O DESGASTE DA IDEIA DE DEUS
Construíram um senhor fornido, de barba
crespa e branca – em seguida, enfiaram-no numa camisola branca, lá na
Antiguidade. Confesso que o acho parecido com Karl Marx. Um misto de aparência
de bondade com um aspecto bruto e grosseiro. Isso mesmo, o gênio de
Michelangelo nos deixou esse incrível retrato divino-anabolizado, da
Antiguidade. Se os papas mantêm essa figura no teto da Sistina, é porque pegou.
Ele é Deus!
Os outros também são parecidos com Deus,
porque os demais pintores também tinham sua devoção. Mas, no meu simples ponto
de vista, acho que fico mesmo com o Deus da camisola. Bem, retomando um tom mais
sério, a ideia da deusa-mãe, anterior ao monoteísmo judaico, não prosperou. Por
que razão o monoteísmo judaico triunfou com a formatação de um deus masculino,
de voz grave? Pelo menos foi assim no filme de Cecil B. DeMille...
Foi concebido pelos hebreus um modelo de deus
masculino, forte fisicamente como pintado, mas que resultou confuso e fraco nas
atitudes, a ponto de ter se arrependido de haver criado o ser humano. Os antigos hebreus projetaram uma figura
masculina que representaria o seu deus. Curioso, deram-lhe um nome que não poderiam
repetir à toa, pois seria tomá-lo em vão – mas e agora?
Desde que as sociedades antigas se tornaram
patriarcais, o deus tinha que ser macho e precisava de uma biografia. Biógrafos
hebreus nunca faltaram, por isso, hoje temos o Livro, embora, com a evolução do
mesmo, não pudessem mais mudar o sexo de Deus. Já estava registrado, senão o
que seria da religião do Livro?
Revendo Michel Onfray sobre a construção do
Livro: “Os evangelistas desprezam a história. Sua opinião apologética o
permite. Não é preciso que as histórias tenham acontecido efetivamente, não é
útil que o real coincida com a formulação e a narração que se oferece dele,
basta que o discurso produza seu efeito: converter o leitor, obter dele uma
aquiescência sobre a figura do personagem e seu ensinamento”. Temos, assim, a
forma perfeita para o constructo
teocrático do Livro, segundo Onfray, que prossegue: “Todos creditam realidade a
uma ficção. Acreditando na fábula que contam, dão-lhe cada vez maior
consistência. A prova da existência de uma verdade reduz-se com frequência à
soma dos erros repetidos que um dia tornam-se uma verdade convencionada”.
O momento mais difícil na minha vida de
credulidades, mas que não me desviou do enfrentamento com a questão em si, foi conhecer
o que concluiu Michel Onfray: “Jesus é, portanto, um personagem conceitual.
Toda a sua realidade está nessa definição. Certamente, ele existiu, mas não
como figura histórica – a não ser que de maneira tão improvável que pouco
importa a existência ou não. Ele existe como uma cristalização das aspirações
proféticas de sua época e do maravilhoso próprio dos autores antigos, isto de
acordo com o registro performativo que cria dando nome. Os evangelistas
escrevem uma história. Com ela narram menos o passado de um homem que o futuro
de uma religião. Artimanha da razão: eles criam o mito e são criados por ele.
Os crentes inventam sua criatura, depois lhe prestam culto: o próprio princípio
da alienação...”. Para mim, foi muito difícil enfrentar esta declaração.
O homem encontrou um meio para fixar a
imagem de Deus desde a Antiguidade, sem o qual a imagem convencionada não teria
alicerces, mudaria mais amiúde. Esse meio se mostrou eficaz através da escrita
de uns livros sagrados. Como funciona
o processo de aplicação pedagógica dos livros? Muito simples. Adotando o
princípio da fidelidade do devoto, tomemos a Bíblia como modelo. Se um
religioso admoesta alguém sem usar o Livro, dizendo que o tal cometeu o pecado
de adultério, esse alguém pode mandar o religioso passear em outras bandas. Mas
se esse mesmo religioso utilizar o Livro, citando uma passagem relacionada ao
erro em questão, a pessoa advertida encarará a situação de outra forma. O medo
toma conta dela, pois não é o religioso quem diz, mas o Livro sagrado. Sempre o medo e a culpa.
Nessa linha de raciocínio, o ensinamento
sobre adultério seria absorvido anteriormente pela fé do devoto. Uma vez
assentado o referido desvio cognitivo na mente crédula e, com a consequente
confirmação emocional no indivíduo doutrinado, a estratégia da escrita responde
ao resultado com êxito absoluto. É fato concreto, pois a escrita estabeleceu um
estereótipo que, sem dúvida, passa a ser de aplicação universal.
O episódio, que relata a situação de adultério,
torna-se uma história aceita universalmente pelos crentes. O assunto é mais
forte do que o acontecimento, por isso, tende a configurar uma verdade admitida.
Esse é o mecanismo do dogma, portanto, não é para ser questionado. A vontade de
Deus sempre contou com a preguiça intelectual dos seus seguidores.
Os protestantes e os católicos já
aceitaram, mesmo veladamente, o método histórico-crítico tão enfatizado neste
livro. Os cursos de teologia das igrejas mais importantes adotam esse princípio
por uma questão de inteligência, pois perceberam que o cristianismo precisa de
adaptações, novas interpretações da Bíblia, para que ela não se revele como
história da carochinha... Evangélicos, imãs muçulmanos e rabinos ortodoxos, cegos,
insistem na ideia de que o Corão e a Torah provêm literalmente da boca de Deus.
Uma prova inconteste de que o cristianismo
está mais lúcido em relação ao irreversível método histórico-crítico, é a
declaração do papa João Paulo II, em 1996, sobre o desdobramento da teoria de
Darwin, afirmando que ela é “bem mais do que uma hipótese...”, ao admitir que
“se o corpo humano é originário de substâncias preexistentes, a alma tem que
ser imediatamente criada por Deus”. Ora, ora... Isso é um grande sofisma, mas
foi enviado pelo papa oficialmente à Pontifícia Academia de Ciências do
Vaticano. Falha que demonstrou a grande fraqueza da Igreja de Roma no século
XX, pois agora eles não têm como refutar o princípio da seleção natural e do
evolucionismo. Se o papa tivesse refletido mais, não prolataria uma sentença
absolutamente romântica, na tentativa de salvar a fé católica. Na seleção
natural, Deus é desnecessário.
Mais uma derrota da igreja: o sumo pontífice
embolou fé com ciência. Ó grande papa, como vossa santidade vai resolver sobre os
seis dias da criação e o sétimo, feriado de Deus? Para complicar mais, o
sucessor, Bento XVI, demonstrou também ser adepto do método histórico-crítico,
pois aderiu ao princípio do que Jesus poderia ter dito ou não, atribuindo isso
aos acréscimos tardios e alterações textuais da Bíblia. Talvez seja esse um dos
motivos da queda de Bento XVI. Mais do que nunca, ficaram flagrantes os sintomas
de desmoronamento da Igreja de Roma no século presente. Qual será, então, o
futuro da fé cristã?
Temos o Livro, a fortiori construído para firmar o perfil de Deus, agora, no
sentido inverso, por revelar tantas contradições, passa a comprometer a ideia
de Deus. Observe-se que o alicerce da casa já não se mostra suficiente, porque
puseram na edificação muito saibro e pouco cimento... O caso é que o
transcendente não basta mais! Então, convém que dissimulem, pois uma vez que a
Igreja adere abertamente ao método histórico-crítico, seu futuro se torna
incerto e ameaçado, mas os que já estão no poder permanecerão no reino aqui da
terra ainda por um bom tempo.
Há quem ainda defenda a Bíblia como palavra
de Deus, no rigor máximo da expressão. Sustentam que, quando canonizada, seus
redatores deixaram de propósito os deslizes que a Bíblia apresenta como prova
da honestidade dos seus escritos. Ora, seus primeiros redatores não quiseram
alterar as contradições para que, através dos erros, as Escrituras mantivessem
o selo de autoridade maior, justamente como prova da fraqueza humana. Acho
difícil que isso tenha se passado dessa forma. Vejo nesse argumento a
afirmativa da imperfeição humana, com a finalidade de reforçar a perfeição de Deus, o perdão divino e jogar
a culpa na humanidade infeliz.
É preciso separar as coisas. Importa,
então, a priori fazer mais uma
observação sobre este trabalho: minha intenção não é discutir a natureza de
Deus como objetivo primeiro, mas sim trazer à luz o problema da construção da
Bíblia, que mantém o conceito de um deus específico, formatando-o. Mesmo
porque, o presente livro perderia sua retaguarda científica, pois o que está em
discussão permite a análise histórica e a abordagem da razão.
O Absoluto impessoal, ou Força superior, é
uma hipótese. Por essa razão, não existem elementos probatórios da ciência para
tratarmos de um assunto tão abstrato. Nem mesmo o Deus da Bíblia está num plano
primacial de discussão. Ele é um produto do Livro. Somente dessa maneira,
poderemos discutir a história do nascimento da religião do Livro, com todas as
suas implicações.
Ao discutirmos um Ser Absoluto, caímos
inexoravelmente na roda da religião e o que pretendo é ser racional. Hipóteses,
na ótica científica, exigem provas. Na religião, interpretações. Não é à toa
que ainda vivemos sufocados por uma emergência intelectual sem proporções, a
contumácia da fé sem reflexão. Interpretações não me interessam, todos têm
muitas. Comprovação histórica é outra coisa, nada tem a ver com o atraso da
religião.
Todo devoto tem cegueira da razão e
permanece encarcerado ao tenebroso mundo perceptivo que o engoliu. Ele detém
uma visão parcial da realidade – fracionada –, longe de vislumbrar o todo.
Lembremos, então, de um argumento primário, mas extenso na expressão: “todo
religioso acha que sua religião é a certa”, ou, pelo menos, a que mais próxima
está da verdade. Ora, se a sua
religião é a certa, a minha tem que estar errada, porque não há verdade em
coisas que divergem. Essa história de que todas as religiões são boas, só porque
promovem o bem, não corresponde à realidade. Nenhum dogmático aceita o dogma do
vizinho, antes combate o tal com uma espécie de ódio silencioso, esperando que
Deus esclareça o vizinho ou castigue o incréu sem piedade. Concorrente bom é
concorrente morto afinal...
Existe uma ética suspeita no meio religioso, que estabelece certa disputa
silenciosa. É uma expectativa de comprovação divina nas doutrinas de cada um e,
quando isso não acontece, sobrevém o desconcerto, amparado pelo silêncio do crente.
Mas quando a comprovação “acontece”, ou melhor, um desvio cognitivo causa essa
sensação, significa para ele a assertiva de Deus, a confirmação final. Confirmação
emocional! Deus, então, “mostra” ao religioso vencedor, sempre com fundo
doutrinário, que a sua religião é a certa, o que é motivo suficiente para que
ele prossiga na fé, cheio de confiança, sem perceber sua própria cegueira
intelectual pelo resto da vida. Essa é a confirmação emocional que vem depois
do desvio cognitivo, a inferência paradigmal injuntiva, mãe de todos os
“achismos” e distorções cognitivas.
Sobre mim, posso falar com segurança.
Quando, no passado distante, ingressei no meio das seitas cristãs emocionantes,
uma denominação atraiu minha atenção em particular. Chamava-se “Assembleia de Alguma
Coisa”. Imediatamente, achei que havia encontrado meu caminho para o resto da
vida e tudo parecia mais claro do que a água. Cheguei ao ponto delirante de
admitir outras denominações como boas,
que seus integrantes também eram salvos, mas que a “minha igreja” superava as
demais, pelo simples fato das doutrinas serem mais próximas da verdade...
Meu primeiro grande desvio cognitivo! Uma
viagem que quase me levou à ruína absoluta: distorção de valores, ruptura social
– amigos, família –, tudo por água abaixo. Alienação total e neurose típica dos
“escolhidos”. Assim minha mente foi formatada.
Depois do período pentecostal de lavagem do meu pequeno cérebro, fui
conduzido à última fase: a confirmação emocional. Depois que fiquei imbuído do
espírito de santidade, meu cérebro aumentou de tamanho, mas pelo excesso de
estupidez e ela pesa. Era um separado
para servir e isso mexe com a vaidade espiritual de qualquer um que acredita
nessas coisas. Já pensou? Um escolhido de Deus? Pois é, assim encontrei a
igreja certa e perfeita, uma “Assembleia de Alguma Coisa”, até que um dia,
felizmente, acordei do pesadelo, da imbricação dogmática.
Foram anos de vida em uma nova experiência
– algumas lições positivas, outras predatórias. Um mergulho na religião do
Livro. A angulação mudou, a lente de imagem distorcida mostrava o paraíso ainda
por aqui, com a extensão posterior, é claro. O reino por aqui significava a
felicidade completa com a direção de Deus nos mínimos detalhes... A Bíblia era
mais do que uma bússola, servia até para saber a hora do cafezinho, o que falar
com os fulanos do caminho, as pessoas que deveriam ser doutrinadas por mim e a
escolha, por inspiração divina, da minha cueca do dia...
O Livro santo era como o ar e a água,
necessário à vida. Mas muitos anos se passaram em meio a dúvidas e o Livro
ficava cada vez mais pesado. De engolir. Era, entretanto, a única alternativa
conhecida por mim para chegar a Deus. Só em pensar em outros meios, os cabelos
ficavam em pé, pois deixar o Livro seria negar a Cristo e passar a eternidade
sem ele. Ideia assombrosa que me acompanhava. Passado um bom tempo, as sombras
se dissiparam, o que me permitiu avaliar o quanto os religiosos destruíram os
meus neurônios. Pus-me, então, a caminho da libertação e deixei a Igreja por
uma questão cultural!
Quando toco neste assunto de razões culturais,
os crentes me interpretam como pernóstico, mas é a realidade, pois o indivíduo que
cultiva a razão e adere ao pensamento científico, não consegue viver no meio sectário,
a menos que seja por interesses pessoais ou eliminação dos conteúdos
acadêmicos. O conhecimento científico não pode conviver com dogmas religiosos. Se
hoje contemplamos uma cena desgastada da ideia de Deus, deve-se isso
exclusivamente aos livros que os homens chamam de palavra de Deus.
A ideia do Deus pessoal se esgotou. O Deus
bíblico que se propunha a intervir nos negócios humanos caiu em desuso, talvez
porque sua atuação não esteja mais convencendo os próprios fiéis. De um lado, a
imagem do todo-poderoso, Pai de amor, com promessas infinitas, mas que emperrou
na prática – deus do silêncio. Isto me lembra da história do garotinho pobre
que pedia a Deus uma bicicleta todo dia e ela nunca veio. Ele percebeu que Deus
não funciona dessa maneira. Então, o garotinho, cansado de esperar, roubou uma
bicicleta e depois pediu perdão a Deus... Pedimos, pedimos e o silêncio
permanece, mas Deus está ali. É só
confiar. Depois de confiarmos, a vida passa. Na verdade, ele não estava ali
como pensávamos. Tinha ido dar uma volta.
Quando cansamos do silêncio, achamos definitivamente
que não somos ouvidos porque nossa fé não é mais a mesma, como a dos antigos,
que movia montanhas. Conheci um físico teórico que se tornou um cristão
metodista, lavaram-lhe o cérebro para que se sentisse cada vez mais culpado
pela pobreza da sua fé, até que ele adoeceu e morreu de tristeza, culpando-se
pelos próprios pecados. Enquadraram-no na visão clássica judaica do sofrimento:
pecou, pagou! Quantas vidas se perderam nesse rumo?
Formaram-nos na cultura da bondade divina universal. Deus é sempre
bom e nós sempre maus. Sabem o que acho de fato? Somos realmente maus, sempre
tendenciosamente maus na prática e Deus eternamente bom no Livro, mas não na
prática. Melhor interpretando, o deus criado no Livro é um monstro brincalhão...
Um ogro santo e torturador ubíquo. Ora, Deus não seria isso.
Quero tocar num aspecto polêmico da crença:
o que temos de melhor em nós? Exatamente o que queremos que Deus tenha em
abundância, já que somos sua imagem e
semelhança. A partir daí, esperamos, a qualquer custo, o amor absoluto de Deus.
Amor justo, porque, pela razão de amarmos ou tentarmos amar, temos a sensação
de sermos justos por entendermos que Deus é justiça pura. Em suma, projetamos no
Ser maior imaginário aquilo que sentimos ser, para depois obtermos a recompensa
dele. Fixamos assim a ideia de um ciclo divino. Chamo isso de catarse do desamparo.
Para nos desvencilharmos da ideia do “amigo
imaginário”, temos que recomeçar. Reestruturarmo-nos para que fiquemos refratários
aos falsos sinais do cérebro que chegam à mente, contando com o único meio
defensivo disponível: o uso da razão. O cérebro quer preservar nosso equilíbrio
psíquico, ainda que seja através dos meios ilusivos-cognitivos que tomam a
mente de assalto. Por exemplo, sabemos que a questão da origem e evolução da
vida na Terra já encontrou uma resposta satisfatória com o legado da obra de
Charles Darwin. Então, qualquer explicação fantasiosa dada pela religião, não
passa de mitologia dos tempos antigos. Logo, pensando com reflexão científica,
o mito adâmico já caminha longe demais no século em que vivemos. A lenda de
Adão e Eva tem um aspecto cultural desconcertante, ridículo e vexatório, sob a
luz da razão, para ser levado a sério hoje.
Para considerarmos a ideia de desamparo,
seria preciso que um deus qualquer tivesse antes nos amparado, independente da
noção do Éden. Logo, construímos esse conceito para não termos que suportar o
peso da solidão irreversível. Mas, ainda assim, seria mais fácil conviver com a
ilusão do amparo do que com o insulamento do mundo sem Deus, onde nem caberia o
conceito de um amparo qualquer. Debatemo-nos como insetos agarrados à crença
num ser maior, pois a ideia do nada – a limine
–, nos apavora.
Evitamos assuntos que nos amedrontem ou se
desdobrem em argumentações que mexem com pontos de vista íntimos. Temos a
religião como exemplo. As pessoas preferem não discutir verdades universais.
Conservam as suas opiniões particulares, por medo e comodidade, fazendo uso de
um instrumento social de defesa.
O ser humano, por ter a dúvida fazendo
parte da sua natureza, recebe o encargo da religião: a obrigação de ter fé.
Quem, então, teria a dimensão da fé bíblica? Ora, isso tudo faz parte de um
projeto para encarcerar o homem, pois para termos esse modelo de fé, só
enfiando a mão no bolso para tirar um santinho
qualquer que sirva de referência. Qualquer santinho que se preze tem uma
história – uma historinha cor-de-rosa.
Ninguém viu nem ouviu nada, mas a história
do santinho de per si, mais o que o padre
disse, confirmam a verdade. Sem contar com a pintura do beato, impressa no
folheto, que também comove. O tal santinho teria vivido provavelmente no século
XIII, na Alsácia-Lorena e curado uma criancinha de lepra quando essa veio lhe
abraçar... Na verdade, as historinhas são todas inventadas. A partir daí, os
teólogos, para dar corpo à historinha, enfeitam um pouco mais a invenção do
populacho e beatificam o tal santinho séculos depois. Aos poucos, testa-se a
reação dos devotos em cada caso. Tem que ser devagar para não ir contra os
sentimentos do povo parvo, caso contrário não vamos ter uma canonização. Como
diz o senso comum: “é assim que funciona”...
Pensando bem, nem precisa ser um santinho, qualquer
filhote de Lutero serve como testemunho. Um caso ali, outro aqui, um versículo
de apoio e temos uma história das grandes! Nas curas então nem se fala: bengala
branca jogada fora; cadeira de rodas aposentada; a dor no ombro foi embora; o
joelho ficou bom; resfriado também; a dor de cabeça passou; emprego novo da
filha; marido que não bebe mais; “ô grória”; lencinho ungido na barriga para ter
gravidez abençoada, “ô bênça”... Então, falou o incréu: “Larga de ser trouxa seu
devoto e vai estudar!”.
Amantíssimos irmãos: Madre Teresa de Calcutá
duvidou da existência de Deus por mais de quarenta anos! Então, quem sois vós,
que tanta fala procede só da boca e não do coração? Quanto à atitude diante da
vida a ser tomada, já que nos descobrimos
meio preteridos pela divindade, falaremos mais adiante.
Na construção do cristianismo primitivo,
desde as lutas entre os ebionitas, marcionitas, gnósticos e proto-ortodoxos, a
arena dos confrontos era bem ativa até tomarem o caminho de Niceia. A partir do
concílio, a beligerância teológica abrandou-se. Definiu-se, favorecendo os
proto-ortodoxos. Mas é conveniente lembrar que os contornos doutrinários eram
fornecidos pela teologia paulina.
No fio de uma análise crítica, voltemos o
olhar para o apóstolo dos gentios. O cristianismo não teria a forma de hoje se
não fosse delineado por Paulo. Os evangelhos difundiram-se depois das
epístolas. Logo, elas conferem o tom e a dialética das vestiduras teológicas do
cristianismo. O estranho, na arrumação do Livro, é que essas epístolas traçaram
rumos dogmáticos ao ponto de suscitar querelas entre os próprios pais da igreja
primitiva. Alguns até dizem que o apóstolo Paulo criou a cristandade a sua
imagem e semelhança...
Não podemos negar que, considerando a
história, houve uma construção teológica gradual da figura de Jesus – passo a
passo – e não há como refutar o fato da ideia completa para perpetuá-lo. Ideia
essa que extrapolou os textos canônicos; criou símbolos e alegorias, que são
usadas por manipuladores até os dias presentes. Mas por que houve evolução
dessa forma? Simplesmente, porque a verdade pertence aos filósofos,
historiadores, cientistas e não aos seguidores da religião... Entretanto,
nossas verdades religiosas são
construídas com base na compreensão de mundo que nutrimos.
Na linha de raciocínio a priori, a Bíblia não se fundamenta na história, então, abre-se
uma imensa janela para a licença poética de distorção. Porém, a finalidade do
Livro não é outra, pois importa antes preencher as expectativas dos crédulos na
sua visão de mundo, estabelecer a expectativa de verdade sem a preocupação de
informações históricas corretas. Como? Sendo plausível com a compreensão do
crente, a ficção se impõe como verdade
histórica, adequada ao esperado por alguém que faz um acordo com os autores
das Escrituras para encontrar o “jeito certo” de ser feliz. Esses contadores
cristãos de histórias eram hábeis em agradar as massas e alimentaram a ilusão
do povo com o primeiro livro de autoajuda no mundo.
Uma vez a fábula anunciada, desde que em
nome de Deus, a força da linguagem vai conferir à lenda muito mais
consistência, até que se torne uma verdade convencionada. Só que o mundo de
hoje passou a prestar mais atenção a essas coisas e reconheceu a confecção
mitológica das Escrituras, assim como a gigantesca oficina que forja os
ilusionistas da fé... Essa é a razão do desgaste da ideia de Deus que chegamos,
em pleno século XXI.
Bispos pentecostais, pastores e padres
eletrônicos que disputam acirradamente espaço nas mídias, oferecendo curas
fantasiosas – prosperidade como nova teologia. Já temos próteses clericais que
se intitulam apóstolos, mesmo sem terem andado com Jesus, descendo de
helicópteros particulares para fazer
milagres no meio da multidão... Enfim, um absoluto festim social na busca do
milagre, que nada mais poderia ser do que um efeito sem causa.
Esses heróis da fé duvidosa são os campeões
da enxurrada do dinheiro fácil, que sai dos bolsos de apedeutas e que mantêm esses
apóstolos como todo-poderosos da fé midiática. Torpes apóstolos com seus
castelos de torneiras de ouro, inspirados em Hugh Hefner, como na mansão da Playboy. Qual a diferença? As torneiras
e o espírito são exatamente os mesmos... Pintaram a cruz de dourado! Louvado
seja o dólar, irmãos!
Até agora, vemos milhares de pessoas em
situação silente. Por medo, já que ninguém quer se envolver em discussões que
não costumam acrescentar nada aos seus bolsos. De mais a mais, tudo isso parece
estéril, porque os humanos não se demovem dos seus pontos de vista religiosos,
que são apenas estacas podres para as justificativas dos seus interesses
pessoais. Ou pelo pavor da morte.
Assim, as pessoas falam de Deus como um
discurso de hábito, não preocupadas com a retidão que o cristianismo propõe,
mas apenas em repetir o que se conhece e que serve para todas as religiões. Por
tudo isso, chegamos a uma situação irreversível de desgaste da ideia de Deus. O
crente nunca se dá conta do grau de fundamentalismo em que está envolvido.
Ataca os semelhantes na ânsia de doutriná-los para que não entrem na danação
eterna, mas não conseguem parâmetros de equilíbrio e felicidade para as suas
próprias vidas. Na verdade, as religiões só chegam a ser tolerantes quando não
têm mais força para converter os outros. Então, surge o ecumenismo e cada
macaco se limita ao seu galho...
Criamos Deus à nossa imagem e semelhança,
mas, devido a tão pouca artesanía,
fizemos um ser cheio de problemas, do sexo masculino, que só nos deixou a ver
navios. Percebe-se, então, que não cabe nenhum tipo de revolta da nossa parte
contra esse deus de plástico, o da religião, uma vez que é apenas uma
construção imperfeita, por falta de técnica. Se a ideia do divino se desgastou
de vez, é porque declararam a morte do deus da religião e sem muito êxito, pois
temos consciência de que os mitos nunca morrem. No caso de Papai Noel é diferente:
sabemos no fundo que ele existe e insistimos em não acreditar nele...
ATENÇÃO: todos os direitos reservados.
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