O crente nunca se dá conta do grau de fundamentalismo em que está envolvido. Ataca os semelhantes na ânsia de doutriná-los para que não entrem na danação eterna, mas não conseguem parâmetros de equilíbrio e felicidade para as suas próprias vidas. Na verdade, as religiões só chegam a ser tolerantes quando não têm mais força para converter os outros. Então, surge o ecumenismo e cada macaco se limita ao seu galho...

Criamos Deus à nossa imagem e semelhança, mas, devido a tão pouca artesanía, fizemos um ser cheio de problemas, do sexo masculino, que só nos deixou a ver navios. Percebe-se, então, que não cabe nenhum tipo de revolta da nossa parte contra esse deus de plástico, o da religião, uma vez que é apenas uma construção imperfeita, por falta de técnica. Se a ideia do divino se desgastou de vez, é porque declararam a morte do deus da religião e sem muito êxito, pois temos consciência de que os mitos nunca morrem. No caso de Papai Noel é diferente: sabemos no fundo que ele existe e insistimos em não acreditar nele...


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